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quinta-feira, 30 de março de 2017

Daniel Blake encontra Antonio Gramsci, por Tarso Genro.


Tarso Genroreprodução

A centralidade do trabalho não acabará numa sociedade mais justa, mas ela deverá se transferir mais para um exercício de liberdade do que de submissão.


Li, anotada num velho livro de leitura recorrente, uma frase que me parece ser de Benjamin, que faz todo o sentido recordá-la, no momento em que as forças do conservadorismo e da reação obtém duas vitórias estratégicas sobre o mundo do trabalho. De um lado dividindo-o, mais uma vez, com a exclusão da Reforma da Previdência, de um grande grupo de servidores públicos, apostando na suas divisões corporativas e assim enfraquecendo a resistência à referida reforma. De outro lado, aprovando uma “terceirização” selvagem, que não só fragmenta as comunidades de trabalho – que são a base material da unidade de classe no contrato socialdemocrata, fazendo-o, para estimular formas de prestação de serviços que vão reduzir, brutalmente, o valor da massa salarial dos trabalhadores mais pobres: uma cunha política que divide, e uma cunha de diferença de renda, que segrega, eis as vitórias  estratégicas da contra-revolução neoliberal.

A retração do consumo vai agravar ainda mais a situação das empresas, pequenas, médias e grandes, que trabalham com os olhos postos no mercado interno, já que o reino da pobreza, com a recessão, vai se combinar, ora em diante, com o reino da intermitência, da precariedade e da meia-jornada, com uma fragmentação ainda maior na estrutura de classes. A possibilidade de redução generalizada da jornada de trabalho, com a redução das diferenças de salário e renda – posta em pauta pela evolução tecnológica e pelas novas forma de articulação produtiva – vai se transformar em jornadas maiores com salários reais mais baixos. É a contra-revolução neoliberal promovendo um novo ciclo de enriquecimento dos 1%, que preparam a sociedade dos três terços: 1\3 incluído à sombra da lei e da segurança; 1\3 de precários, intermitentes, meio-“jornadistas”; 1\3 de marginalizados, excluídos – casos de polícia – pedintes nas sinaleiras, órfãos do mercado. Na Europa foram criados os “mil-euristas” da socialdemocracia revogada, sobreviventes à margem dos empregos regulares em retração. No Brasil, são recriados os mais excluídos de todas as épocas.

Roberto Campos no seu  clássico autobiográfico “Lanterna de Popa” lembra este impasse, com a voz brilhante da direita conservadora que ele representava, na Inglaterra dos anos 70. O trabalhismo socialdemocrata, que gerara um modo de organização da sociedade e do Estado exemplares, no pós-guerra, encontrava-se num impasse: produtividade decaindo, competitividade em baixa no mercado mundial, crise fiscal em andamento, estagnação tecnológica e movimento sindical atado ao economicismo imediatista, promovendo greves que duravam meses e até anos. O trabalhismo, como representação política mais reconhecida dos trabalhadores ingleses, neste contexto de crise, ficou sem uma proposta convincente de mudança tributária e fiscal, que pudesse refinanciar o Estado, promover a inovação produtiva combinada com a socialização da renda. Foi a hora de Margaret Thatcher. Ela joga os sindicatos contra o resto da sociedade, reprime, privatiza, suprime as fábricas improdutivas, fragmenta o mundo trabalho, terceiriza e qualifica. O que poderia se tornar uma nova Noruega ou uma nova Dinamarca, torna-se um arremedo do modelo americano, consolidado, depois, como o “novo trabalhismo” de Tony Blair.

A frase a que me referi acima é a seguinte: “os animais e as máquinas não tem medo da morte, não sentem angústia diante do nada”. No filme de Ken Loach, “Meu nome é Daniel Blake”, acompanhamos um operário inglês com medo da morte e a sua “angústia diante do nada”. O “nada” é a ausência de oportunidades dignas de trabalho, de preocupação sensata do Estado com a situação dos trabalhadores; o “nada” é a ausência da classe organizada na fábrica como centro de solidariedade militante. Tudo isto forma o “nada”!  Mas, mesmo neste “nada” Daniel Blake não se deixa desumanizar e passa a buscar -não no seu nicho de trabalho redentor -, mas na solidariedade humana e de classe, a possibilidade de erguer-se como um gigante. Acima da máquina, acima do nada, acima do exílio da velhice solitária. Amanhã, os nossos trabalhadores humilhados e sem emprego formal “antigo”, ou serão novos “daniel blakes” ou, ainda mais alienados e brutalizados, sequer sentirão angústia diante do “nada”.

A integração do trabalhador na empresa empregadora, propiciou os direitos que foram paulatinamente construídos nas lutas originárias da fábrica moderna. Este processo fez, desta empresa, não somente uma “unidade produtiva”, mas também uma comunidade de trabalho. Nela, o capital precisou reconhecer e outorgar direitos para ter trabalho produtivo, gerar consumo e alavancar lucros. Ao viabilizar relações sociais e de trabalho, que foram sustentados na ordem jurídica e oferecer “paz social” mínima, os empresários da indústria moderna transitaram para o exercício de uma dominação concertada. Derrotada a ideia socialista da emancipação do trabalho pela autogestão dos trabalhadores, esta foi a saída civilizatória construída, pelo direito e pela política, no século passado. A terceirização é o “dobre de finados” da civilidade social-democrata e da sua empresa como comunidade de trabalho e é a ruptura jurídica e política daquela unidade orgânica, com regras formais de acolhimento cidadão para os trabalhadores. A reforma da previdência  é o seu “enterro”. A República se esvai.

As mudanças nas formas de organização da produção e da sua reprodução social, não vem de rupturas que anulam as formas velhas. As novas formas nascem do ventre das formas velhas e vão se tornando, paulatinamente, dominantes. Até hoje temos resíduos de trabalho escravo no Brasil e restos feudais, no interior do império do capital. O mesmo ocorre com as mudanças qualitativas na produção capitalista, que transita, hoje, do modelo industrial clássico da fábrica moderna – com suas extensas linhas de produção automatizadas que ainda vão perdurar- para a substituição da mão-de-obra operária tradicional pela robótica. A informática, o uso da telemática, o aproveitamento dos recursos da nanotecnologia, o controle pelos resultados, a produção e o uso da inteligência artificial é a nova equação histórica da renovação capitalista. Nesta época de crise da acumulação privada devotada aos bancos, todavia, – nesta mesma época – já foram criadas todas as condições materiais e pressupostos técnicos e tecnológicos para, pela primeira vez na história da humanidade, eliminar a carência.

Com estes meios de produção e esta experiência acumulada na organização do trabalho, poderíamos ter uma sociedade humana, não só reconciliada com uma exploração racional da natureza, mas também uma organização social e estatal transparente, onde ninguém passasse fome, frio, dormisse ao relento, onde todos tivessem um sistema de proteção à velhice e à saúde à disposição, com uma boa educação pública. Normas constitucionais que previssem as máximas desigualdades aceitáveis e as condições mínimas para a reprodução da existência, devida a todos. Mas toda esta riqueza material e da inteligência humana -acumulada pela ciência e pela técnica- possibilitou, não a emancipação, mas um sistema produtivo e social gerador de mais desigualdades, que no seu próprio sócio-metabolismo gera mais riqueza concentrada, consumo suntuário, privilégios de poder e territórios arrasados pela guerra e pela morte. A vitória da contra-revolução neoliberal é uma vitória política, que soube combinar a força da espontaneidade do mercado, com  o convencimento político de que a solidariedade e a igualdade são improdutivas e opressivas.

