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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

A Primavera Catalã ousa desobedecer, por Redação.

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De navios estrangeiros, descem soldados espanhois para impedir o referendo. A internet está sob censura. Mas a população resiste, abraça-se nas ruas e cultiva cravos — para lembrar Portugal de 1974
Por Flávio Carvalho
Se tu puxas A Estaca forte por aqui e eu puxo A Estaca forte, por lá,
seguramente ela vai cair; cairá e nós poderemos nos libertar

L’Estaca, de Lluís Llach, músico perseguido pela ditadura franquista,
atualmente deputado independentista catalão
Pense num militante de extrema esquerda no Brasil. Sabes que ele não se dá muito bem com a Polícia. Agora imagine aqui em Barcelona um policial chorando enquanto os manifestantes cantam o hino nacional. Nesse momento, um militante de extrema esquerda, catalão, abraça o policial que chora, emocionado. Por outro lado, na cidade de Zaragoza, centenas de neonazistas espanhóis atacam violentamente um carro da TV pública catalã, enquanto as câmeras filmam a Guardia Civil, a polícia política de Mariano Rajoy, Presidente da Espanha e do PP, aplaudindo os violentos neonazistas e nada fazendo para defender os jornalistas catalães que pagam o seu salário.
Pois a esse ponto chegamos, a poucos dias do Referendo perseguido, que fez com que dezenas de eurodeputados, de dezoito países europeus diferentes, perguntassem aos dirigentes da União Europeia o que estão esperando para fazer algo que impeça os limites de violência que se estão ultrapassando na Espanha. Não esqueçamos que é essa mesma União Europeia, dirigida por políticos conservadores, de direita, que envergonhou o mundo na crise dos refugiados (ainda em andamento). Desta vez pode ser diferente. Não se trata de um problema dos países árabes, pois agora a crise é no interior da Europa Ocidental.
Enquanto isso, a reação do governo espanhol é mais repressiva: em navios de luxo, cruzeiros italianos pintados com desenhos animados (empresas locais se negaram a isso), a polícia espanhola desembarcou em Barcelona e está declarando sua guerra particular contra os cidadãos e contra as instituições de uma boa parte do seu próprio país. Franco fez o mesmo, décadas atrás. E desencadeou a guerra civil mais duradoura da história do mundo ocidental. Fuzilou o presidente eleito da Catalunha, no castelo militar de Montjuic, mesmo lugar onde se concentram a cada 12 de Outubro, os neonazistas, protegidos por um cordão policial. 12 de outubro é o Dia da Raça, tal como proclamado na ditadura: o dia que Colombo começou a impor, em nome dos Reis da Espanha, a “raça espanhola” sobre os indígenas das Américas. Agora imaginem como será, este ano, em toda a Espanha, o 12 de outubro, que se hoje chama o Dia da Hispanidade!
Quando meus amigos indecisos me perguntam se me tornei nacionalista, sempre digo que a grande fábrica de independentistas é o Partido Popular (PP, de direita, no poder), porque isso lhe dá votos em Madri. Logo, insisto que nunca serei nacionalista. E os esclareço que votarei no Referendo exatamente contra o pior nacionalismo que já vi na minha vida: o violento nacionalismo espanhol, herdado diretamente do franquismo, sem necessidade de intermediários. Sua última expressão foi enviar pra tomar o comando da polícia catalã (nunca o assumem, por não terem coragem de enfrentar a cada vez mais crítica opinião pública internacional), o irmão do ex Presidente do Tribunal Constitucional, ambos reprovados (sim, o PP perdeu estas votações no parlamento espanhol) pela máxima instância política.
Referências a Hitler, aqui não faltam. Nem no resto da Europa. Os resultados das eleições alemãs acabam de devolver ao seu parlamento um partido de extrema direita. É a primeira vez, depois da morte de Hitler, que o neonazismo entra no poderoso parlamento alemão. Os próximos passos da diplomacia espanhola são tão significativos que falam por si mesmos: Rajoy visitou Trump ontem. Esta semana fez novamente referência a sua visita a Temer…
Jovens informáticos (que clonaram centenas de páginas na Internet quando Rajoy fechava as webs públicas, criadas pelo governo catalão) estão ameaçados pela justiça, assim como o Presidente da Catalunha e do Parlamento catalão, diretores de jornais, líderes estudantis, sindicalistas, políticos eleitos e diretores de escolas, ameaçados às penas de prisão e multas milionárias. Sermões inteiros em missas catalãs estão sendo reproduzidos na Internet pela veemência com que os padres católicos estão defendendo os direitos humanos. Impressores pela democracia é o nome (traduzido) de uma página da Internet criada pela recentemente criada associação de empresários de indústrias gráficas. Estão dispostos a imprimir, de graça, diariamente, milhões de cédulas eleitorais para o Referendo, depois que a polícia espanhola apreendeu mais de dez milhões de cédulas e urnas.
Numa referência à pacífica Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura de Salazar, em Portugal, já não se encontram cravos para comprar nos mercados floristas da Catalunha. Os anunciantes de previsão do tempo na rádio hoje foram substituídos por floricultores que ensinavam o povo sobre como plantar e cuidar destas plantas, os pés-de-cravos, a tempo de serem colhidos nesta Primavera Catalã, em pleno começo de outono europeu. Resistência pacífica é a ordem popular nas ruas. Os vizinhos do pueblo onde eu moro imprimiram eles mesmos cartazes em casa e saíram pra colar nos postes, com seus filhos, domingo, em festa: “sem desobediência não haverá independência”, neles estava escrito.

Boaventura reexamina as formas de luta, por Boaventura de Sousa Santos.

