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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

ELA NÃO VOLTOU MAIS (CONTO - PARTE VI), POR ALEXANDRE MEIRA.

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O mormaço da tarde demorava a passar enquanto Yolanda varria os fundos da casa com o pouco de vigor que sua idade já acusava. A força feita com os braços já escondia dores por todo o corpo  e calava vertiginosamente a voz da velha matriarca. Os últimos anos se encarregaram também de fazê-la revisitar sua história em reflexões e auto-críticas, já que suas experiências duras sussurravam que a vida não poderia ser tocada aos gritos como se leva uma boiada.
As costas das mãos volta e meia arrancavam o suor da testa, quando erguia o corpo e olhava com a tez franzida o interior da casa. Não havia quase ninguém. Numa breve reflexão elevou os olhos sobre a pensão velha, olhou o cão sarnento no quintal, as poucas galinhas, e sobretudo ouviu o silêncio angustiante da casa.
Yolanda abaixou a cabeça, suspirou fundo. Não havia mais alegria. Por mais que suas filhas e sua sobrinha tentassem poupá-las das rusgas e picuinhas familiares, ela sabia que o que havia perdido não poderia sequer ser amornado com o tempo. A mulher, então, reclamava o silêncio interior, atrás de uma paz de espírito que há muito não tinha contato. O barulho de panelas limpando a cozinha no fim de tarde já era esperado, mais uma vez. Uma rotina de trabalho inerme, quase torturante, em uma pensão que vivia às moscas. O tempo e as ausências sobravam todos os dias e Yolanda arrastava-se de um cômodo ao outro inconscientemente atrás de alguma coisa. Algo imaterial, embora de antemão se soubesse que  jamais poderia recuperá-lo.
Sentou-se em um toco de árvore seca que restava em seu quintal e, à pouca sombra, revisitou sua vida em pequenos flashbacks.
Margarete. Sua filha mais velha, cuja rispidez saltava aos olhos de todos. Sobrevivente à perda do seu herói ainda mocinha, fez-se pai no lugar do próprio pai, para ajudar a mãe e cuidar de suas irmãs e prima. “Minha menina...” pensou Yolanda. Não se lembrava quando da ultima vez fizera uma carícia que fosse no rosto da filha. Assim como não lembrava mais de um último sorriso seu. E isso doía.  Marejou os olhos, Yolanda, quando lembrou de Margarete, a menina de olhos brilhantes da infância, e a mulher precocemente castigada que se apresentava hoje.
Margarete nessa hora saia da cozinha e atravessava o quintal em direção as roupas no varal. Observada por Yolanda serenamente, estranhou e perguntou:
- Que foi, mãe?
Não respondeu. Apenas balançou a cabeça negativamente. Em poucos minutos Margarete entulhou as roupas em uma bacia fosca e levou para dentro da casa. Antes de sumir na escuridão do interior da pensão foi interpelada por Mirtes que gesticulava como de costume.
“Mirtes... Como ela e Mercedes são parecidas fisicamente!” Yolanda quase deixou escapulir um sorriso quando assim  pensou. Não fossem os poucos anos que a separavam poder-se-ia dizer das duas, que seriam gêmeas. A mais nova porém, ao contrário das irmãs, trazia consigo um jeito irônico, um sorriso leve, que as vezes dava um certo medo. Yolanda confessava-se, intimamente, que diante de Mercedes as vezes hesitava. Vacilava nas ações frente seu raciocínio rápido e matreiro. Como se soubesse de tudo mais que todas elas, e brincasse sadicamente com isso. Quase não acreditava que ela pudesse se divertir as vezes como parecia, durante aqueles anos tão duros para a família. Mercedes era uma charada. Até porque seus olhos não riam junto com os lábios. Mas sorria, e lindamente sorria.
- Ela não se parece comigo...
Concluiu a senhora rendendo-se até em admiração.