O impulso da “terceirização”, das relações horizontais entre cadeias de empresas, entre constelação de empresas em cooperação produtiva, o impulso da redução e da intermitência da jornada, o impulso da libertação do trabalho braçal e da supressão da monotonia -nas linhas repetitivas de produção- é impulso que retira os trabalhadores do contrato subordinante, na “velha” fábrica moderna. É um impulso de liberdade oposto à rotina, ao trabalho precário, à submissão aos ritmos da automação, que suga a alma e a energia dos produtores. Este processo, porém, não lhes joga de forma espontânea no território verdadeiro da liberdade corpórea e mental para melhor viver a vida, mas despeja-o na anomia e na semi-informalidade. Joga-o -no modelo de sociedade em gestação- na disputa selvagem da sobrevivência com baixa renda e lhe individualiza para concorrer com seu igual. Não para disputar melhores condições de vida com o tomador dos seus serviços. A luta de “interesses” ou luta de “classes”, como queiram qualificar, transfere-se, nestas condições, para o mundo interno das classes trabalhadores, cuja disputa se dá entre, de um lado, os que oferecem trabalho mais barato e, de outro, os que oferecerem-no mais “caro”, aos seus tomadores de serviços.

O grande problema que se coloca para a esquerda “pensante” e para o movimento sindical, que não quer perder as suas raízes de classe, é que este processo não é novo. A direita começou a pensar num projeto político estratégico, para responder a estas mudanças objetivas, na produção e no trabalho, desde os anos 70, compondo um projeto político para apropriar-se destas energias liberadas, com vistas a promover um consumismo manipulado, num novo ciclo de  enriquecimento dos 1% que controlam os mecanismos do poder mundial. Neste mesmo período, a esquerda ficou atada nas análises da contradição clássica da sociedade industrial, entre uma “burguesia”, que não é mais a mesma – pois é mera caudatária do capital financeiro globalizado – e o “proletariado”, que não mais o mesmo, pois foi levado a ser indiferente à “escória” desempregada, que se marginalizou ou veio de “fora”, disputar seus empregos.

Há mais de trinta anos, cabeças como a de Andre Gorz vem discutindo estes temas. No seu “Metamorfoses do Trabalho”, em cuja introdução explicita que no livro não vai discutir a “crise da modernidade”, mas a necessidade de modernizar os “pressupostos sobre os quais está fundada a modernidade” e dizer que não é preciso deixar de sermos utópicos, mas devemos mudar o sentido da nossa utopia, explicita: “O tempo da vida já não tem mais que ser administrado em função do tempo de trabalho, é o trabalho que deve encontrar seu lugar, subordinado, num projeto de vida.”

A centralidade do trabalho não acabará numa sociedade mais evoluída e justa, mas ela deverá se transferir mais para um exercício de liberdade do que de submissão a contratos subordinados. A utopia de uma sociedade “regulada”, como dizia Gramsci – pautada pela igualdade que faz o reconhecimento das diferenças – começa em cada reforma que controle o sociometabolismo espontâneo do capital e ordene as suas energias, para melhorar a vida cotidiana. Responder às terceirizações com novas tutelas sobre a prestação de serviços dos trabalhadores fora do emprego tradicional e regular, que vai ser cada vez mais escasso, e responder à reforma da previdência com um projeto claro, para proteger os trabalhadores públicos e privados de renda média e baixa – independentemente dos interesses das altas corporações do próprio serviço público –  pode ser um bom começo. Um Fundo Público, composto pelos impostos dos mais ricos e pelo uso do trabalho robotizado, para equalizar o rendimento dos intermitentes e precários pode ser um elemento importante do novo projeto socialdemocrata.


Não é de pasmar que os debates internos e os Congressos dos partidos políticos do campo da esquerda, despertem pouca atenção, fora de um círculo restrito dos seus militantes e dirigentes e se tornem, mais ajustes entre já convencidos, do que propriamente respostas amplas a questões políticas e econômicas de fundo, que já estão no cotidiano das classes populares. É que as propostas políticas para o “hoje” conservam, quase sempre, a visão de um passado idílico, que não existiu, e o gosto de uma utopia perfeita, que não se realizou. Falam, em regra,  para trabalhadores que não escutam e para cidadãos, em geral, cujas subjetividades vinculam-se mais aos sabores do rentismo, do que à jornada comum da sobrevivência do povo.

No dia em que foi preso pelos fascistas Antonio Gramsci, como Daniel Blake, não submetia à contemplação do “nada e tinha no bolso um bilhete endereçado à redação do “L’Unitá”, no qual afirmava “a necessidade de se habituar a pensar e a estudar também nas condições mais difíceis”. A situação que nós, da esquerda, vivemos hoje, recomenda atenção a este alerta do mais célebre prisioneiro do fascismo. Com a diferença que o nosso “pensar” e “estudar”, deve ser integrado aos movimentos de resistência concretos, contra as reformas em curso, porque quanto mais elas forem aplicadas integralmente, mais “insolidária” e insegura será a sociedade que vivemos e, em consequência, mais difícil será achar um caminho comum, que recupere o desejo da utopia e o gosto pela democracia.

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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Previdência: o rei está ficando nu, por Paulo Kliass.


Paulo Kliass *Beto Barata/PR

As pessoas começam a perceber que a previdência está equilibrada em termos financeiros. Caso insista na aprovação da maldade, o rei corre risco de ficar nu



A dinâmica do movimento político é mesmo surpreendente. Já dizia o falecido político mineiro Magalhães Pinto que a política é como as nuvens no céu: você olha em um determinado momento, está de um jeito. Passados alguns minutos, você vai conferir a configuração acima da tua cabeça e está tudo mudado. Se já é difícil entender o fenômeno em si, a tarefa torna-se ainda muito mais complexa ainda quando se tenta fazer algum tipo de previsão.

Depois de ter conseguido aprovar a chamada “PEC do Fim do Mundo” no final do ano passado com relativa facilidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o governo começa agora a enfrentar a realidade da chamada resistência generalizada. Aquela emenda constitucional estabelecia o congelamento das despesas sociais do orçamento por longos 20 anos e foi aceita pela maioria dos parlamentares ainda muito influenciados pelo discurso uníssono do governo e da imprensa em torno da necessidade imperiosa de um ajuste fiscal rigoroso.

Apesar de todo o debate que os opositores tentamos abrir na sociedade a respeito da irresponsabilidade criminosa subjacente àquela medida, o fato é que a reação popular não foi forte o suficiente para impedir o avanço da proposição e sua aprovação em 13 de dezembro. Até a data parece ter sido escolhida com bastante empenho e atenção pelos dedicados assessores palacianos. Em 1968, no mesmo dia, havia sido editado o famigerado AI-5, quando o Brasil mergulhou de forma profunda na pior fase da ditadura militar.

Não obstante a amplitude do arsenal de maldades envolvidos na mudança constitucional válida por 2 décadas, talvez a pulverização das atrocidades a serem cometidas no futuro tenha dificultado o sentimento de revolta da maioria da população. Por mais que o Brasil esteja afundado em uma crise econômica e social sem precedentes, assistimos a um inexplicável grau de apatia e consentimento das forças sociais. Essa relativa passividade fica ainda mais difícil de ser compreendida em se tratando de redução das verbas públicas dedicadas a temas como previdência, saúde, educação, assistência e tantos outros tão necessários em momentos como o que vivemos atualmente.