on 27/09/2017Categorias: Alternativas, Capa, Mundo, Pós-Capitalismo
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O que diferencia revolução, luta institucional, rebedia e desobediência civil? Por que, nas últimas décadas, a ciência política esqueceu este debate? Vale a pena retomá-lo?
Por Boaventura de Sousa Santos
Há temas que, apesar de serem uma presença constante na vida da grande maioria das pessoas, ora aparecem ora desaparecem do radar daqueles a quem compete refletir sobre eles seja no plano científico, cultural ou filosófico. Alguns dos temas hoje desaparecidos são, por exemplo, a luta social (mais ainda, a luta de classes), a resistência, a desobediência civil, a rebeldia, a revolução e, subjacente a todas eles, a violência revolucionária. Ao longo dos últimos cento e cinquenta anos estes temas tiveram um papel central na filosofia e na sociologia políticas porque sem eles era virtualmente impossível falar de transformação social e de justiça. Hoje em dia, a violência está onipresente nos noticiários e nas colunas de opinião, mas raramente é referida aos temas anteriores. A violência de que se fala é a violência despolitizada, ou como tal concebida: a violência doméstica, a criminalidade, o crime organizado. Por outro lado, é sempre de violência física que se fala, raramente de violência psicológica, cultural ou simbólica e, nunca, de violência estrutural. Os únicos contextos em que a violência é, por vezes, referida como política é a violência nos países “menos desenvolvidos” ou “Estados falidos” e a violência terrorista, considerada (e bem) como um modo inaceitável de luta política.
Em termos de debate filosófico e político, o nosso tempo é um tempo simultaneamente infantil e senil. Engatinha por entre ideias que o atraem pela novidade e lhe conferem o orgulho de ser protagonista de algo inaugural (autonomia, competição, empoderamento, criatividade, redes sociais). E, por outro lado, deixa-se perturbar por uma ausência, uma falta que não consegue nomear exatamente (solidariedade, coesão social, justiça, cooperação, dignidade, reconhecimento da diferença), uma falta obsoleta mas suficientemente impertinente para o fazer tropeçar na sua própria ruína. Como a luta, a resistência, a rebeldia, a desobediência, a revolução continuam a constituir a experiência quotidiana da grande maioria da população mundial que, aliás, paga um preço muito alto por isso , a disjunção entre o modo como se vive e o que é dito publicamente sobre ele faz com que o nosso tempo seja um tempo dividido entre dois grupos muito assimétricos: os que não podem esquecer e os que não querem recordar. Os primeiros só na aparência são senis e os segundos só na aparência são infantis. São todos contemporâneos uns dos outros, mas reportam-se a contemporaneidades diferentes.
Revisitemos, pois, os conceitos senilizados. A luta é toda a disputa ou conflito sobre um recurso escasso que confere poder a quem o detém. As lutas sociais sempre existiram e sempre tiveram objetivos e protagonistas muito diversificados. No final do século XIX, Marx conferiu um papel especial a um certo tipo de luta: a luta de classes. A sua especificidade residia na sua radicalidade (a parte perdedora perderia tudo), na sua natureza (entre grupos sociais organizados em função da sua posição face à exploração do trabalho assalariado) e nos seus objetivos incompatíveis (capitalismo ou socialismo).
As lutas sociais nunca se reduziram à luta de classes. A meio do século passado, surgiu o termo “novos movimentos sociais” para dar conta de atores políticos organizados em outras lutas, segundo outros critérios de agregação que não a classe e para objetivos muito diversificados. Esta ampliação não só alargava o conceito de luta social como dava mais complexidade à ideia de resistência, um conceito que passou a designar todos os grupos inconformados com o estatuto de vítima. É resistente todo aquele que se recusa a ser vítima.
Esta ampliação recuperava alguns debates do final do século XIX entre anarquistas e marxistas, sobretudo o debate sobre a revolução e a rebeldia. A revolução implicava a substituição de uma ordem política por outra, enquanto a rebeldia significava a rejeição de uma dada (ou qualquer) ordem política. A rebeldia distinguia-se da desobediência civil, porque esta, ao contrário da primeira, questionava uma determinação específica (por exemplo, serviço militar obrigatório) mas não a ordem política no seu conjunto.
O conceito de revolução foi-se alimentando com a revolução russa, a revolução chinesa, a revolução cubana, a revolução argelina, a revolução egípcia, a revolução vietnamita ou a revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 (ainda que muitos, eu incluído, duvidássemos do seu carácter revolucionário). A queda do Muro de Berlim veio retirar atualidade ao conceito de revolução, ainda que ele ressuscitasse alguns anos depois na América Latina com a revolução bolivariana (Venezuela), a revolução comunitária (Bolívia) e a revolução cidadã (Equador), mesmo que também nestes casos fossem muitas as dúvidas sobre o caráter revolucionário destes processos. Com o levantamento neozapatista de 1994, o Fórum Social Mundial de 2001 e anos seguintes e os movimentos indígenas e afrodescendentes, os conceitos de rebeldia e de dignidade voltaram a dominar. Até hoje.
Subjacente às vicissitudes destes diferentes modos de nomear as lutas sociais contra o status quo estiveram sempre duas questões: a dialética entre institucionalidade e extra-institucionalidade; e a dialética entre luta violenta ou armada e luta pacífica. As duas questões são autônomas, ainda que relacionadas: a luta institucional pode ou não ser violenta e a luta armada, se duradoura, cria a sua própria institucionalidade. Ambas as questões começaram a ser discutidas ao longo do século XIX e explodiram em momentos diferentes no final do século XIX e início do século XX. Por que as refiro aqui? Porque, apesar de nos últimos trinta anos terem sido consideradas obsoletas ou residuais, ganharam ultimamente uma nova vida.
Institucional versus extra-institucional:
Esta questão agudizou-se com as divisões no seio do partido social-democrata alemão nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Lutar dentro das instituições? Ou pressioná-las e mesmo transformá-las a partir de fora por vias consideradas ilegais? A questão teve o seu curso durante cinquenta anos e pareceu ter-se esgotado com o fim da revolta estudantil de Maio de 1968. Obviamente que em diferentes partes do mundo continuou a haver insurreições, guerrilhas, protestos, greves ilegais, lutas de libertação; mas de algum modo foi-se consolidando a ideia de que representavam o passado e não futuro, uma vez que a democracia liberal, agora apadrinhada pelo neoliberalismo global, FMI, Banco Mundial, ONU, acabaria por se impor como o único modo legítimo de dirimir conflitos políticos. Tudo mudou em 2011 com a onda de movimentos de protesto em diferentes países: as diferentes primaveras de revolta, o movimento Occupy Wall Street, os movimentos dos indignados, etc. Por que esta mudança? Suspeito que a crise da democracia liberal tem se aprofundado de tal modo que movimentos e protestos fora das instituições podem passar a ser parte da nova normalidade política.
Luta armada versus luta pacífica:
A questão da violência é o tema que o pensamento político dominante (tão viciado no estudo dos sistemas eleitorais) evitou a todo o custo ao longo do século passado. No entanto, os protagonistas das lutas no terreno debateram-se continuamente com ele. Obviamente, nem toda a violência é revolucionária. Ao longo do século, quem mais recorreu a ela foram os contra-revolucionários, os nazis, os fascistas, os colonialistas, os fundamentalistas de todas as confissões e os próprios estalinistas após a perversão da revolução que empreenderam. Mas no campo revolucionário as divisões foram acesas: entre os marxistas e maoístas indianos e Gandhi; entre Martin Luther King Jr. e Malcom X; entre diferentes movimentos de libertação do colonialismo europeu e Frantz Fanon; entre movimentos independentistas na Europa (País Basco, Irlanda do Norte) e movimentos revolucionários da América Latina.
Também aqui – e pese embora a continuidade da luta armada no delta do Niger e nas zonas rurais da Índia dominadas pelos naxalitas (maoístas) – a ideia da violência revolucionária e da luta armada tem perdido legitimidade, de que é eloquente demonstração as negociações de paz em curso na Colômbia. Mas há dois elementos perturbadores de que quero dar conta. Em muitos países onde a violência política terminou com negociações de paz, a violência voltou (muitas vezes contra líderes políticos e de movimentos sociais) sob a forma de violência despolitizada ou criminalidade comum. El Salvador e Honduras são casos paradigmáticos e a Colômbia pode vir a sê-lo. Por outro lado, a luta armada foi deslegitimada porque falhara muitas vezes nos seus objetivos e porque se acreditou que estes seriam mais eficazmente atingidos por via pacífica e democrática. E se a crise da democracia se aprofundar?
Um dos revolucionários que mais admiro e que pagou com a vida a sua dedicação à revolução socialista, o Padre Camilo Torres, da Colômbia, doutorado em sociologia pela Universidade de Lovaina, respondeu assim em 1965 à pergunta de um jornalista sobre a legitimidade da luta armada: “Os fins não justificam os meios. No entanto, na ação concreta, muitos meios começam a ser impraticáveis. De acordo com a moral tradicional da Igreja, a luta armada é permitida nas seguintes condições: 1) terem-se esgotado os meios pacíficos; 2) existir uma probabilidade bastante alta de ter êxito; 3) que os males resultantes dessa luta não sejam piores que a situação que se quer remediar; 4) que haja um grupo de pessoas com critérios ilustrados e corretos sobre o cumprimento das condições anteriores”.
A um pacifista como eu, que sempre lutou pela radicalização da democracia como via não violenta para construir uma sociedade mais justa, causa arrepios pensar se em muitos países os padrões de convivência pacífica e democrática não estarão a degradar-se a tal ponto que as quatro condições do Padre Camilo Torres possam ter resposta positiva.