Mirtes e Margarete nesse momento discutiam dentro da casa. Escutou o buliço, a velha senhora. Era comum. Diferente do barulho que faziam na infância, mas era comum. “Como minhas filhas mudaram... ”. Yolanda sabia, por exemplo, que o dissabor da vida de Mirtes era uma dor que sequer ela com todas suas angústias havia sentido. Por isso até a compreendia mais que as outras, o veneno que saía de suas palavras eram quase uma compensação.  Uma espécie de prestação de contas com Deus.
Mas fato era que toda uma amargura, um peso sufocante, desde o nascimento de João tomava conta de toda aquela casa. Passando pelo embrutecimento de Margarete, o olhar triste atrás do sorriso de Mercedes, as perdas dolorosas de Mirtes, a distância entre Mariana e Bento, e o isolamento de João.
Yolanda sentia ter falhado.
Ela beija o escapulário e contrai a boca em resignação.
Mirtes, falando alto, parecia chorar dentro da casa. Margarete por instantes sumira. “Onde está Mercedes?” Pensou alto Yolanda vendo tudo aquilo, enquanto ajeitava o saião acalorado.
- Pegando uma fresquinha Dona Yolanda?
Bento chegou devagar trazendo o menino João pela mão.
- Senta aí, meu filho. Cadê as meninas?
- Estão com Mariana. Eu estou só com o neguinho aqui!
João se riu ao lado do padrasto escondendo os dentes.
- Eu nem vi você chegar, meu filho. Vai ficar quanto tempo?
- Não sei Dona Yolanda. Acho que fico uma semana depois volto. Como é que as coisas estão por aqui?
- O de sempre, Bento. Só peço pra você ajudar a Margarete com a pensão, nesse tempo que você está com a gente. Essa menina não sabe fazer outra coisa que cuidar dessa pensão. Com a Mariana de barriga de novo, só a Mirtes que sabe ajudar a cuidar das meninas, mas você sabe, né...
- Eu sei...- disse Bento balançando a cabeça como se abjurasse.
Yolanda sentiu um cheiro forte de álcool vindo de Bento, mas preferiu ficar quieta. Se havia álcool no hálito de Bento só poderia ser do estoque da pensão. Sabia como aquilo irritava as meninas. João interrompeu a conversa:
- Vó, posso ir pra rua?
- Você sabe que não né, João. Só acompanhado!
- Fica quieto aí, neguinho!
Bento abraçou João com carinho, sentando-o junto com ele no chão. Retornou ao assunto:
- Mirtes precisa muito da senhora Dona Yolanda, acho que só a senhora ela ouve. Não respeita mais a nenhum de nós. Dá pra entender a dor dela, mas ela precisa de mais atenção, sabe? - disse calmamente enquanto estalava o pescoço.
A senhora ouviu calada, e o tom de cobrança de Bento foi certeiro em seu coração. Foi como um golpe em sua auto estima de mãe já abalada.
- Ah... filho. Eu não sei mais o que fazer. Eu já até parei de  pedir pra Deus poupar essa família. – disse com a voz embargada, justificando-se.
Bento apertou a mão da velha senhora e disse em tom grave:
- A senhora não pode perder a fé.
- Eu sei, filho. A fé permanece, o corpo é que não aguenta tanta pancada.
- Tudo tem seu tempo Dona Yolanda, o tempo de Deus é diferente do nosso. Se a sina dessa família é essa, a gente tem que dar conta dela. Cada um tem de se ocupar de acertar com as oportunidades da vida e corrigir os erros. - contra-argumentava Bento, sem olhar nos olhos da senhora.
- E quando um erro é grande demais pra se corrigir? - Yolanda disse friamente, olhando para João.
Bento virou-se para a idosa e disse:
- A senhora pode sempre contar comigo. Eu tenho defeitos, suas filhas podem até não gostar de mim, mas sou muito leal a senhora e a esse moleque. O que eu procuro fazer, é consertar as coisas do meu jeito, sempre querendo acertar.
João deduziu que o padrasto se referia as discussões com Mariana e suas primas. Yolanda responde com devoção:
- Você é um filho pra mim, Bento. O que você fez por esse menino e o que você faz por essa casa é mais do que eu poderia fazer...