Reforma da Previdência: desaprovação generalizada.

No entanto, a reforma da previdência oferece um quadro bastante distinto. A proposição é muita mais incisiva em mudanças objetivas e claras. Em se tratando de uma PEC que retira direitos de forma ampla e universal, quase todos os indivíduos são atingidos - de forma direta ou indireta - pela matéria. Seja pelo risco oferecido aos que já estão aposentados, seja pela retirada de direitos dos que ainda estão na vida laboral ativa, seja ainda pelo completo descrédito que oferece às futuras gerações que ainda pretendem ingressar na fase de trabalho de suas vidas.

Assim, a questão política fica mais sensível e as próprias pesquisas encomendadas pelo núcleo duro do governo sistematicamente têm apresentado um cenário de elevada impopularidade dos temas sugeridos para a mudança previdenciária. Tendo já decorrido mais da metade do mandato dos parlamentares eleitos em outubro de 2014, os deputados começam a colocar na balança também a reação dos eleitores frente a tal medida. O Presidente começa, literalmente, a temer sobre a sua capacidade de tratorar o Congresso, como ocorreu em dezembro.

As advertências começam a pipocar aqui e ali. Dissidências no interior da própria base aliada são reveladas e emergem na superfície do cenário da disputa de poder. Líderes políticos conservadores se levantam quando o tema volta à baila, como Paulinho da Força Sindical ou dirigentes do PTB, como Arnaldo Faria de Sá. Ainda que não tenham abandonado seu perfil conservador em termos de projeto de país, tais referências do quadro partidário mais à direita expressam também o sentimento de suas bases sociais. Nesse debate, em particular, a contestação aberta da política oficial em matéria considerada “estratégica” pelo Palácio do Planalto não deve ser menosprezada.

Assim, o governo reconhece a importância de tais sinais emitidos e é possível que passe a levá-los em consideração . Por exemplo, pode incorporar a leitura da temperatura a partir da métrica oferecida pelos termômetros desses políticos de sua base, mas que mantêm algum grau de contato com o sentimento do pulso popular. Não é por outra razão que até mesmo o relator da matéria, escolhido por sua extrema lealdade e dedicação ao projeto de Temer, já sinaliza para a necessidade de alguns recuos organizados na tropa aliada. O deputado Artur Maia (PPS/BA) já avisou que a reforma não será aprovada da “forma como foi enviada” pelo Executivo. Isso significa que já avança a incorporação de críticas ao projeto.

Rachas na base aliada.


De outro lado, o núcleo duro começa a enfrentar problemas com os próprios partidos da base aliada. Estão aí alguns dos exemplos mais recentes de questionamento da capacidade de manter o grupo unido na defesa das maldades. Esse foi o caso sintomático das manifestações de caciques do PMDB a favor da liberação do voto dos deputados do partido, bem como o anúncio do PROS e do PSB de que seus integrantes votarão contra o texto enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional.

Nesse contexto ganhou relevância também a atuação pró ativa do amplo leque de entidades, especialistas e pesquisadores envolvidos com o tema. Apesar do evidente boicote patrocinado pelos principais órgãos de comunicação às vozes críticas ao projeto de Temer, conseguimos furar o cerco à informação por meio das redes sociais e até mesmo por meio de peças publicitárias encaminhadas por associações que se manifestaram claramente contra a proposta redutora de direitos.

Nesse momento em especial, a divulgação das informações reveste-se de fundamental importância. À medida que a população vai tomando consciência a respeito do tamanho das maldades incluídas no texto da PEC 287, cada vez mais vai ficando difícil para o governo conduzir a tramitação com a folgada maioria que ele se gaba de manter no interior do Parlamento. Mais debate e mais luz no assunto reforçam o sentimento de indignação popular contra a medida. E esse movimento coloca mais interrogação na cabeça dos deputados preocupados com sua imagem eventualmente arranhada perante o eleitorado.

Ainda que a preocupação não tenha se convertido em desespero, a luz amarela parece ter acendido nos dirigentes do governo. A tentativa destrambelhada de promover censura à divulgação de material contrário à Proposta revela tal dificuldade em lidar com a generalização crescente das críticas. Essa mesma motivação levou o Executivo a se apoiar em um esquema de publicidade típico de quem se vê acuado em sua estratégia. Na direção oposta a todo o discurso a respeito da crise fiscal e da necessidade de cortar despesas secundárias, o governo paga verbas milionárias para difundir a campanha mentirosa a favor das mudanças nas regras previdenciárias.

Os grandes jornais e as redes de televisão martelam cotidianamente as versões patrocinadas pelo Ministério da Fazenda a respeito da urgência da matéria e da catástrofe iminente caso a medida não seja aprovada. Matérias e colunas de “especialistas” buscam desqualificar os argumentos apresentadas pelos estudos que negam o “déficit estrutural” do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Esse é o caso do excelente documento “Previdência: reformar para excluir?” conduzido pela ANFIP e pelo DIEESE. Ali estão apresentados os números baseados nas estatísticas oficiais da administração pública federal e que evidenciam a manipulação de informações para justificar o desmonte previdenciário.

Isolamento de Temer e impopularidade da reforma.

As pessoas começam a perceber que o sistema da seguridade social está equilibrado em termos financeiros. Existe até mesmo um orçamento anual aprovado pelo poder legislativo tratando do tema que engloba previdência, saúde e assistência social. O ponto sensível é que o Executivo se apropria das fontes de receita tributária que deveriam ser destinadas para esse fim e as utiliza para promover o famigerado superávit primário.

Na verdade, o problema de imagem começa em casa. É amplamente conhecido o fato de que o próprio Temer se aposentou aos 54 anos e recebe mensalmente salários somados a benefícios previdenciários em valores altíssimos. Ora, nessas condições, como justificar politicamente que o problema se resolveria com elevação da idade mínima para 65 anos, a exigência de 49 anos de contribuição e a proibição de acumulação para os setores da base de nossa pirâmide social?

Quase todos os dirigentes políticos que se lançam a clamar contra os supostos abusos do regime previdenciário estão no conjunto dos que usufruem dos benefícios desse mesmo sistema. Além disso, uma boa parte deles deverá constar da tão aguardada quanto temida “lista de Janot” - quando finalmente deverão ser oficializados os boatos vazados a respeito dos denunciados em esquemas de corrupção em vários níveis de governo e de ampla coloração partidária.

O aprofundamento da crise econômica e seus efeitos sociais operam como condimento para o crescimento da insatisfação popular e para o aprofundamento dos índices de impopularidade de Temer. O governo vai perdendo quadros e os colaboradores que ficam aos poucos vão perdendo as respectivas vestes. As denúncias de corrupção não cessam de vir à tona, mas o governo nada faz com os acusados de sua proximidade. Ao contrário, a cada dia que passa o presidente perde mais o prurido e o pudor. A sua imperdoável fala no dia internacional das mulheres revela sua enorme dificuldade de operar em sintonia com seu tempo e com as  aspirações da maioria da população.

Caso insista na aprovação da maldade previdenciária, o rei corre risco de ficar nu.



* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Terceirização: quais são as lições da experiência internacional? por Marina Wentzel.

