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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Brasil, a lenha, por Xico Sá.


Em nome de uma certa modernidade suspeita, a direita golpista devolveu o país ao primitivismo



Brasil a lenha

Taí uma coisa que devo agradecer à turma do golpe: o Brasil está de volta ao fogão a lenha. Benvindos ao mundo primitivo. Obrigado Temer e aliados de todos os poderes, inclusive do meu, o tal quarto poder da imprensa.


Tudo bem, amigo da outra margem do rio ideológico, posso chamar aquela presepada do Congresso de impeachmentem vez de golpe, desde que você acompanhe esta minha crônica piromaníaca. Acenda a primeira tocha aquele que nunca apelou por leitores.
Tenho um amor ancestral por um fogão a lenha. Nasci e me criei no Cariri sob o fogo de cipós de marmeleiro e troncos de aroeira, ainda hoje conjugo o verbo crepitar nos meus sonhos paleolíticos. Como era lindo. Vou para a casa da família da minha mulher em Gonçalves, Minas, e volto, imaginariamente, à beira do fogão de vó Merandolina Freire de Lima, índia de Águas Belas (PE), a sábia que me ensinou a diferença entre o cru e o cozido muito antes do pagode uspiano do gênio Claude Levi Strauss. O Brasil movido a lenha, a rentismo e a faroeste de primeira instância jurídica é o que há de mais moderno. Benvindos ao medievo brasuca.
Epa, chega de romantismo folclórico urbanoide babaca. Parece que minha tia Neuzinha me dá a primeira bronca: “Botijão de gás a cem reais é o inferno para alimentar tantas bocas, catei lenha por uma vida, mesmo nesse deserto onde não tem mais nem cipó de nada. E aquele mingau para um neto que chora fora de hora?”. Totonho Marcelino, caboclo roceiro, meu camarada de infância na mesma freguesia caririense do Sítio das Cobras, entorna o caldo: “Acho que a gente aqui das brenhas, do mato, não merecia o que teve direito nos últimos tempos. Voltamos a ser aqueles que nem merecem um fogãozinho de botijão, como foi a vida inteira, voltamos a ser os esquecidos”.
O amor pelo fogão a lenha não encontra amparo entre os meus. Entendo. E olhe que eles nunca leram o sempre necessário doutor Drauzio Varella: “A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o fogão a lenha o fator ambiental responsável pelo maior número de mortes, no mundo inteiro. Morre mais gente como consequência desse tipo de poluição doméstica do que de malária (causadora de 800 mil mortes/ano). Mulheres e crianças que vivem em pobreza extrema correm risco mais alto, porque ficam mais expostas – os homens tendem a passar menos tempo em casa”. Poxa, doutor Drauzio, aí já matou meu romantismo por aquele fogão lenhoso que usufruo como luxo, vez por outra, não no dia-a-dia das precisões. Sim, tia Neuzinha, esse sobrinho camarada se aburguesou nos modos & modinhas das capitais.
A política internacional de preços, blábláblá, explica a diretoria da novíssima Petrobrás, vendida até o talo das sondas do pré-sal aos gringos do pós-golpe, lascou seu amigo Totonho e todos os seus parentes do Ceará e de Pernambuco, se conforme. Só me resta, tia Neuzinha, meu amor ancestral pelo fogo a lenha. A política internacional de preços nos lasca mais que maxixe em cruz. Ainda bem que parei de acompanhar a geopolítica do petróleo desde a Guerra do Golfo, ufa!
Ainda bem que acreditei no que os colunistas de economia dos jornais e tevês brasileiros me venderam sobre a vida pós-Dilma, é só tirar a “vaca” -sobe o coro dos playboys na abertura da Copa em Itaquera. O economista Marcio Pochmann, no entanto, tenta me convencer ao contrário, um maluco: “Com a Ponte para o futuro do neoliberalismo, 1,2 milhão de famílias abandonaram o gás de cozinha em 2017 e tiveram que apelar para o uso do carvão e lenha. Última vez que isso havia acontecido em maior proporção foi em 2002, no governo FHC.”
E eu achando que o golpe, desculpa, amigo(a), o impeachment, tinha devolvido pelo menos uma coisa incrível, o fogão a lenha. Nem isso. Tentarei não ficar triste com o que fizeram com este país. Tem fogo?
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de O livro das mulheres extraordinárias (editora Três Estrelas).

Trompete invade link da Globo e abre perspectivas na guerra semiótica, por Wilson Roberto Vieira Ferreira.