João entendeu que sua vó se referia principalmente a participação financeira de Bento junto à família. Mas algo roubou-lhe a atenção.
- As tias tão chorando... - disse João apontando para dentro de casa.
- O que foi agora, gente? - disse Yolanda elevando a voz.
- Vou lá ver... - Levantou-se Bento ajeitando o cinto,  suspirou e seguiu a passos ritmados pra dentro da casa.

João restou ao lado de sua avó. Esboçou um sorriso, mas conteve-se. Poucas vezes na vida João recebeu um sorriso de volta da avó. Ficou em silêncio, remexendo o capim alto que cercava o terreno e adentrava o quintal coçando as suas costas. Sentia falta dos primos. Não tinha coragem de dizer isso pra ninguém. Diversas vezes brincava sozinho imaginando brincar com os primos.
Por alguns minutos ambos permaneceram em silêncio como se mal pertencessem a mesma família.
Dentro da casa os gritos aumentaram. A voz de Mariana apareceu no meio de todos, falando mais alto. Mais alguns minutos se passaram. Como um raio Bento saiu da pensão cortou a rua pelo lado de fora da cerca carregando a cartucheira com sua arma. Seguiu sem olhar para dentro do quintal. João olhou para a avó, estava confuso.
Yolanda se levantou, ameaçou ir para dentro de casa. Parou de medo. Alguma coisa angustiava seu coração. “Margarete? O que houve?!” Não houve sequer resposta. João continuava sentado, a espera de uma ordem, via sua vó de pé sem agir, com o olhar reto e apreensivo.
- O que será que aconteceu, meu Deus?
Yolanda estava certa de sua angústia.
De dentro da casa saem Mirtes e Margarete. Ambas externavam muito nervosismo. Vem em sua direção, a velha mal se mexia. João se levanta ao perceber que sua mãe ficara dentro da casa escura, mas o pequeno esperou para ouvir o que as tias tinham a dizer.
As irmãs pararam a frente de Yolanda sem falar nada, ofegantes e de mãos dadas. A velha pareceu adivinhar:
- Oh meu Deus... Mais isso eu não vou aguentar... O que aconteceu com a Mercedes?
João atônito, mais uma vez vê a sua família se desmantelar na sua frente.
Yolanda, a velha matriarca, mal conseguiu proferir qualquer sílaba, qualquer som, quando Mirtes e Margarete a abraçaram, e a partir de então chorando compulsivamente, entregaram-lhe um pequeno papel amassado, escrito a caneta falhada.
Leu. E durante os poucos segundos em que tentava entender o que estava acontecendo, sentou novamente sobre o toco de árvore seca. Suas filhas pularam contra seu corpo e a apertaram firmemente como se quisessem sumir com a dura realidade à força. A velha mulher, começou a soluçar tentando buscar uma resposta apenas, para as muitas perguntas que a tomavam.
Atrás das irmãs alçadas ao corpo de Yolanda apareceu bem devagar Mariana. Grávida de Maria da Paixão, a terceira irmã de João, parecia ter o rosto cortado de lágrimas. João correu e a abraçou forte. O menino assustado pergunta:
- Cadê a tia, mãe?
Mariana abaixa e fica quase da altura de João. Ele percebe seus olhos negros molhados e escuta a voz da mãe dizer em seu ouvido:
- Mercedes sumiu desde de manhã, meu filho. Sua tia Mirtes achou um recado dela dizendo que não voltaria, e para que ninguém a procurasse. Daqui a pouco anoitece, não dá mais tempo de nada..
O menino gelou. Sentiu a mesma dor de culpa de poucos anos antes. Um peso do tamanho do mundo subiu sobre suas costas, novamente, só que agora com nove anos de idade. Temendo ser o responsável mais uma vez pelas lágrimas da família perguntou ingenuamente, abraçando a mãe:
- Ela foi embora por minha causa?
Mariana passou a mão nos cabelos crespos do filho e disse com uma voz doce:
- Não, meu amor. A culpa não é sua.
Yolanda levantou os olhos e enxergou Mariana.