Resultado de imagem para terceirização

Após a aprovação, na semana passada, do projeto de lei que libera a ampla terceirização, o Brasil ficou a um passo de ter um mercado de trabalho mais flexível. Mas quais são os prós e contras da mudança e como isso funciona em países onde a medida já é uma realidade?
Para buscar respostas, a BBC Brasil ouviu especialistas e órgãos nacionais e internacionais - como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o autor da proposta original da reforma, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e as Nações Unidas - e consultou estudos sobre o tema e os modelos existentes em outros lugares do mundo.
A proposta, que agora está nas mãos do presidente Michel Temer para sanção, gerou polêmica. Críticos dizem que sua entrada em vigor provocaria a precarização das condições de trabalho, enquanto defensores afirmam que a nova regra poderia trazer mais segurança jurídica para as empresas e os atuais cerca de 12 milhões de trabalhadores terceirizados do país.
Apesar de não haver consenso, os especialistas são unânimes em afirmar que a economia e as relações de trabalho mudaram, e que há necessidade de adaptação. A preocupação, segundo vários deles, é sobre as condições nas quais essas transformações são executadas e a vulnerabilidade dos trabalhadores diante delas.
Caso seja sancionada, a legislação permitirá às empresas subcontratar funcionários para realizar as chamadas atividades-fim - as tarefas centrais na produção de bens e serviços.
Desse modo, por exemplo, uma fábrica que monta eletrodomésticos poderá gerir toda a sua força de trabalho por meio de contratos terceirizados, evitando o vínculo empregatício com operários - hoje, só é permitido delegar a eles atividades-meio, ou seja, serviços periféricos como limpeza, segurança e suporte.
Além disso, pela regra proposta os contratos temporários poderão serão válidos por um semestre - hoje, é permitido um trimestre -, prorrogáveis por mais três meses, salvo acordo coletivo ou outra negociação.

Direito de imagem Reuters
Image caption Permissão para que toda e qualquer atividade seja terceirizada desagrada lideranças sindicais

O modelo no mundo

Na opinião do diretor da divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, UNCTAD, Richard Kozul-Wright, o modelo proposto pelo Brasil se mostrou pouco eficaz em outros lugares do mundo.
"Se a ideia é flexibilizar o mercado de trabalho para baixar os custos e fazê-lo mais competitivo, incentivando investimento estrangeiro direto, o que observamos em outros países é que esse modelo não é tão bem-sucedido", afirma.
"A maioria do investimento estrangeiro direto não é atraído somente por mão de obra barata, apesar de casos específicos. Mas não acredito que esse seja o perfil do Brasil, de competir como uma economia de mão de obra barata como a China e outros países do Leste Asiático."
A pedido da BBC Brasil, a Organização Internacional do Trabalho se posicionou a respeito do tema. Segundo o diretor do órgão para o Brasil, Peter Poschen, a terceirização é uma "realidade", mas é necessário tomar algumas precauções.
"Há que se verificar as condições em que são executadas, para que se garantam as condições de um trabalho decente", disse.

A internacionalização do trabalho


Direito de imagem Reuters
Image caption Está nas mãos do presidente Michel Temer sancionar ou não a lei
O fenômeno da fragmentação da produção por meio de contratos terceirizados se deve em parte à internacionalização do trabalho que ocorreu nas últimas três décadas - por meio da qual um produto passa por vários países desde a sua concepção até a venda. O processo é conhecido como Global Supply Chains, GCS em inglês (cadeias globais de valor, em tradução livre).
O iPhone é um exemplo de produto com cadeia global de valor - é concebido na Califórnia e manufaturado na China com componentes vindos de diversos países, para depois ser exportado para o mundo todo. A fábrica onde o celular é montado não pertence à Apple e os empregados que ali trabalham não têm nenhuma associação com a empresa criada por Steve Jobs.
Mas, em perspectiva, a participação em GCS traz prós e contras. Um estudo de 2013 da Organização Mundial do Comércio avalia o impacto positivo da redução de custos, mas alerta que os benefícios às vezes não são repassados aos trabalhadores.
O documento afirma que, por um lado, é positivo por contribuir para a "expansão da produção e ganhos de economia de escala, por meio da redução de custos, além de permitir que empresas e nações se beneficiem da transferência de tecnologia e práticas de administração".
Por outro lado, avalia que "enquanto a produtividade sobe, a participação avançada em cadeias globais não está associado com ganhos setoriais, o que sugere que os ganhos econômicos obtidos nem sempre são necessariamente repassados aos trabalhadores".
Ou seja, o lucro resultante da otimização não se traduziria em salários maiores.

Concepção x manufatura

É exatamente a forma como se dá a regulamentação dos processos de terceirização, bem como a qualificação da mão de obra e o investimento em pesquisa e desenvolvimento, que determina a posição das economias globais entre as que agregam mais ou menos valor ao produto.
No topo da pirâmide, estão os países ricos - responsáveis pela concepção, design e marketing do produto -, enquanto que na base estão os países pobres, responsáveis pelos insumos e manufatura.

Image caption Para autor da proposta, mudança ajudaria a combater o desemprego
Embora admita a dificuldade de comparar diferentes países, Poschen afirma que é possível fazer algumas constatações.
"Em geral, nos países desenvolvidos o trabalho terceirizado pode ser encontrado em todos os setores, com predominância nas ocupações de salários mais baixos. Já nos países em desenvolvimento o emprego terceirizado segue representando uma porção importante do emprego assalariado."
"Tem havido uma proliferação dessa modalidade nos setores onde o emprego típico era mais comum, como no setor público ou no manufatureiro", observou.

Problemas na Ásia e sucesso no Uruguai

A vulnerabilidade dos trabalhadores é o ponto central que distingue as situações de terceirização em experiências positivas e negativas.
"A OIT reconhece que o trabalho pode ser visto de formas contratuais variadas. O objetivo não é que ele se ajuste ao modelo típico, mas que todos estejam no conceito de Trabalho Decente", disse Poschen.
Segundo ele, para garantir esse conceito, é necessário que as tarefas sejam "regulamentadas com o objetivo de equilibrar as necessidades dos trabalhadores, das empresas e dos governos".
No caso de alguns países da Ásia, não são raros os episódios de abuso, nos quais fábricas operam em condições insalubres, fazendo uso de trabalho escravo ou mão de obra infantil.
As marcas que comercializam esses produtos raramente chegam a ser responsabilizadas, pois estão ocultas atrás de diversos contratos de terceirização.
O projeto de lei brasileiro abre uma brecha para que incidentes semelhantes ocorram.
Na versão aprovada pela Câmara foram suprimidos os artigos que tratavam da obrigação das empresas contratantes de reportar acidentes de trabalho. Por exemplo, se ocorrer a morte de um profissional terceirizado na oficina de uma fábrica que produz itens de grife, essa empresa não precisará reportar às autoridades a tragédia, permitindo que a marca se desassocie da responsabilidade social pelo caso.
"Em alguns casos podem ser criados acordos com múltiplas partes com o objetivo específico de eliminar responsabilidade e contornar a regulamentação (…) A fissuração ocorre através de uma gama de acordos contratuais, incluindo trabalho temporário por agência, subcontratação e franchising. Podem também aparecer através de cadeias de fornecimento, grupos empresariais, terceirização de trabalhadores autônomos, esclareceu Poschen.
Em contrapartida, um exemplo de regulamentação da terceirização bem-sucedido ocorreu no Uruguai, na indústria de Tecnologia da Informação e call centers.
Em 2002, a Tata Consultuncy Services, líder no setor de outsourcing da Índia, se instalou no país incentivando a construção de cadeias de valor global. A chegada de empreendimentos estrangeiros se seguiu a políticas públicas de forte investimento em educação.
O vizinho latino, que possui zonas francas para receber as empresas estrangeiras, exportou US$ 500 milhões em serviços em 2015. Cerca de 63 mil pessoas estão empregadas no setor e são profissionais com alto nível, que ganham na média US$ 2.500 ao mês.
A lei de subcontratação, aprovada ali em 2007, prevê que as empresas contratantes sejam responsáveis por garantir que os terceirizados cumpram com os pagamentos dos encargos sociais e em caso de litígio são solidários perante a Justiça, ou seja, dividam a responsabilidade.
Já no projeto de lei brasileiro, a responsabilidade só recairá sobre a contratante quando tiverem sido exauridas as possibilidades de acionar a terceirizada na Justiça.
Mas segundo Luciana Freire, advogada da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), essa subsidiariedade não é necessariamente ruim.
"Imagine um engenheiro que trabalhe para uma construtora. A construtora quebra, ele não tem a quem recorrer. Na situação terceirizada não. Ele ainda tem duas pessoas jurídicas acima dele para recorrer."