A Rocinha, entre Nem e o Iluminismo, por Eduardo Migowski.

on 26/09/2017Categorias: Brasil, Destaques, Políticas
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Os filósofos das Luzes queriam que os cidadãos agissem como súditos e soberanos. Quando resta-lhes apenas obedecer, prevalece a sabedoria do chefe do tráfico
Por Eduardo Migowski
Passei a tarde de sexta feira em casa. Não consegui me deslocar para o trabalho em função da situação do Rio de Janeiro. Na minha televisão apareciam blindados, helicópteros e homens fardados. Todos fortemente armados. O motivo era um cerco que estava sendo montado à favela da Rocinha, maior do Brasil. Uma guerra entre quadrilhas de traficantes rivais saiu do controle e o estado do Rio de Janeiro, falido, pediu apoio federal.
O caos na Rocinha seria um fato isolado? Creio que não. Claro que o problema é complexo e existem centenas de explicações igualmente válidas. Mas eu queria pensar um pouco sobre a natureza dos regimes democráticos e a relação entre a crise política que vivemos e esses acontecimentos recentes. No início, esse texto vai parecer um pouco abstrato, por isso peço um pouco de paciência ao leitor. No final tentarei ligar todos os pontos aparentemente soltos.
No longínquo século XVIII, os filósofos iluministas definiam a democracia como o sistema de governo em que o cidadão é ao mesmo tempo súdito e soberano. Ele é soberano porque participa do destino coletivo. Sua opinião importa e precisa ser ouvida. Ele é parte naquilo que Rousseau chamou de Vontade Geral. O conceito de Vontade Geral não deve ser entendido como a soma das vontades particulares, pois a Vontade Geral deve necessariamente guiar-se pelo interesse comum. É dessa intrincada equação, entre a soma das vontades particulares e o interesse comum, que nasce a Vontade Geral.
Ao contrário do que pensam os liberais, na política a soma das partes não forma o todo. A soma das vontades individuais é apenas a expressão de interesses conflitantes, um jogo de forças sem direção. No fim, prevalece quem tem mais poder. Todos perdem. É pura e simples dominação.
O filósofo Michel Foucault, invertendo a famosa frase de Clausewitz, disse que a política é a guerra por outros meios. Eu diria que não exatamente a política, mas a democracia é a guerra por outros meios. Como lembrou Marilena Chauí, o sistema democrático é o único que aceita os conflitos como legítimos e, desse modo, os mantém dentro dos limites institucionais.
É preciso estar atento. A Vontade Geral choca-se, a todo o momento, com as vontades particulares e corre-se o risco de que os interesses acabem por prevalecer. É nesse momento de conflito que o indivíduo deve ser súdito, ou seja, abrir mão de seus desejos egoístas momentâneos. Mas nem sempre isso acontece.
Em 2011, o mesmo traficante que agora leva o terror à favela da Rocinha, Nem, disse as seguintes palavras numa entrevista: “UPP não adianta se for só ocupação policial. Tem de botar ginásios de esporte, escolas, dar oportunidade. Como pode Cuba ter mais medalhas que a gente em Olimpíada? Se um filho de pobre fizesse prova do Enem com a mesma chance de um filho de rico, ele não ia para o tráfico. Ia para a faculdade” (“Meu Encontro com Nem”, revista Época). Se o filho do pobre fizesse vestibular com condições iguais a um rico, ele não iria para o tráfico e eu não ficaria em casa, sem poder sair. A educação pública de qualidade para todos, portanto, pode ser entendida como a emanação da Vontade Geral. Ela assegura o bem e a tranquilidade comum.
O projeto das UPPs queria transformar os moradores das comunidades carentes em súditos, sem lhes conceder a soberania. A ideia era impor a ordem, sem democracia. Era acabar com os conflitos pela força, pelo medo. Por isso estava fadado ao fracasso. Violência só produz mais violência. Como numa panela de pressão, no primeiro furo, tudo iria para os ares.
O Rio de Janeiro está sofrendo os efeitos negativos dessa política desastrosa. Mas os erros locais não explicam tudo, o problema é ainda mais sério. Nessa mesma entrevista, o traficante fez outra afirmação desconcertante: “Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil.”
Independentemente da avaliação que cada um de nós tenha do ex-presidente, há nessa frase algumas revelações importantes. Nem, o traficante, disse que o PAC tirou de modo definitivo 50 homens do crime, pois conseguiram um emprego e uma chance de mudar de vida. O investimento público em infraestrutura é outro exemplo prático da Vontade Geral. Um programa de obras públicas, agindo numa comunidade carente, melhorando a vida dessas pessoas, gerando empregos e ajudando na construção da paz. Emprego, renda, paz e crescimento econômico, contribuem para o equilíbrio social.
A harmonia do todo é um bem coletivo que não pode ser alcançado pela interação egoísta entre indivíduos atomizados. A sociedade existe, não é pura abstração, ao contrário do que afirmou Margaret Thatcher. Foram seus vícios que fizeram com que eu ficasse em casa na sexta feira ou que um morador da Rocinha perdesse a prova da UERJ no domingo, uma das poucas oportunidades que essas pessoas teriam para mudar a sua realidade.
Liberdade formal não basta. Do que adianta a Constituição Federal garantir a liberdade de ir e vir em casos como esse? O indivíduo, como parte desse todo, é afetado por essa dinâmica corrosiva dos conflitos egoístas A ideia de comunidade pode ser uma abstração, mas os conflitos são reais e os tiros matam.
A regulamentação estatal necessita da confiança e do compromisso individual com a coletividade. A tributação, por exemplo, é uma forma de pagar dívidas passadas e a investir em projetos futuros. A lógica é simples: eu devo parte do meu padrão de vida àqueles que me antecederam e tenho uma responsabilidade com as gerações vindouras. Tal prática estimula e sentimento de pertencimento. Portanto, é mais que uma medida econômica, mas uma postura ética em que o indivíduo se perceber como parte de uma estrutura que o transcende. Os impostos, ao serem aplicados em programas como o PAC, ou em educação, serviriam à Vontade Geral. São elementos básicos da democracia.
Claro que essa separação não é tão nítida e muitas vezes o dinheiro público é vertido para outros fins. Mas o golpe que sofremos foi arquitetado por pequenos grupos que, em nome de uma moralidade difusa, colocaram o poder a serviço de poucos. O que os incomodava era a frágil democracia que havíamos construído nas ultimas décadas. Com o golpe votou-se uma PEC que limita os gastos primários. Programas como o PAC agora são inviáveis. A política cortou os poucos laços que mantinha com a soberania popular. A concorrência desmesurada e a falta de assistência levam os indivíduos a buscar refúgios de diferentes formas. Não há vácuo político, o poder atua em rede e, na ausência do Estado, outras formas de agenciamento se fortalecem.
Nosso presidente, o mais impopular da história, aceita qualquer demanda, qualquer pressão, para se manter no cargo. Nossa democracia agoniza num jogo de forças entre vontades particulares, enquanto nosso Estado se desintegra sem direção.
Após o golpe, o discurso político perdeu totalmente seu contato com a realidade. Nossa tranquilidade vem de esperanças quiméricas. Porém, para além da ilusão e da propaganda, existe a realidade, que teima em nos mostrar a sua face mais perversa. A ilusão me diz que sou livre e vivo numa democracia, porém no mundo real existem balas que podem me matar. Nesse embate entre o real e a fantasia, por precaução, eu fiquei em casa, mesmo com a Constituição cidadã em pleno vigor. Se a democracia é a guerra por outros meios, sem democracia a guerra emerge pelos meios tradicionais.