A invasão de um solo de trompete num link ao vivo do “Jornal da Globo” entoando o refrão de “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula” é mais uma mostra da eficiência da estratégia de guerrilha antimídia do “culture jamming” (trolagem) – tática anárquica de criar ruídos, atrapalhar ou interferir no fluxo normal da informação. No atual cenário de guerra híbrida (demonstrado pela imediata criação de uma “cinderela de esquerda” pelo BBB18 após a ocupação do “tríplex do Lula”), a trolagem do link ao vivo da Globo demonstra seu poder de fogo por potencialmente mobilizar elementos semióticos de opinião pública fundamentais: clima de opinião, importância e ambiguidade, ironia e sarcasmo e trolagens multi-culturais. Eficácia que só aumentaria através de uma espécie de “temporada de caça aos links ao vivo da grande mídia”, ação de guerrilha midiática que atingiria o ponto fraco da TV atual: apesar do seu “tautismo” crônico, a TV tem necessidade de abrir pequenas janelas (blindadas) para o mundo. Afinal, ela vive do álibi da informação e entretenimento.

Lá pelos idos de 1983, o semiólogo italiano Umberto Eco já alertava que a televisão há muito tinha deixado de ser uma “janela aberta para o mundo” no seu texto “Televisão: a Transparência Perdida”.  De uma televisão que “falava das inaugurações dos ministros e cuidava para que o público aprendesse apenas coisas inocentes, mesmo à custa de contar mentiras”, hoje a TV fechou-se em si mesma: é metalinguística, fática, ou seja, interessada apenas em manter o contato, a audiência.

Tão fechada em si mesma que para ela os eventos do mundo só acontecem para que ela possa transmiti-los segundo sua logística e que, de preferencia, dê para se encaixar na sua grade de programação. Caso contrário, não aconteceu. Não foi História.

Por isso, nunca uma mídia se tornou tão forte e autocentrada como a televisão - e no caso brasileiro, exponencialmente com o fenômeno do monopólio da Rede Globo. Mas ao mesmo tempo tão frágil a qualquer imprevisto ou acontecimento eruptivo que abale a descrição que a TV faz de si própria.

O trompete inconveniente

O incidente do solo de um trompete entrando no link ao vivo do Jornal da Globo na noite de quarta-feira (25) é um exemplo dessa fragilidade que repentinamente pode ser revelada na  demonstração diária de poder da TV (Globo) - veja o vídeo abaixo. 


Ao vivo de Brasília, um repórter iniciava comentário sobre a reação dos procuradores da Lava Jato diante da decisão do STF que favoreceu Lula – bate-bumbo necessário para mostrar que a emissora paira como uma ameaça sobre a cabeça de cada ministro do Supremo.

Depois de alguns segundos, ouve-se de fundo um solo de trompete do refrão tradicional “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Estoico, o repórter continua a tecer os seus comentários, como se nada estivesse acontecendo. Dá para imaginar o esforço do jornalista naquele momento, para manter o fio da meada dos seus pensamentos – se não, deve ser mais um profissional da emissora que pratica o jornalismo de ponto eletrônico: repete os comandos que vem do switcher ou dos próprios chefes de redação.

Quanto mais o repórter tentava ignorar o solo, mais alto o trompetista Fabiano Leitão tocava. E depois, numa outra entrada ao vivo com o mesmo repórter, Fabiano tentou emendar com outro clássico, o “Lula lá”, das eleições presidenciais de 1989.

Este Cinegnose vem insistindo na eficácia de táticas anárquicas de guerrilha antimídia no atual cenário de guerra semiótica comandado pela Guerra Híbrida - colocada em ação desde 2013, diretamente dos próceres do Departamento de Estado dos EUA a partir do momento em que o Brasil tornou-se uma ameaça à geopolítica norte-americana do petróleo.

As táticas conhecidas como “media prank” (pegadinhas) ou culture jamming (trolagens) são tão conhecidas como a estratégia de “empate” (tática entre o pacifismo e o belicismo) colocada em prática na ocupação do “tríplex do Lula” no Guarujá.


Explorando o ponto fraco da TV 


As pegadinhas e trolagens como guerrilha antimídia podem ter efeitos cada vez mais letais se entendermos essa fraqueza da TV (e de resto da grande mídia de massas): quanto mais as mídias tornam-se tautistas (tautologia + autismo midiático), mais tornam-se vulneráveis a irrupções do mundo externo.

Embora a televisão se torne cronicamente fática e metalinguística, ela ainda necessita abrir pequenas janelas (blindadas) para o mundo externo: links ao vivo, transmissões de eventos esportivos, coberturas de manifestações políticas, enviar repórteres a campo etc.

Nesse momento revela-se a fraqueza da poderosa TV em geral (Globo, em particular): as pequenas janelas abertas para o mundo real (afinal, o álibi da TV permanece a informação e o entretenimento) são blindadas pela pauta, ponto eletrônico e todo o aparato logístico... mas estão em ambiente público.