Mão de obra ociosa


Direito de imagem Divulgação
Image caption Projeto foi aprovado em meio a protestos na Câmara
O texto da lei aprovada pela Câmara é uma adaptação de um projeto de 1998, idealizado no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pelo então ministro do Trabalho, Paulo Paiva.
Em entrevista à BBC Brasil, Paiva explicou que um dos objetivos originais era retirar trabalhadores sazonais da informalidade e dar aos empregadores a oportunidade de cortar custos em situações de ajuste.
"Muitas pessoas da atividade urbana pediam licença para participar de colheitas e neste caso não existia nenhuma cobertura legal", exemplificou.
"Além disso, se a economia está retomando, você pode estimular a empresa a contratar um trabalhador. Se essa atividade se consolidar, a empresa pode mudar o contrato para tempo indeterminado, mas se não fizer isso, não terá de arcar com os custos de demissão", defendeu.
Para ele, a terceirização ainda evitaria gastos com mão de obra ociosa.
"É exatamente para que a empresa possa minimizar o custo de ter trabalhadores que em um determinado período ficam subutilizados. Com isso, ela consegue reduzir os seus custos e consequentemente aumentar a produtividade."
"Eu tenho a convicção de que o que estamos fazendo é aumentar a possibilidade de contratação de trabalhadores em uma economia que está passando por transformações", disse.
O secretário internacional da CUT, Antônio Lisboa, não concorda.
Segundo ele, o projeto "acaba totalmente com as relações de trabalho que o Brasil construiu nesses últimos cem anos". Na prática, avalia, há um "esfacelamento", porque a prestadora de serviço passa a contratar os trabalhadores como pessoa jurídica, um processo de "pejotização" que os deixa desamparados.
Lisboa faz referência ao termo "PJ", ou pessoa jurídica - amplamente utilizado para designar os trabalhadores que são terceirizados e emitem notas fiscais aos empregadores como empresas, ou pessoas jurídicas.

terça-feira, 28 de março de 2017

“Pode não haver 2018”, alerta o economista Marcio Pochmann.

“A crise que o Brasil vive hoje tem uma saída institucional, que é a eleição de 2018, com chance de o PT ou uma frente de esquerda vencê-la. Mas talvez possa não haver 2018”, afirma o economista e professor da Unicamp Marcio Pochmann

Por Redação – de Porto Alegre
O aspecto mais grave da crise política e econômica vivida pelo Brasil hoje é que o país está completamente sem rumo. A avaliação é do economista Marcio Pochmann, professor da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Segundo Pochmann, não há qualquer debate sobre um projeto nacional.
O economista Marcio Pochmann não vê as eleições de 2018 como um fato consumado no cenário político brasileiro
O economista Marcio Pochmann não vê as eleições de 2018 como um fato consumado no cenário político brasileiro
Os setores de petróleo e gás, construção civil, agronegócio e indústria automobilística estão gravemente comprometidos. O país está cada vez mais dependente de uma pauta de exportação primarizada. Segundo Pochmann, em entrevista ao jornalista Marco Weissheimer, do jornal Sul 21, em 2014, a indústria representava cerca de 15% de todo o produto nacional.
“Em 2017, esse número deve chegar a algo em torno de 8% a 9% do PIB, o que equivale ao que era o Brasil na década de 1910. A avaliação do economista Marcio Pochmann, professor da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), não recomenda nenhum otimista sobre o futuro da economia brasileira nos próximos meses”, afirmou.
Leia, adiante, os principais trechos da entrevista ao Sul21:
— Como você definiria o atual momento econômico que o Brasil está vivendo?
— Se olharmos do ponto de vista histórico, essa é a quarta recessão que temos no país desde que o capitalismo aqui se instalou, sendo a terceira do período em que o Brasil se tornou urbano e industrial. Essa é a recessão mais grave do ponto de vista da desorganização do sistema de investimentos do país. Não é apenas uma recessão no sentido da redução do nível de atividade, mas também pelo processo de desinvestimento com o fechamento de empresas no país.
A indústria que, desde a Revolução de 30, havia sido o vetor principal do comando da acumulação capitalista no Brasil, praticamente vai se desfazer com essa recessão. Já estávamos convivendo com uma fase de descenso da indústria. Em 2014, a indústria representava cerca de 15% de todo o produto nacional. Em 2017, esse número deve chegar a algo em torno de 8% a 9% do PIB, o que equivale ao que era o Brasil na década de 1910.
Podemos até, em 2017, ter uma inflexão na recessão, mas isso não significa que temos base sustentável para voltar a crescer, pois estamos cada vez mais dependentes de uma pauta de exportação primarizada. Além disso, o agronegócio está sendo atingido por uma série de denúncias. Os setores de petróleo e gás, construção civil, agronegócio e indústria automobilística, que foram importantes para viabilizar a recuperação da economia nos anos 2000, nos governos do PT, estão muito comprometidos.
O Brasil está sem rumo. Talvez essa seja uma das coisas mais graves que estamos enfrentando. Não há nenhuma discussão sobre um projeto nacional. O país está totalmente contaminado pelo curtíssimo prazo.
— Qual o impacto que a agenda do governo Temer, com propostas como a da ampliação da terceirização e da Reforma da Previdência, pode ter nesta conjuntura econômica?
— O governo Temer é composto por duas forças que, contraditoriamente, também expressam sua fraqueza. Uma é a capacidade de organizar uma maioria no âmbito do Legislativo. Durante o ciclo da Nova República, de 1985 para cá, dificilmente encontraremos um presidente com tanta capacidade de formar uma maioria como vemos agora. Essa maioria se expressa na perspectiva de que o próprio presidente Temer possa evitar a contaminação da Lava Jato. É uma maioria que se organizou muito mais em torno do medo de estar contaminada pelas investigações da Lava Jato, com a expectativa de que o governo Temer possa amenizar os efeitos dessa operação.
De outro lado, há a força que vem de grandes setores econômicos e midiáticos em torno das reformas neoliberais que estavam planejadas para os anos 90 e que foram interrompidas pelo ciclo de governos do PT. É isso que dá força ao governo Temer. No entanto, mesmo essa força tem uma fraqueza, na medida que não encaminha um projeto de inserção do Brasil no cenário internacional.
O que aconteceu semana passada com a aprovação da lei da terceirização é expressão de um pensamento que vem desde os tempos do império. Naquela época, esse setor das elites dominantes achava que as razões do atraso do Brasil estavam relacionadas à presença população negra e não ao modelo agrário exportador.
A solução que eles apresentaram para isso foi implementar um processo de “branqueamento” da população, com a atração de imigrantes europeus. Em 1872, dois terços da população brasileira eram compostos por negros e indígenas. Como resultado desse processo, em 1940, cerca de 63% da população do país já é branca. (…)