Cura gay: os “cristãos” contra Cristo, por Fran Alavina.

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Ao recorrerem à Psicologia, os que querem dominar os desejos reconhecem os limites da Religião. Mas reproduzem o mesmo dispositivo que resultou na cruz
Por Fran Alavina | Imagem: A coroação de espinhos, Michelangelo Merisi da Caravaggio, circa 1604
O debate sobre a decisão judicial que dá margem legal para a estapafúrdia “cura gay” além de ter recebido as reações devidas nos últimos dias – reações que devem aumentar –, também dá lugar para que se possa ter uma visão mais complexa do que se esconde sobre esta lógica do absurdo. Absurdidade que, por se manter na longa duração da história da repressão dos desejos dissidentes e da objetivação do corpo, acaba por se apresentar para muitos como normalidade na história da nossa cultura. De fato, quando comparado com a história da sexualidade no Ocidente, este absurdo é a regra e não a exceção. Regras de uma suposta “normalidade”, datada desde quando o cristianismo como forma religiosa hegemônica e como tipo de consciência política dominante estabeleceu para nós a moralidade dos afetos tristes. Tristes, pois afetos que se regem não pela liberdade do agir, mas pela conduta proibitiva; não pela completude, porém pela interdição. Trata-se de uma submissão do desejo àqueles que não gozando – no caso católico está parcela que em tese não possui o gozo sexual é o clero – podem prescrever as regras do gozo permitido.
Ora, o que é esta bizarrice da “cura gay” senão a velha proibição do prazer, a antiga interdição do gozo que o cristianismo na sua versão protestante, evangélica ou neopentecostal, herdou da versão católica? A estratégia evangélica que agora obteve uma vitória temporária, porém expressiva, não possui nada de novo. Ela imita um projeto de poder sobre o corpo por meio da submissão às superstições teológicas de um saber determinado e legitimamente constituído. Uma submissão do saber ao proselitismo da crença, em primeiro lugar, pois capaz de oferecer uma garantia segura para uma submissão dos corpos e dos desejos, já que discurso de poder mascarado de discurso de saber.
Em outras palavras, o debate sobre a “cura gay” é um dos dispositivos que nos permitem ver em sua inteireza a relação entre saber e poder, síntese de um inescrupuloso desejo de dominação, desejo que se dá a ver em um momento em que não basta apenas a servidão voluntária, ou seja, quando os mecanismos hodiernos da corrida proselitista estão esgarçados. Não é mera coincidência que agora, após os neopentecostais, evangélicos e católicos chegarem ao ápice de sua escalada midiática, recorra-se a um discurso que, por princípio, os prosélitos rechaçam: o discurso científico.
Não é pouca coisa que se tente usar de um determinado saber médico que não se dirige diretamente ao uso dos corpos, mas à subjetividade: a psicologia. Ora, é justamente sobre este âmbito, o âmbito da psique, que se dá o campo de atuação das religiões. Um grande pensador disse uma vez que o poder mais forte é aquele que reina sobre os ânimos. É aí que reina o discurso religioso, capaz de propiciar a mais forte das coações: a coação interna.
O homem religioso é, antes de tudo, um ser de paixão. Seu mundo é tecido por camadas de afetividade que se desdobram para além das razões, ou dos absurdos aparentes. O que carece de sentido aos olhos do crente terá sentido único e reconciliador no sentimento. Como descreve Pascal ao longo dos seus fragmentários Pensamentos, a razão da fé é demostrar que ela não possui razão alguma. Isso não quer dizer que o sentimento religioso se confunda com o puro irracionalismo, ou que seja uma esfera carente de sentido, mas que por sua própria constituição será sempre mais um discurso de paixão do que de razão potanto um discurso auto-referente que fará do outro, daquilo que lhe é estranho e diferente, um elemento de incômodo que quando não pode ser apagado sem deixar resquícios, deve ser modificado para ser subsumido. Ou seja, deve deixar de ser o que é, o diferente, para se tornar o igual. Portanto, da alteridade à repetição.
Toda paixão forte, como aquela da religião, quer fazer de si a regra e a régua do mundo. É próprio da passionalidade forte acomodar-se apenas àquilo que lhe é semelhante. As divisões em inúmeras seitas e denominações que pululam na história do cristianismo é prova viva do expurgo do diferente. É próprio deste tipo de consciência religiosa, em que a paixão encontra seus níveis mais altos, expurgar o dessemelhante. O que é a história dos primeiros concílios senão a longa batalha do expurgo do diferente, que uma vez expulso completa a figura do herege, daquele que não possuindo mais nenhum vínculo com sua antiga comunidade pode ser objeto do mais poderoso dos ódios, segundo Espinosa, o ódio teológico?
Ao longo dos séculos, o outro para o cristão tornou-se em primeiro lugar aquele que não pertence mais ao grupo primitivo, mesmo que este outro ainda se diga cristão. O modo como o cristianismo – em suas mais diversas versões – lida com a homossexualidade é um espelho de como ele se fossilizou no trato com a diferença. É por isso que a homossexualidade traz à tona o ódio, quase insano, dos prosélitos, pois é a mais absoluta diferença em relação a uma moralidade dita “normal” e “natural”. É a liberdade de um corpo e a autodeterminação de um prazer constituinte que não apenas rompe com o círculo do gozo prescrito, mas reinventa os lugares e os objetos do gozo. Não por outro motivo, o prosélito sempre verá menor culpa no homem adúltero do que no homem gay. Um desobedece certo aspecto da moralidade aceita, mas não se coloca fora dela; já o outro, está completamente fora dos seus limites.
Há aqui, neste dispositivo do afeto, uma sutiliza que não deve ser desconsiderada. O gay só se faz outro porque estabelece uma relação incomum entre iguais. Nossa alteridade é a expressão dos iguais, e não uma alteridade da exclusão, ou do expurgo do diferente. Sutileza irônica esta, posto que foi justamente por também estabelecer uma relação incomum entre iguais, por se fazer um com os seus, que o galileu das periferias do império romano tornou-se o outro, o absolutamente outro, tanto que foi remetido à execração pública e à morte ignominiosa. Era tão outro que não poderia mais ser subsumido e aceito no interior de sua antiga comunidade. A transexual que corajosamente se apresentou publicamente crucificada, há alguns anos, na Parada Gay de S.Paulo, apenas nos deu simbolicamente esta semelhança entre o dispositivo afetivo de gays e lésbicas e o dispositivo afetivo do cristianismo das origens.
Uma vez que a relação incomum entre os iguais torna-se o pecado sem perdão, é preciso – já que não é mais possível realizar fogueiras públicas – retirar a homossexualidade da esfera do pecado, isto é, do simples discurso religioso e realocá-lo no discurso médico, portanto transformando em uma patologia que se submete a certa clínica. Assim, o pecado sem perdão transfigura-se em “doença curável”, enfermidade não apenas da alma, mas do desejo que pode ser passível de tratamento. Já que não se pode apagar fisicamente o diferente, se distorce àquilo que é sua maior determinação, o desejo, para apagar a diferença e subsumir o “anormal” na “normalidade”.
Por isso, o uso de um saber que, além de ser capaz de emprestar rigor de ciência às meras opiniões de uma moralidade imposta, também é um saber médico, um conhecimento clínico. Um saber capaz de se prestar ao papel, quando manejado na mão torta dos prosélitos, de realizar a medicina da culpa. Aí, se dá a passagem do pecado à enfermidade, ou seja, do discurso meramente religioso para o discurso médico.
É um instrumento de poder refinado que gente como Silas Mafalafaia declare-se psicólogo, que os proponentes da “cura gay” sejam prosélitos dos setores mais alinhados com o atraso, mas que sejam tratados, segundo a determinação judicial, como “pesquisadores”. O uso interessado de um certo saber médico para a confirmação das posições teológicas é o reconhecimento dos limites da crença, porém expõe também que o desejo de dominação de um tipo de consciência religiosa tende a não encontrar limites – é o mesmo tipo de consciência religiosa que distorce os sentidos do Estado laico, que confunde propositalmente violência simbólica com liberdade de expressão. Este desejo de dominação, para não se apresentar tão claramente – pois sabe que não pode mostrar à luz do dia suas entranhas protofascistas –, subverte saberes e agora encontra amparo no último poder que faltava à sua conquista: o Judiciário, o protagonista do momento.
É um momento difícil, no qual o dispositivo afetivo de desejo entre os iguais é confrontado violentamente por outro desejo, o desejo de dominação e submissão. Assim, para além de absurda e quão caricata possa ser a questão, está em jogo um problema político dos mais determinantes, pois como dizia certo odiado pensador, é própria do corpo político saudável o desejo de não se deixar dominar. Ora, quando um dos elementos desse corpo político deseja dominar, vê-se o quanto está doente este corpo. Portanto, vale agora, mais uma vez, o alerta de Pasolini: “Estamos Todos Em Perigo”!