Essa blindagem pode ser constantemente desafiada e colocada em xeque com acontecimentos irruptivos, imprevistos. Não violentos, mas irônicos.

O teórico da “culture jamming” (a tática de criar ruídos, atrapalhar ou interferir no fluxo normal da informação), Abbie Hoffman, dizia no seu livro “Steal This Book” (1971) que deveriam ser explorados quatro sentimentos: choque, vergonha (alheia), medo e raiva. Mas poderíamos acrescentar um quinto sentimento: a ironia (o humor, o riso cínico). O mesmo efeito de riso das gags contra o socialmente mais forte que Chaplin adorava colocar em seus filmes. Como, por exemplo, a gag do sorvete que cai no decote de uma burguesa com seu colar de pérolas.

Qual a eficácia de uma trolagem como essa do trompetista que atrapalhou o livre fluxo ideológico do Jornal da Globo? Vamos ver alguns aspectos:

(a) Clima de opinião: 

Toda a tática de guerra híbrida não objetiva a doutrinação, mas a criação de um etérico “clima de opinião”: a falsa percepção de que há um consenso ou de que a maioria pensa, age ou aceita determinada orientação: impeachment, justiça, prisão aos corruptos etc. Como se faz isso? Com bombas semióticas explodindo em consonância, acumulação e onipresença. O que acaba criando um “clima” no qual a percepção substitui a realidade.

Se as trolagens e pegadinhas forem generalizadas (TEMPORADA ABERTA DE CAÇA AO LINKS E TRANSMISSÕES AO VIVO!) num único sentido (no momento, o slogan “Lula Livre”), potencialmente pode-se criar esse clima de opinião positivo à causa.

Claro que a blindagem da grande mídia reagirá qualificando tudo como “vândalos petistas” etc. Mas percepções são mais poderosas do que palavras. Para as massas, imagens valem mais do que discursos.

(b) Importância e ambiguidade: 


Para muitos pesquisadores (Allport, Postman, DiFonzo e Bordia – veja referência no final), esses dois quesitos são fundamentais para a massificação e viralização de um acontecimento. Ver a poderosa Globo numa situação de saia justa é “importante” (até para um deleite mórbido: ver o outro em maus lençóis...) e, ao mesmo tempo ambíguo – um trompetista no meio da noite fazendo um solo de uma música familiar é curioso, interrogante, instigante pela surpresa e até bizarrice.  


(c) Ironia, sarcasmo: 


foram irresistíveis os trocadilhos como “tromPETISTA”. Além da própria sonoridade do trompete naquela situação: na dissonância cognitiva entre uma notícia grave e o solo do artista, o som do trompete pareceu um comentário cínico ao que o repórter dizia. Criando uma atmosfera farsesca ou de ópera bufa.

(d) Trolagens multi-artísticas: 


A intervenção por meio de um instrumento musical, abre uma perspectiva de novas ideias para trolagens. Para além de pessoas passando e gritando “Globo golpista!” ou mostrando furtivamente faixas ou cartazes para o campo da câmera, um solo de trompete abre novos caminhos mais bem elaborados – instrumentistas, atores, malabaristas e toda a sorte de personagens da ruas como vendedores de panos alvejados. Aliás, os novíssimos produtos da crise econômica, ironicamente qualificados como “empreendedores”.

Um Grupo de Inteligência Semiótica (GIS, ideal utópico desse humilde blogueiro, se é que a esquerda se interesse num tipo de guerra simbólica – lutar no mesmo campo no qual ela foi abatida e defenestrada do poder),  assessorando a esquerda com propostas anárquicas de ação antimídia, articularia essa “temporada aberta de caça”.

E muito mais do que isso: politizar todas as ferramentas que o marketing e a publicidade utilizam: em tempos de “paz”, promover produtos e serviços. E em tempos de deflagração, promover Guerra Híbrida.

Por “politizar” entenda-se trocar os sinais das ferramentas de comunicação  comumente usadas pela Publicidade: buzz marketing, marketing de guerrilha, buzz agents, agentes virais, marketing viral etc. Mas agora, com o sinal ideológico trocado ao serem utilizadas pelas esquerdas.

Quem sabe, a esquerda esteja começando a entender a urgência de repensar as práticas de manifestação e constestação. Afinal, em menos de quinze dias, testemunhamos duas arrojadas táticas de guerrilha semiótica: a ocupação do triplex do Guarujá e a trolagem do solitário trompetista noturno.

Referências


ALLPORT, Gordon; POSTMAN, Leo. Psicologia del Rumor. Buenos Aires: Psique, 1973.