Demanda favorável

Agora, estamos vendo um terceiro movimento de flexibilização da CLT que se dá num quadro recessivo e que, possivelmente, não deverá ter um impacto positivo no nível de emprego, mas sim o rebaixamento das condições de trabalho. Os empresários, em uma situação como essa em que não há grande demanda por seus produtos, buscam sobretudo redução de custos. Como vivemos em um país com taxas de juros extremamente elevadas, que tem crescido em termos reais não obstante a taxa Selic ter caído nominalmente, e com um sistema tributário com problemas, a redução de custos é o caminho mais fácil que os empresários vão buscar para enfrentar a crise.
Os impactos dessas medidas na demanda serão desfavoráveis, o que pode comprometer ainda mais uma possível recuperação da economia brasileira. Há outros componentes que podem afetar essa possibilidade de recuperação. Tivemos agora esse episódio envolvendo o agronegócio e a indústria da carne. Estamos com problemas sérios envolvendo as administrações municipais e estaduais. Além disso, se as terceirizações aprovadas agora forem implementadas muito rapidamente, isso pode resultar no rebaixamento da taxa de salários, comprometendo o consumo. Essa conjunção de fatores pode fazer com tenhamos, em 2017, um terceiro ano recessivo.
— Você referiu que a participação da indústria na composição do PIB brasileiro regrediu ao estágio de 1910. Há quem diga que a decisão aprovada na Câmara dos Deputados liberando as terceirizações inclusive nas atividades fim significa o cumprimento do projeto de FHC de “virar a página do getulismo”. É isso o que está acontecendo, de fato?
— Nós temos uma polarização que é recorrente desde a Independência. É uma disputa sobre o comando do desenvolvimento brasileiro. Essa polarização já está presente em 1822 com José Bonifácio que defendia que o Brasil não podia ser apenas um país rural e agrário e precisava ter uma base urbana e industrial. Ao longo do Império, porém, a indústria brasileira nunca teve força, com exceção de algumas iniciativas pontuais. Com a República, ela passa a contar com o apoio de abolicionistas, como Rui Barbosa, que tem uma perspectiva urbana e industrial.
No primeiro governo da República Velha, Rui Barbosa chega a tentar um ensaio desenvolvimentista com base industrial a partir de uma política de expansão do crédito, que não tem sucesso. A partir daí, temos mais algumas décadas da República Velha sustentada no agrarismo.
A crise de 29, a revolução de 30 e o movimento tenentista abre outra perspectiva para o Brasil, colocando a industrialização no centro da agenda do governo. As Forças Armadas desempenham um papel importante neste processo, pois se dão conta que, sem indústria, elas também não terão capacidade de exercer as funções que imaginam ser fundamentais. A partir de 30, temos um projeto vitorioso que vem até a década de 80, quando começa a sofrer constrangimentos.

Setores contaminados

Acredito que o governo Temer, de certa maneira, é a pedra que faltava para retirar as possibilidades da industrialização brasileira. Isso não significa que não teremos indústria. Não teremos industrialização que é uma coisa um pouco diferente. Até a década de 30, o Brasil tinha indústrias também.
Havia a indústria da banha, indústria alimentícia, indústrias de bens de consumo não duráveis. Mas não existia industrialização que é a centralidade da indústria do ponto de vista da acumulação de capital. É ela que, ao expandir o seu próprio setor, contamina vários outros setores da atividade econômica. O que temos hoje basicamente é a força do setor de produção agro-mineral e o setor de serviços. São setores importantes, mas sem capacidade de permitir um ritmo de expansão sustentável para um país com mais de 200 milhões de habitantes.
Essa fase de descenso da indústria é uma longa fase de decadência do Brasil. A história econômica do Brasil é permeada de ciclos econômicos. Tivemos os ciclos do pau Brasil, da cana de açúcar, do ouro, do café e assim por diante. A industrialização possivelmente tenha se transformado num ciclo que teve seu auge e, a partir dos anos 80, vem apresentando sinais de decadência.
Com o governo Temer, creio que não teremos mais condições de ter industrialização porque o que vai sobrar serão algumas indústrias sem capacidade de oferecer ao país um projeto de desenvolvimento sustentável de longo prazo.
— Como você avalia a capacidade das forças políticas e sociais que apoiaram os governos Lula e Dilma para enfrentar as medidas que vem sendo aprovadas pelo governo Temer e suas conseqüências?
— Não acredito que o cenário que estou descrevendo até aqui seja algo definitivo. É uma avaliação do momento que estamos vivendo. Mas é possível virar essa página. Reconstituir a maioria política que viabilizou a vitória longeva de uma frente liderada pelo Partido dos Trabalhadores. Mas essa maioria foi muito fragmentada. Garantiu a governabilidade para repor aquilo que o neoliberalismo havia retirado nos anos 90. (…)
A crise que o Brasil vive hoje tem uma saída institucional. É a eleição de 2018, com chance de o PT ou uma frente de esquerda vencê-la. Mas, talvez possa não haver 2018.
— Considerando essa comparação com 64, há um ator importante que está em relativo silêncio na crise atual. As forças armadas que, inclusive, têm alguns projetos seus sendo ameaçados pelo governo Temer. Como é o caso do submarino nuclear. Na sua opinião, há alguma mudança qualitativa no papel das forças armadas em relação aquele de 1964?
— Após o golpe de 64 houve um processo de despolitização das forças armadas. Nos anos 50 e 60, as forças armadas eram muito politizadas. Essa característica, se não foi eliminada, perdeu importância. A impressão que eu tenho é que as forças armadas podem assumir um papel mais ativo. No caso de uma ameaça constitucional. Alguma coisa identificada como insurreição ou desorganização do sistema de segurança. Não me parece que elas possam repetir uma iniciativa como a de 64. Até porque o cenário internacional está bastante conturbado.
No governo Obama, deu-se uma presença muito grande dos Estados Unidos na retomada da liderança no interior da América Latina. O protagonismo assumido pelo Brasil certamente não contou com a aprovação do governo norte-americano. Agora, porém, os Estados Unidos vivem problemas muito mais significativos. E estão numa situação de maior insulamento, olhando para os seus problemas. O governo Trump não parece muito preocupado com outras realidades, diferentemente da política externa do governo Obama.
Então, o apoio externo que os golpistas tiveram em 64 não me parece estar materializado hoje. Alem disso, nem é preciso recorrer ao golpe clássico para evitar que ocorram eleições em 2018. Há outras formas como estamos vendo agora. Estamos vivendo um golpe e não estamos mais vivendo dentro da normalidade democrática.

Do luto à luta: pelo fim do transfeminícidio, por Berenice Bento.