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Renca: Temer revoga polêmico decreto que ameaça reservas da Amazônia


Área desmatada pelo garimpo dentro da Renca
Área desmatada pelo garimpo dentro da Renca Greenpeace

O presidente Michel Temer bem que tentou abrir a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), na floresta amazônica, para a exploração das mineradoras a toque de caixa. Mas, a reação de ambientalistas e da comunidade internacional foi tão grande que ele precisou voltar atrás, pelo menos por enquanto. Nesta segunda, o Governo anunciou a extinção total do decreto que previa a abertura da Renca, situada entre os Estados do Pará e Amapá, para a entrada de empresas de mineração que cobiçavam ouro, cobre e outros tesouros na região, que alcança o tamanho da Dinamarca. A decisão deve ser publicada amanhã no Diário Oficial, como apurou o repórter Afonso Benites, em Brasília. Apesar do recuo, nos bastidores já se sabe que o Governo não descarta voltar a debater o fim da reserva no futuro. Mas neste momento, decidiu ceder à pressão.
O decreto já havia sido suspenso por 120 dias no dia primeiro de setembro, após o alvoroço criado pela medida anunciada, inicialmente, no dia 23 de agosto. Apesar do nome, a Renca contempla nove reservas ambientais e indígenas, que seriam impactadas caso o Governo liberasse a área para a entrada de empresas privadas. A grita foi tão grande, incluindo dos povos indígenas que ali residem, como os Wajãpi, que o Governo chegou a reeditar o decreto com garantias de que essas regiões seriam preservadas. Mas de nada adiantou. Desde que o decreto foi suspenso, o Governo havia prometido audiências públicas para garantir a participação da sociedade nas decisões que assegurassem a preservação das áreas protegidas. Só houve tempo para uma audiência na Câmara.
Numa entrevista coletiva com a imprensa estrangeira há duas semanas, o ministro das Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, chegou a dizer que o Governo tinha ciência de pelo menos 3.000 garimpeiros ilegais trabalhando na área da Renca, além de pistas de pouso. “Ninguém nunca reclamou, ninguém nunca assumiu uma indignação com esse quadro”, afirmou na ocasião.


O garimpo ilegal, no entanto, foi denunciado diversas vezes por ONGs que atuam na região, mas a fiscalização para coibir a atividade nunca foi feita. O presidente Michel Temer chegou a sustentar a abertura da Renca ao setor privado tentava legalizar o que já acontece de maneira clandestina. “O que há é uma regularização da exploração que se faz naquela região. Nada mais do que isso. É de uma singeleza ímpar”, chegou a dizer Temer, quando questionado sobre a Renca por jornalistas. Nilo D'Ávila, coordenador de campanhas do movimento Greenpeace, entende que garimpo é impossível de ser legalizado. “Eles estão ali tirando uma riqueza nacional para uso próprio, sem nenhuma autorização. Como se pode legalizar algo sem calcular o impacto que é causado e sem saber em quais condições, nem como se pode recuperar o que for desmatado”, questiona.
Segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), do Ministério de Minas e Energias, apenas 25% dos 46.450 quilômetros quadrados da Renca pode ser, por lei, explorada. Na área restante, onde estão as unidades de conservação alémdas duas reservas indígenas, ficaria vedada qualquer tipo de exploração. Mas, essa proposta é incompatível com o projeto de conservação, avalia Michel de Souza, coordenador de Políticas Públicas do WWF-Brasil. “Se abrir a Renca, haverá desmatamento inevitavelmente, mesmo que se sigam as melhores regras mundiais de exploração mineral. Como você vai escoar? Como abrir rodovia, levar máquinas pesadas para a floresta, equipamentos necessários para a extração de minérios?”, pergunta ele.


O mundo de Trump O presidente dos EUA pretende abolir o atual sistema de relações internacionais.


Donald Trump, presidente dos Estados Unidos
Donald Trump, presidente dos Estados Unidos FRANCE PRESS




A deplorável escalada verbal entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o líder norte-coreano Kim Jong-un, para além de um intercâmbio de bravatas impróprio até mesmo em brigas de adolescentes, mostra até que ponto a concepção que o governante norte-americano tem das relações internacionais o incapacita para lidar com crises complexas que, mal conduzidas — como é o caso —, podem ter graves consequências.


Deveria ser desnecessário dizer que Estados Unidos e Coreia do Norte não se equiparam. Em primeiro lugar, pelo regime de liberdade e direitos de que desfrutam seus cidadãos. A democracia mais poderosa do mundo não joga de forma alguma no mesmo campo da obscura ditadura comunista hereditária. Mas é disso exatamente que o inquilino da Casa Branca deveria se lembrar ao subir à principal tribuna da comunidade de nações — a Assembleia Geral das Nações Unidas — e começar a expor sua visão do que será o mundo nos próximos anos. E deveria ser qualquer coisa menos um lugar em que voem os insultos e as ameaças nada veladas.
No entanto, mesmo já sendo alarmante o grau de hostilidade ao qual estão chegando as coisas na crise norte-coreana, o presidente dos EUA apresentou uma ideia ainda mais preocupante em médio e longo prazo para a sobrevivência do atual sistema de relações diplomáticas. Em uma versão do neoliberalismo econômico selvagem aplicada ao diálogo entre as nações, Trump proclamou sua visão de uma comunidade internacional composta por fortes nações-Estado cada uma olhando primeiro — e proclamando — o próprio interesse acima de qualquer outra consideração. O presidente norte-americano acrescentou que isso facilitaria as relações pacíficas esquecendo — ou ignorando — que esse sistema foi o que imperou durante todo o século XIX e teve um resultado dramático materializado em duas Guerras Mundiais com centenas de milhões de mortos e um mundo dividido durante os 70 anos seguintes. Um sistema do qual os Estados Unidos optaram por não participar, preferindo ficar isolados a maior parte do tempo, até que alguns de seus governantes entendessem — à força — que vivemos em um planeta no qual já não é possível se fechar.
Desde 1945 — com seus altos e baixos e suas infelizmente numerosíssimas exceções — a comunidade internacional encontrou e garantiu um sistema para viver em paz e dirimir conflitos mediante a negociação e a intervenção de grupos de países, às vezes sem qualquer interesse direto no problema concreto. Um sistema integrador que inclusive deu exemplos de grande sucesso em termos de democracia e progresso, como no caso da União Europeia tão desprezada por Trump. Substituir os fóruns de diálogo multilaterais por conciliábulos a dois nos quais se supõe que o egoísmo — mal classificado por Trump de patriotismo — é a garantia de que tudo sairá bem é simplesmente um exercício dialético difícil de acreditar. Ainda pior, em suas palavras o presidente norte-americano aventou que nesse sistema cada país poderia se organizar segundo suas diferenças. Devem deixar de nos importar as violações de direitos humanos em outros lugares? Decididamente, o mundo de Donald Trump não será melhor.