A sobrinha parou de respirar com o olhar da tia. Sabia que ela não estava aguentando o golpe. Teve certeza ali de que Yolanda não sobreviveria a aquilo tudo. Procurou manter-se firme, muito embora a imagem de Mercedes não parasse de roubar seu raciocínio.
Mariana lembrou de uma frase que a perseguia desde o nascimento de João. A prova de uma amizade que talvez fosse a expressão mais pura de bem-querer que ela tivesse ouvido na vida, tão grande quanto o amor pelo seu próprio filho.
Yolanda de olhar morto, mirou a sobrinha e resignadamente disse como se cobrasse uma explicação:
- Ela foi embora minha filha...
Mariana inspirou. Pegou ar. Precisava falar. Olhando para sua tia abriu levemente a boca num impulso de fala. A fuga de Mercedes representava para Mariana o fim da precária sensação de familiaridade que ainda sentia naquele lugar. Tudo era duro e frio sem ela. Mercedes sempre fora seu anjo protetor. Um anjo incondicional que a protegia do mal, mas também a protegia do bem, sobretudo quando o bem significava um justo acerto de contas. Mais apegada a ela do que as outras primas, cresceram juntas e dividiram tudo sempre. Todos os erros. Agora era só ela. Ela para enfrentar seus erros.
- Ela te falou alguma coisa minha filha, diga pra mim por favor. Por que ela fez isso? - interpelou dramaticamente Yolanda.
Mariana engoliu seco. Era essa a hora de falar:
- Se ela te disse me fala Mariana, por favor.
Yolanda pareceu se agarrar com as unhas no olhar de sua sobrinha. Mariana com os olhos negros arregalados respirou fundo. Sua voz viria naturalmente.
Um barulho na cerca do quintal.
Abruptamente adentraram o quintal, Bento e uma meia dúzia de homens. Ele parou com a mão na cintura, coçou a barba por fazer, e falou alto interrompendo o choro de Yolanda e filhas:
- Nada feito! Ninguém viu ela sair. Ninguém sabe onde ela foi... Tô com um pessoal na rua, mas... eu não sei, não...
Yolanda não reagia mais. As meninas empalidecidas seguravam os braços de sua mãe, mas qualquer notícia aquela hora que viesse teria o mesmo impacto de um amenidade. Sua alma estava morta dentro do corpo.
Era impressionante como de tempos em tempos aquilo retornava ao seio da família. Homens armados, desespero, as meninas chorando. Era impressionante como o silêncio calcinante se transformava no frio caos quando menos se esperava. Parecia arquitetado. Tudo aquilo assemelhava-se a uma doença crônica que a cada momento proporcionava uma dolorosa recidiva.
O que viria depois todos sabiam. As piadas, o povo remoendo lendas e superstições contra a família, e principalmente sobre o menino João. Talvez mais algumas oferendas ou despachos na porta da pensão. Era isso. Como se deleitassem o sofrimento de um condenado. Se havia algo que agia contra aquelas pessoas como todos acreditavam, estava conseguindo desestabilizar a todos. As pessoas daquela família começariam a partir dali aos poucos  a acreditar que seus próprios erros não seriam seus únicos credores. Havia algo maior. Só poderia existir uma arquitetura macabra. Algo lúgubre e paranormal, para o qual eles não estavam protegidos.
O silêncio após a fala de Bento era estarrecedor.
Mariana e seu esposo se olharam longamente e de maneira muito dura. O que remoíam esses olhares? João ouviu então a vó insistir com a sua mãe:
- Ela te disse pra onde iria, Mariana?
Mariana abaixou os olhos e disse quase sem conseguir:
- Não, tia... Ela não me disse nada...
Acabou.
Num gesto doce sua tia segurou o rosto de Mirtes que estava junto a ela. Se entreolharam profundamente. Não se contendo Mirtes abraçou o colo da matriarca e caiu em choro profundo. Acariciando cuidadosamente o cabelo encaracolado da filha a velha Yolanda falou:
- Agora eu sinto exatamente o que você sente minha menina...
Quatro meses depois Yolanda veio a falecer.

***

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