190320-feminicídio
Há algo em comum entre os assassinatos de mulheres e os de transexuais, travestis e bichas – que sucumbem por performatizarem o feminino. Para certos machos, estamos todas condenadas a padecer no paraíso
Por Berenice Bento
Deixem-nos respirar. Deem-nos tempo, um mínimo, para elaborar nossos lutos, chorar nossos mortos. Ainda quando estávamos estarrecidos, nos perguntando até quando Dandaras continuarão a ser assassinadas, temos que nos debruçar sobre outro corpo. Camila, a Camilinha, uma jovem transexual de Salvador, teve seu corpo perfurado por 15 balas. Seu corpo foi encontrado abandonado em uma BR. Uma bala não bastaria para matá-la? O que esta fúria materializada em balas significa?
Até quando teremos que continuar perguntando “até quando”? Eu me lembro de quando explodi em choro, tristeza, angústia, ao ler a notícia que uma transexual brasileira, Gisberta, tinha sido assassinada em Portugal por 15 jovens e me fiz esta pergunta: até quando? Naquele dia, escrevi um artigo publicado em algum jornal. Era o mês de março, o mês do “fim do caminho, do pau, da pedra, fechando o caminho”. Cito:
“Quem a matou? Um homem? Dois homens? Não. Quinze adolescentes a torturaram durante horas, abusaram de seu corpo de todas as formas e, depois, a jogaram num poço. O laudo pericial apontou como causa da morte: afogamento. Ou seja, ela ainda tinha vida quando foi atirada no poço. Por que a morte de Gisberta não repercutiu no Brasil? Por que o silêncio? Por que tanto ódio?” (Um minuto de silêncio, em março/2006)
Gisberta, Dandara, Camila… O que está por trás do dado assustador que coloca o Brasil como o país campeão em assassinatos de pessoas trans e travestis? Se o seu estômago está conectado com seu coração tente ler as descrições dos assassinatos das pessoas trans e travestis no Brasil. Você talvez reconheça, como eu, que muitas vezes as palavras sucumbem e o que surge é uma reação física, inesperada e incontrolável: desejo de vômito, misturado com choro e dor no peito. Dandara, carregada no carrinho para entulhos, para lixo. Dandara, aquilo que ninguém quer e que deve ser destruída. Um corpo-lixo.
Para substituir o vômito, idioma corporal que surge quando não há palavras, eu tentei e ainda tento entender o que leva uma criatura a matar, em plena luz do dia e do luar, outra pessoa. Os assassinos de Dandara agiam sem timidez. Cada um queria provar que era capaz de proferir o melhor golpe. Eles não reconheciam nenhum ponto de conexão, ou de identificação, com a pessoa que suplicava para não morrer. Pareciam, diria, até orgulhosos por seu trabalho impecável de legítimos contribuidores da limpeza do mundo daquela merda, um “viado feio”. Faziam um trabalho de saneamento básico e Dandara era o resto que deveria ser levado e despejado em algum lixão.
Este projeto de limpeza tem cúmplices, tem nomes. Vocês, professores/as, deputados/as, juízes, mães/pais que acham que seu mundo é a medida da verdade, são cúmplices dos assassinos de Dandara. Vocês não querem mudar nada, nada. Escola sem gênero, negação de todo direito humano às pessoas trans e às travestis. Quem lhes deu este direito? Deus? Parem de transformar Deus em assassino. Ele deve estar cuspindo, vomitando todas as suas preces que justificam os assassinatos. Como Lady Macbeth, o sangue das Dandaras, Camilas e Gisbertas já migrou, não está mais aparente. Não está mais visível. Desejo-lhes pesadelos piores que os da rainha assassina da Escócia.
Nos últimos quase 20 anos tenho discutido gênero com professores/as, advogados/as, políticos/as… Nestas quase duas décadas o discurso se repete: “O que fazemos quando um aluno pede para ser chamado por nome feminino?”; “ah, mas a biologia diz que…”; “não estamos preparados/as para esta discussão…”… e por aí vai. Comecei a desconfiar que todos estes argumentos são, em boa medida, desculpas retóricas para não proteger, por exemplo, os/as estudantes que sofrem perseguição por não terem comportamentos “adequados” para seus gêneros Ora, você precisa de curso de altos estudos para entender que um ser humano está sendo assassinado? Você precisa de um diploma de doutor/a em estudos de gênero para entender que o seu papel como professor/a é não permitir nenhum tipo de violência contra os/as estudantes? A nossa sociedade está plena daquilo que Clarisse Lispector chamou de “sonsos essenciais”.
O que faz com que a minha “humanidade” não me ligue, me conecte com outro ser que tem olhos, boca, fala, pele, rosto e a mesma corporalidade que a minha? Por que ele/ela não pode ser digna de viver? Para termos direito a viver devemos agir de acordo com as expectativas sociais ditadas pela nossa genitália? A genitalização da humanidade nos diz que nada pode existir fora desta estrutura binária: mulher = vagina, homem = pênis. O que fez Dandara? Ousou contra a lei que funda a noção de humanidade: a diferença sexual.
“Mas as mulheres trans e as travestis não têm vagina”, foi um dos comentários que li na reportagem sobre o caso Dandara publicado no New York Times. Então, posso deduzir, que ter uma vagina assegura as mulheres não trans a certeza de que não sofrerão violência? Mas elas também são brutalmente assassinadas. Tanto as mulheres trans, as transexuais, as travestias e outras corporalidades sofrem vários níveis de violência de gênero. Por quê? Há um ponto de unidade fundamental entre as múltiplas feminilidades (e incluo neste campo as bichas): os femininos estão condenados a padecer no paraíso. Está na bíblia, no livro Gênesis. Parir, sofrer as dores do parto é uma metáfora que unifica as múltiplas corporalidades e performances femininas.
Talvez não tenhamos nos dado conta que há uma sinistra coincidência: países onde há elevado índice de feminicídio lá também as mulheres trans e as travestis são corriqueiramente assassinados. É o caso do Brasil e do México. Há, portanto, pontos de unidade entre o feminícidio e o transfeminicídio que revelam, nos empurram, para uma conclusão óbvia. A motivação dos assassinatos das mulheres trans e das travestis é por performatizarem o gênero feminino.
Qual o desdobramento político desta formulação? Todas as políticas públicas com as marcas de gênero devem ser acionadas pelas pessoas trans e travestis. Todos os crimes devem ser entendidos como motivados por questões de gênero. Mas ainda é pouco. Não me digam que não devemos discutir gênero nas escolas. Contra os sonsos essenciais, a desobediência. Vamos continuar debatendo e lutando por políticas educacionais de respeito radical às diferenças e, simultaneamente, lutando pela aprovação da Lei de identidade de Gênero João Nery que assegura às pessoas trans e travestis os direitos humanos fundamentais: a autodeterminação de gênero.

O Brasil e a direita shopping center, por Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Ato "contra a corrupção" em Copacabana: como em Campinas e em todo o Brasil, baixo comparecimento, desorientação política e definição social clara
Crônica de um domingo em Campinas, entre consumismo obsessivo, a bolha indie de Barão Geraldo e 500 manifestantes em estilo fitness, porém um tanto desconcertados