Cinco evidências de que Bitcoin é uma religião sexta-feira, por Wilson Roberto Vieira Ferreira.



Criada em 2009, Bitcoin é uma moeda digital controlada por uma rede peer-to-peer sem depender de bancos centrais e com um mercado de bilhões de dólares. Bitcoin parece ser movido por um ímpeto anarquista porque seus seguidores odeiam governos e autoridades financeiras. Mas suas ações são espirituais, lembrando uma religião com um Criador, messias profetas, confirmando a tendência humana de perceber no dinheiro e valor atributos inerentemente mágicos e místicos. E como toda religião, tem a cortina que esconde o Mágico de Oz: o “fetichismo da mercadoria”, tal como diagnosticou Karl Marx no século XIX sobre o velho Capitalismo, a cortina que esconde a reprodução da desigualdade. O “Cinegnose” lista cinco evidências de que o Bitcoin é mais uma religião, porém mais “cool” do que a Teologia da Prosperidade das igrejas neopentecostais. Porque Deus desceu ao mundo não mais sob a forma de dinheiro, mas agora como Criptografia e Matemática.
Por que uma barra de ouro vale mais do que um cacho de bananas? Se o leitor acha que essa é uma pergunta supérflua porque é “natural” ouro valer mais do que bananas, você está não só confirmando o diagnóstico de um pensador do século XIX como, também, comprovando o porquê da moeda virtual chamada “bitcoin” ser uma verdadeira religião contemporânea.

Fetichismo da mercadoria foi o termo usado pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883) para designar a relação mágica ou religiosa do homem com o dinheiro, valor, e uma série de outras categorias econômicas – capital, mercadoria etc. Para Marx, o homem não esqueceu de Deus: simplesmente transformou-O em relações econômicas.

Da mesma forma que Deus (figura criada pelo homem que ganhou vida própria e dominou seu próprio criador) e a religião encobriam e justificavam economias baseadas na escravidão e sociedades estruturadas em castas, o dinheiro esconde numa relação místico-religiosa a desigualdade da distribuição da riqueza – a “luta de classes”.

Por que ouro vale mais do que bananas? Para Marx porque essas mercadorias refletem a quantidade de trabalho necessária não só para produzi-las, mas também para comprá-las. O que determina as desigualdades sociais – um professor, como esse humilde blogueiro, teria que trabalhar muito mais do que, digamos, um especulador financeiro para adquirir uma barra de ouro. Por isso, devo me contentar com bananas. O trabalho de um professor vale muito menos do que o de um profissional das finanças.


A cortina do Mágico de Oz


Pois é essa relação místico-religiosa com ouro e bananas que esconde, tal qual a cortina que escondia o Mágico de Oz, a reprodução da desigualdade social e relações de poder: se alguém ganha, muitos necessariamente têm que perder.

A atual febre envolvendo a moeda virtual Bitcoin parece atualizar esse velho conceito marxista. Tanto do lado dos críticos como daqueles que a defendem, existe o mesmo clamor religioso: ou a nova moeda seria a confirmação da livro bíblico do Apocalipse a respeito do “caminho que levará à Marca da Besta”; ou a afirmação de não-religiosos de que a Bitcoin seria “quase algo enviado por Deus”.

E nem precisa ser marxista para constatar essa relação religiosa com a moeda virtual. Por exemplo, um estudo clássico da Apple mostra que certas marcas induzem a sensações religiosas reais – na abertura de uma loja da Apple em Londres, funcionários enlouquecem de euforia. Exames de ressonância magnética detectaram que as sinapses disparadas foram equivalentes ao das catarses ou epifanias religiosas – clique aqui.

Bitcoin, e a tecnologia de apoio chamada blockchain, vêm se tornando autênticas varinhas de condão: se acrescentar Bitcoin ao seu empreendimento, instantaneamente seu projeto vai melhorar. Assim como as “minizinhas”, “moderninhas” e “vermelhinhas” (máquinas de crédito e débito) para os recém-desempregados promovidos a “empreendedores”.

Tendo em mente essa natureza fetichista da relação com o dinheiro e o valor, vamos iniciar as cinco evidências de que Bitcoin é a nova religião contemporânea.


1. O milagre da multiplicação


Em um episódio  da animação O Incrível Mundo de Gumball, Darwin e Gumball perguntam para o seu pai, o coelho Ricardo, de onde vem o dinheiro com o qual a família se sustenta. Poderíamos esperar alguma lição moral sobre a nobreza do trabalho do pai aos filhos. Mas Ricardo é mais prático: leva os filhos para um caixa eletrônico bancário e mostra: “a mamãe me dá esse cartão e o dinheiro sai dessa máquina...”.

Essa impagável relação fetichista com o dinheiro (parece ser multiplicado magicamente pela tecnologia) também pode ser encontrada na Bitcoin. Há três maneiras de acrescentar essa moeda à sua carteira virtual: pela chamada “mineração”, comprar unidades em casas de câmbio ou aceitando a criptmoeda ao vender coisas.

A “mineração” é a mais emblemática: simplesmente bitcoins “nascem” desse processo quando usuários “emprestam” a capacidade de suas máquinas para registrar as transações feitas, mantendo o funcionamento descentralizado da moeda, o blockchain. Os “mineradores” (o termos é sintomático) extraem bitcoins do misterioso mundo virtual, assim como mineiros extraem pedras milionárias das profundezas da terra.

 Se na economia a “moeda” é expressão das relações sociais, no mundo virtual é simplesmente “extração” – ninguém ganha ou perde, apenas uns acham bitcoins e outros não.


2. Uma religião individualista e motivacional


Partindo da categorização das religiões propostas pelo antropólogo Anthony Wallace (xamânicas, olímpicas, comunais e eclesiásticas ou monoteístas), a bitcoin é uma típica religião xamânica de sociedade de bandos em economias coletoras – no caso, “mineradoras”. Qualquer um pode ter contato direto com o sobrenatural sagrado.

O xamã seria aquele dotado de maior experiência (e na religião Bitcoin, o criador do sistema blockchain: o misterioso Satoshi Nakamoto, que ninguém sabe sua verdadeira identidade), mas qualquer pessoa pode se tornar um xamã.

A rede Bitcoin é um dos mais avançados sistemas de motivação e incentivo já construídos – todo mundo continua sendo um indivíduo, mas através do blockchain todos contribuem coletivamente para um sistema monetário totalmente independente, sem autoridades monetárias ou câmeras de compensação do mundo real.

Ninguém está a cargo do Blockchain, a não ser a criptografia e a matemática. E como certa vez Einstein declarou, a Matemática é a visão de Deus da própria ciência. É, portanto, espiritualmente considerado um “dinheiro limpo”, sem governo, reserva federal ou pessoas no poder.

E ainda há uma ideia de “sacrifício”, típica das religiões: as bitcoins têm valor por meio da escassez (uma ideia mantida do próprio capitalismo – para uma mercadoria, e o próprio dinheiro, terem valor, é necessária a escassez). Progressivamente a mineração torna-se matematicamente cada vez mais difícil, para evitar obviamente que todos tenham bitcoins.