DIFONZO, Nicholas; BORDIA, Prashmant. Psychological Motivations in Rumor Spreads In: FINE, Gary Alan. Rumor Mills – The Social Impact of Rumor and Legend. New Brunswick: Transaction Publishers, 2005.


Barbosa, o Lula negro?, por Juan Arias.


O que sabemos até agora sobre o pensamento político do homem que pode ser um dos candidatos mais emblemáticos das eleições é muito pouco



Joaquim Barbosa antes de uma reunião com líderes do PSB em Brasília no dia 19 de abril
Joaquim Barbosa antes de uma reunião com líderes do PSB em Brasília no dia 19 de abril  REUTERS






O juiz Joaquim Barbosa está tentado pela política, mas peca por ser muito reservado. Ao contrário dos políticos clássicos, cujas palavras não faltam, ele prefere a abstinência verbal. Os jornalistas, por exemplo, não são seu prato favorito. Eu mesmo tentei em vão conseguir uma entrevista com ele para este jornal diversas vezes. Embora alguns o tenham definido apressadamente como o “Lulanegro”, Barbosa continua sendo um enigma.
O que até agora conhecemos sobre o pensamento político do homem que poderia ser um dos candidatos presidenciais mais emblemáticos das próximas eleições é muito pouco. E é somente através de seus votos no Supremo, onde passou 11 anos e foi o famoso e polêmico relator do escândalo do mensalão, com seus implacáveis ataques contra a corrupção político-empresarial.
Mas Barbosa, que não carece de saber acadêmico e que lê e fala quatro idiomas, não pode ignorar um fato: se entrar na arena, será obrigado a se desnudar intelectualmente para que seus possíveis eleitores saibam o que pensa deste país poliédrico, com tantas almas diferentes. Um país que se debate entre a modernidade e as cinzas ainda vivas de um passado imperial e escravocrata.
Talvez por isso, Barbosa tenha começado a sair de seu silêncio. Quis iniciar sua nova tese de doutorado em política com a afirmação de que, para resolver os muitos problemas da nação, a começar pelos econômicos, não adianta o que ele chamou no jornal O Estado de S. Paulo de “uma engenharia social de soluções puramente especulativas”.
Por suas primeiras declarações, podemos ao menos saber que, se Barbosa chegar ao Planalto, o Brasil que ele avistará lá de cima é um país “social e estruturalmente frágil e desequilibrado, com desigualdades profundas e historicamente enraizadas”. E para esse Brasil, diz, não servem, na economia, posições “ultraliberais”. Essa é, até o momento, sua primeira marca de identidade, além de sua conhecida abertura em defesa dos direitos civis e da rejeição a todas as discriminações raciais e de gênero.
Barbosa não é marxista, e sim partidário do livre mercado, mas é consciente de que o Brasil não pode ser governado sem enfatizar o combate contra a miséria estrutural. É pragmático como aquele Lula do primeiro mandato, conhecedor das carências do Brasil oculto e marginalizado.
Haverá quem diga que Barbosa se prepara com esse primeiro desenho sobre o país para angariar os votos dos seguidores de Lula caso este não possa disputar as eleições. A política é também isso. Mas Barbosa não é o novo Lula e tem, sobre a realidade do país, uma visão mais analítica e menos triunfalista que a do popular ex-líder sindical. Sabe que não é certo, por exemplo, que 40 milhões de pobres tenham entrado definitivamente no paraíso da classe média. Talvez tenham, como escreveu Frei Betto, meia dúzia a mais de eletrodomésticos, mas é uma massa de pessoas ainda presa na carência cultural, herdeira das cicatrizes de uma escravidão que foi a última do mundo a ser abolida.
Barbosa, negro, intelectual, vindo dessa pobreza da qual pôde ser resgatado graças ao estudo, quer deixar claro, apesar de seu aparente mutismo, que continua existindo “o Brasil da pobreza profunda, cuja miséria é sua marca original.” Talvez o medo que Barbosa desperta na extrema-direita liberal seja que, se chegar à presidência, em seu olhar prevalecerá o Brasil dos despossuídos. Barbosa não é uma personalidade fácil, apaziguadora, nem de palavras doces. Se for mesmo candidato, o mais difícil de assimilar para ele será aceitar que a política é, por definição, “a arte do compromisso”.
Para Barbosa, mais do que para tantos políticos tradicionais, serviria o conselho radical do Livro do Apocalipse 3:16. “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” Ele não seria, de fato, um presidente para principiantes, para o Brasil da vassalagem ancestral ou o dos resignados. Menos ainda protetor de corruptos ou anestésico de excluídos. Não surpreende que desperte ao mesmo tempo admiração, receios e até medo.