Acredita-se que Satoshi tenha feito essa “renuncia” pessoal com as primeiras bitcoins, absolvendo a todos os seguidores do pecado da ganância. É um sacrifício para o bem de todos os outros participantes do sistema.


3. Dinheiro versus Religião


Como sabemos, riqueza e religião são mutuamente excludentes. Ao aderir a uma religião, o fiel deve desistir da riqueza. O dinheiro está envolto com os pecados do mundo material, nada a ver com a espiritualidade.

Mas a religião bitcoin resolve esse problema teológico, muito melhor do que a Teologia da Prosperidade das igrejas neopentecostais. A criptomoeda é gerada pela matemática e tecnologia, supostamente sem a presença da mão humana. A própria “encarnação” de Deus na Terra através de códigos fonte.

4. Os sete pecados capitais do sistema bancário


Muitos bitcoiners têm uma forte motivação anarquista contra o governo. Mas tudo vira uma panaceia quando acredita-se que automaticamente o sistema da criptomoeda vai desmantelar o governo por contra própria. Por que? Porque o sistema bancário é materialista e pecaminoso e a única salvação seria um sistema descentralizado e espiritualizado pela matemática e criptografia.

O sistema bancário queima no inferno por meio da Gula (o estereótipo do grande banqueiro barrigudo), da Luxúria (o grande crash financeiro de 2008 e notícias de envolvimento dos nomes dos culpados com redes de prostituição e drogas), do Orgulho (o ataque da MasterCard à rede bitcoin – clique aqui), da Ganância (ganância fracionária por lucros), Inveja (o motor emocional da especulação financeira e lavagem do dinheiro de cartéis de drogas), Ira (governo e sistema financeiro unidos para agir contra a sociedade), Preguiça (o sistema bancário é ineficiente quando comparado com um sistema baseado em matemática e consenso coletivamente distribuído, sem horário definido de funcionamento ou inatividades).

Portanto, bitcoins e blockchains libertariam o homem da tirania financeira e do julgamento e corrupção humanas.

O investidor Roger Ver, também  conhecido como "Bitcoin Jesus"

5. O Criador, Profetas e Messias


Na verdade a religião da Bitcoin reflete uma ideia muito antiga, mais precisamente de Parmênides, um filósofo da Grécia Antiga e fundador da escola eleática para o qual a realidade era monista: tudo seria interligado e imbuído de um valor imóvel, eterno e imutável, sem princípio ou fim, contínua e indivisível.

Richard Seaford acredita que o desenvolvimento do dinheiro cunhado teve uma relação com o desenvolvimento dessa cosmologia filosófica grega na qual os princípios básicos são projeções inconscientes da substância ideal do valor de troca – leia SEAFORD, Richard, Money and the Early Greek Mind: Homer, Philosophy, Tragedy, Cambridge University Press, 2004.

Embora o dinheiro e o valor criem uma relação inerentemente mágica e espiritual, por ser físico não consegue substituir essa “substância ideal do valor de troca”. Criptografia e a Matemática, livres da mão humana por serem a própria linguagem divina, realizam esse ideal monista da Antiguidade.

Como uma nova religião high tech, possui a nebulosa figura do Criador, Satoshi, que teria dito entre suas várias citações repercutidas pelos bitcoiners: “Satoshi disse Haja Luz, e sua criação tornou-se eterna”. Os primeiros investidores e programadores tornaram-se figuras de culto como Roger Ver, também conhecido como “Bitcoin Jesus”. Ou pessoas como Gavin Andresen e Vitalik Buterin, vistos pelos fiéis como sacerdotes ou profetas. Ou até mesmo Messias delegados por Satoshi.

E como toda religião com messias e profetas, há o milagre da ressurreição: seus seguidores confirmam a crença de que a Bitcoin já morreu 156 vezes apenas para ressuscitar novamente e novamente – veja os Bitcoin Obituaries.


Consideração final: a cortina do fetichismo


Em resumo: se o velho sistema financeiro é baseado na fé cega pelas reservas federais e na conversibilidade automática entre moeda e riqueza, também as bitcoins se fundamentam na fé na transferência de valores por um sistema impessoal e divino.

Mas a principal linha de continuidade é a relação fetichista ou mágica com o valor: bitcoins são “extraídas” do céu virtual através da capacidade dos computadores, assim como papéis e títulos brotam nas bolhas da especulação financeira e a Casa da Moeda imprime notas que magicamente ganham valor.

Como sempre, a Bitcoin é mais uma cortina para encobrir os mecanismos sociais da reprodução da desigualdade: porque poucos conseguem comprar uma barra de ouro e muitos têm que se contentar com cachos de bananas?

Como é se aposentar no Chile, o 1º país a privatizar sua Previdência, por Paula Reverbel.

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Enquanto o Brasil busca mudar a sua Previdência para, segundo o governo Michel Temer, combater um rombo fiscal que está se tornando insustentável para as contas públicas, o Chile, o primeiro país do mundo a privatizar o sistema de previdência, também enfrenta problemas com seu regime.
Reformado no início da década de 1980, o sistema o país abandonou o modelo parecido com o que o Brasil tem hoje (e continuará tendo caso a proposta em tramitação no Congresso seja aprovada) - sob o qual os trabalhadores de carteira assinada colaboram com um fundo público que garante a aposentadoria, pensão e auxílio a seus cidadãos.
No lugar, o Chile colocou em prática algo que só existia em livros teóricos de economia: cada trabalhador faz a própria poupança, que é depositada em uma conta individual, em vez de ir para um fundo coletivo. Enquanto fica guardado, o dinheiro é administrado por empresas privadas, que podem investir no mercado financeiro.
Trinta e cinco anos depois, porém, o país vive uma situação insustentável, segundo sua própria presidente, Michelle Bachelet. O problema: o baixo valor recebido pelos aposentados.
A experiência chilena evidencia os desafios previdenciários ao redor do mundo e alimenta um debate de difícil resposta: qual é o modelo mais justo de Previdência?

Impopular

Como as reformas previdenciárias são polêmicas, impopulares e politicamente difíceis de fazer, não surpreende que essa mudança profunda - inédita no mundo - tenha sido feita pelo Chile em 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

De acordo com o economista Kristian Niemietz, pesquisador do Institute of Economic Affairs ( IEA, Instituto de Assuntos Econômicos, em português), o ministro responsável pela mudança, José Piñera, teve a ideia de privatizar a previdência após ler o economista americano Milton Friedman (1912-2006), um dos maiores defensores do liberalismo econômico no século passado.
Hoje, todos os trabalhadores chilenos são obrigados a depositar ao menos 10% do salário por no mínimo 20 anos para se aposentar. A idade mínima para mulheres é 60 e para homens, 65. Não há contribuições dos empregadores ou do Estado.

Direito de imagem MARCO UGARTE/AFP/Gettty
Image caption Chile adotou sistema privado durante ditadura de Augusto Pinochet
Agora, quando o novo modelo começa a produzir os seus primeiros aposentados, o baixo valor das aposentadorias chocou: 90,9% recebem menos de 149.435 pesos (cerca de R$ 694,08). Os dados foram divulgados em 2015 pela Fundação Sol, organização independente chilena que analisa economia e trabalho, e fez os cálculos com base em informações da Superintendência de Pensões do governo.
O salário mínimo do Chile é de 264 mil pesos (cerca de R$ 1,226.20).
No ano passado, centenas de milhares de manifestantes foram às ruas da capital, Santiago, para protestar contra o sistema de previdência privado.
Como resposta, Bachelet, que já tinha alterado o sistema em 2008, propôs mudanças mais radicais, que podem fazer com que a Previdência chilena volte a ser mais parecida com a da era pré-Pinochet.

'Exemplo de livro'

De acordo com Niemietz, o modelo tradicional, adotado pela maioria dos países, incluindo o Brasil, é chamado por muitos economistas de "Pay as you go" (Pague ao longo da vida).
Ele foi criado pelo chanceler alemão Otto von Bismarck nos anos 1880, uma época em que os países tinham altas taxas de natalidade e mortalidade.
"Você tinha milhares de pessoas jovens o suficiente para trabalhar e apenas alguns aposentados, então o sistema era fácil de financiar. Mas conforme a expectativa de vida começou a crescer, as pessoas não morriam mais (em média) aos 67 anos, dois anos depois de se aposentar. Chegavam aos 70, 80 ou 90 anos de idade", disse o economista à BBC Brasil.
"Depois, dos anos 1960 em diante, as taxas de natalidade começaram a cair em países ocidentais. Quando isso acontece, você passa a ter uma população com muitos idosos e poucos jovens, e o sistema 'pay as you go' se torna insustentável", acrescentou.
Segundo Niemietz, a mudança implementada pelo Chile em 1981 era apenas um exemplo teórico nos livros de introdução à Economia.
"Em teoria, você teria um sistema em que cada geração economiza para sua própria aposentadoria, então o tamanho da geração seguinte não importa", afirmou ele, que é defensor do modelo.
Para ele, grande parte dos problemas enfrentados pelo Chile estão relacionados ao fato de que muitas pessoas não podem contribuir o suficiente para recolher o benefício depois - e que essa questão, muito atrelada ao trabalho informal, existiria qualquer que fosse o modelo adotado.
No Brasil, a reforma proposta pelo governo Temer mantém o modelo "Pay as you go", em que, segundo economistas como Niemietz, cada geração passa a conta para a geração seguinte.

Direito de imagem Francisco Osorio/Flickr
Image caption Manifestantes chilenos protestaram no ano passado contra as AFPs (administradoras de fundos de pensão)
Para reduzir o rombo fiscal, Temer busca convencer o Congresso a aumentar a idade mínima e o tempo mínimo de contribuição para se aposentar.
No parecer do deputado Arthur Maia (PPS-BA), relator da proposta, mulheres precisariam ter ao menos 62 anos e homens, 65 anos. São necessários 25 anos de contribuição para receber aposentadoria. Para pagamento integral, o tempo sobe para 40 anos.

Na prática

De acordo com o especialista Kaizô Beltrão, professor da Escola de Administração Pública e de Empresas da FGV Rio, várias vantagens teóricas do sistema chileno não se concretizaram.
Segundo ele, esperava-se que o dinheiro de aposentadorias chilenas poderia ser usado para fazer investimentos produtivos e que a concorrência entre fundos administradores de aposentadoria faria com que cada pessoa procurasse a melhor opção para si.
Ele explica que, como as administradoras são obrigadas a cobrir taxas de retornos de investimentos que são muito baixas, há uma uniformização do investimentos. "A maior parte dos investimentos é feita em letras do Tesouro", diz.

Direito de imagem Arquivo/Marcelo Camargo/Agência Brasil
Image caption As administradoras de fundos de pensão do Chile abocanham grande parte do valor da aposentadoria
Além disso, segundo Beltrão, "as pessoas não têm educação econômica suficiente" para fiscalizar o que está sendo feito pelas administradoras, chamadas AFPs (administradoras de fundos de pensão).
Essas cinco empresas juntas cuidam de um capital acumulado que corresponde a 69,6% do PIB do país, de acordo com dados de 2015 da OCDE (Organização para Desenvolvimento e Cooperação Econômica), grupo de 35 países mais desenvolvidos do qual o Chile faz parte.
As maiores críticas contra o sistema chileno se devem às AFPs, que abocanham grande parte do valor das aposentadorias das pessoas. De acordo com Beltrão, o valor pago às administradoras não é muito transparente, pois é cobrado junto ao valor de seguro em caso de acidentes.

Justo ou injusto?

A BBC Brasil perguntou ao especialista em desigualdade Marcelo Medeiros, professor da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e da Universidade Yale, qual modelo de previdência é o mais justo - o brasileiro ou o chileno.
"Justo ou injusto é uma questão mais complicada", disse. "O justo é você receber o que você poupou ou é reduzir a desigualdade? Dependendo da maneira de abordar esse problema, você pode ter respostas distintas."
De acordo com Medeiros, o que existe é uma resposta concreta para qual modelo gera mais desigualdade e qual gera menos desigualdade.
"A previdência privada só reproduz a desigualdade ao longo do tempo", explicou.

Direito de imagem Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Image caption Segundo especialista, a Previdência no Brasil tende a replicar os salários anteriores
O sistema "Pay as you go" brasileiro é comumente chamado de "solidário", pois todos os contribuintes do país colocam o dinheiro no mesmo fundo - que depois é redistribuído.
Mas Medeiros alerta para o fato de que a palavra "solidária" pode ser enganosa, pois um fundo comum não é garantia de que haverá redução da desigualdade.
"Esse fundo comum pode ser formado com todo mundo contribuindo a mesma coisa ou ele pode ser formado com os mais ricos contribuindo mais", explicou. "Além disso, tem a maneira como você usa o fundo. Você pode dar mais dinheiro para os mais ricos, você pode dar mais dinheiro para os mais pobres ou pode dar o mesmo valor para todo mundo", acrescentou.
Atualmente, o Brasil possui um fundo comum, mas tende, segundo o professor, a replicar a distribuição de renda anterior. "Ele dá mais mais dinheiro para quem é mais rico e menos para quem é mais pobre", disse.
"Se é justo ou injusto, isso é outra discussão, mas o sistema brasileiro replica a desigualdade passada no presente".

Reformas no Chile e no Brasil

As diferentes maneiras de se formar e gastar um fundo comum deveriam ser, segundo Medeiros, o foco da discussão da reforma no Brasil, cujo projeto de reforma enviado ao Congresso mantém o modelo "solidário", ou "pay as you go".
O pesquisador aponta que há quase um consenso de que o país precisa reformar sua Previdência. "A discussão é qual reforma deve ser feita."

Direito de imagem Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Image caption Michelle Bachelet já tinha feito uma alteração da previdência do Chile em 2008
No Chile, Bachelet já tinha em 2008 dado um passo rumo a um modelo que mistura o privado e o público - criou uma categoria de aposentadoria mínima para trabalhadores de baixa renda financiada com dinheiro de impostos.
Agora, ela propõe aumentar a contribuição de 10% para 15% do salário. Desse adicional de 5%, 3 pontos percentuais iriam diretamente para as contas individuais e os outros 2 pontos percentuais iriam para um seguro de poupança coletiva. De acordo com o plano divulgado pelo governo, a proposta aumentaria as pensões em 20% em média.
Bachelet também propõe maiores regulamentações para as administradoras dos fundos, em sintonia com as demandas dos movimentos que protestaram no ano passado. Um dos grupos, por exemplo, chama-se "No+AFP" (Chega de AFP, em português).
  • Esta reportagem é resultado de uma consulta da BBC Brasil a seus leitores. Questionados sobre quais dúvidas tinham sobre Reforma da Previdência, eles enviaram mais de 80 questões. As melhores dúvidas foram colocadas em votação e a pergunta vencedora - que recebeu 207 de 651 votos - indagava quais as diferenças entre o modelo de Previdência brasileiro e o do Chile e qual dos dois sistemas tinha se mostrado o mais justo. Esta reportagem é o resultado da investigação feita a partir da pergunta enviada pelo leitor.