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel
Pequenos grupos políticos mais caracteristicamente de direita no Brasil (a saber: o Movimento Brasil Livre, o Vem Pra Rua e o Revoltados Online) convocaram para este domingo, 26 de março, manifestações públicas nas cidades brasileiras. Passado um ano das massivas manifestações puxadas pelos agentes desse espectro político, pedindo a destituição da então presidente Dilma Rousseff, não se sabe agora exatamente a que fim essa nova manifestação domingueira foi convocada. A suspeita sobre sua motivação recai principalmente sobre o possível desejo de marcar posição e mostrar a cara, principalmente agora que o governo cuja instalação essas forças patrocinaram parece estar contra as cordas em quase todas as frentes institucionais e políticas. Se a intenção era mostrar a cara, então ela apareceu de forma bastante marcada, e não foi necessariamente pela escala multitudinária das manifestações anteriores.
Campinas é uma cidade de grande porte do eixo da indústria de alta tecnologia do Estado de São Paulo. É uma cidade com uma portentosa classe média, eloquentemente avessa ao cultivo cultural e fã incondicional de shopping centers. Em Campinas vive-se fundamentalmente para consumir. A “vida social” ― e, pode-se dizer, pública ― é toda ela marcada por esse vetor simbólico imperativo, e mesmo as oportunidades em que as pessoas se reúnem são irremediavelmente vincadas, seja no seu motivo geral seja no conteúdo do diálogo entre as pessoas, pelo imperativo de consumir e, colateralmente, de ostentar, instaurando uma gramática da distintividade social ― na acepção que lhe deu o sociólogo francês Pierre Bourdieu ― que obedece a uma regra matemática bastante simples (e até obsessiva): quanto maior o poder aquisitivo, maiores as exigências de gourmetização do consumo. É difícil encontrar, em uma cidade como Campinas, algo que escape dessa lógica arrasadora.
Alguém poderia eventualmente lembrar que essa é também a cidade sede da segunda mais importante universidade do país, de modo que as coisas podem não ser exatamente assim. Acontece que, dos tempos do cenário do Feliz Ano Velho (final da década de 70), do Marcelo Rubens Paiva, para cá, a Unicamp se tornou um quisto acantoado em sua própria redoma social, e seus estudantes foram se refugiar em um distrito geograficamente isolado da cidade, o mundo de Barão Geraldo, onde cultivam, eles também, uma espécie de gourmetização “indie”, na sua pequena ilha de “estilo” ― evocando a distinção consagrada pelo arquiteto Anatole Kopp, entre “causa” e “estilo” ― alheia ao mundo ao redor e, quando muito, fustigada pela pontual mas continuada e exasperante violência urbana (que não distingue vítimas).
Por todas as suas características, Campinas pode, com certa facilidade, ser colocada no polo privilegiado do capitalismo avançado de enclave, com suas características contradições no que respeita à lógica de maximização da produção de necessidades ― insatisfeitas, evidentemente, porque num mundo onde só existem necessidades (de consumo), a satisfação é algo logicamente inalcançável ― e a manutenção de um exército (sempre tensamente contido) de serviçais.
Neste domingo, aqueles grupos políticos antes mencionados mais uma vez quiseram sair às ruas, naquele que para eles parece ser o seu condomínio natural e de direito: a Alphaville (no sentido do filme de Godard) da classe média paulista.
Há um ano atrás, a praça que leva o nome da mais relevante personalidade histórica campineira (a segunda é o barão do café e presidente oligárquico da República Velha, Manuel de Campos Sales), o compositor oitocentista Antônio Carlos Gomes ― ironicamente um nome do mundo da cultura ―, estava de tal forma abarrotada de gente na concentração para a manifestação contra Dilma Rousseff que qualquer central sindical sonharia em repetir a façanha (sem nunca ter se atrevido a isso). Naquele momento, os carros de som dos grupos de direita pediam cuidado com as plantas e anunciavam que a Praça Carlos Gomes tinha que ser tratada como (seu) patrimônio histórico. Eles pareciam ébrios de triunfo. Alguns meses depois, a mesma praça serviria de locação para as cenas iniciais da atual novela das nove horas da Rede Globo. Neste domingo, no entanto, em comparação com o que se passara um ano antes, o cenário poderia ser descrito como melancólico.
Ao deixar o ponto de concentração, a manifestação se estendia por não mais que dois quarteirões de uma rua estreita. Provavelmente não mais que 500 pessoas. Vestidas majoritariamente em estilo fitness e casual esportivo, elas deixavam bem marcado o ambiente relaxado de lazer domingueiro. Esse, obviamente, não é o mundo do trabalho; muito menos o da necessidade (e, por extensão, o do desemprego, da precariedade, do medo e das carências infraestruturais). Esse é o mundo dos abastados e despreocupados. Para eles, a “corrupção” é uma espécie de prurido, de brotoeja, uma micose que deve ser curada para que eles possam usar mais comodamente seus trajes esportivos.
Nesse domingo, ao menos em Campinas, os manifestantes também deixaram de lado, em certa medida, o amarelo CBF das camisetas de outrora para dar lugar a um inusitado e massivo verde-bandeira, como se tivesse sido minuciosamente planejado por um carnavalesco; a mesma cor, aliás, de uma multidão de cartazes impecavelmente bem impressos com o dizer “fim do foro privilegiado”. Em termos visuais, esse se tornava, portanto, o mote central da manifestação. Algum desavisado poderia concluir que se tratava de uma manifestação contra o velho e oligárquico establishment político (o mesmo a quem essas mesmas forças alçaram ao monopólio completo do governo, para que fizesse o “serviço” que dele se esperava); establishment este, teoricamente em conluio com as cortes para livrar-se da punibilidade judicial que o assombra. Não fosse contra ele, essa agora não seria mais que uma manifestação movida por razões estritamente… “processuais”. É difícil concluir se esse apego à picuinha foi o fator determinante do esvaziamento da manifestação. (Atenção! Isto pode ser uma ironia!). Mas o fato bastante óbvio é que não havia uma mensagem contundente. Pela primeira vez, talvez, uma manifestação política evocava mais silêncios que consignas. No fim das contas, os manifestantes pareciam marchar para esconder aquilo que eles não diziam ― ou que tinham vergonha de dizer.
Evidentemente, não se marchou pelo “fim do foro privilegiado” (muito menos pelo fim dos privilégios…). Os dois carros de som (um ao início e outro ao final do grupo de manifestantes) tonitruavam as invectivas espumantes que vêm caracterizando o estilo discursivo da direita desde o advento da Internet. Nesse quesito, a palavra de ordem era mais direta, pragmática e sedutora para os seus partidários: “Lula na cadeia!”. Ao que parece, o zelo “processual” dos nossos manifestantes lhes faz se sentir no direito de ocupar o lugar (ao menos de consciência transcendente) do Judiciário. Pérolas de adolescência política como essas eram pronunciadas por “puxadores” de óculos escuros, com pinta de garotões de academia, fazendo uso de uma prosódia anabolizada pelo estilo de um Galvão Bueno. Parecia até que por pouco, por muito pouco mesmo, não havia garotas do layout “panicat” no alto dos carros de som.
Além do mote visual do “fim do foro privilegiado”, os carros de som puxavam também os motes auditivos do “não ao voto em lista fechada” e do “em defesa da Lava Jato”. O primeiro parecia mais uma dessas picuinhas esvazia-manifestação. O segundo apelava para a força de um ícone messiânico que cada vez mais parece ter pés de barro e que, com as águas de outros marços que virão, pode definitivamente vir a se conformar a seu destino de pantomima.
A vacuidade das mensagens políticas deliberadas produziu, assim, um efeito curioso: a verdadeira mensagem política passou a ser aquela que estava implícita, que não era outra que simplesmente a presença visível dos manifestantes domingueiros em trajes esportivos: a presença dos abastados e despreocupados. Nesse sentido, não parece ter sido tanto uma manifestação, mas antes um desfile; um desfile, talvez, para mostrar uma cara mais verdadeira e expressiva da direita. Se é verdade que nos últimos anos a direita vem cada vez mais ocupando o lugar da especificidade no cenário político brasileiro, por oposição ao lugar da generalidade, da “normalidade”, que antes ocupava, parece que agora, cada vez mais, ela tem uma cara bem delineada.
O caso pontual de uma manifestação como esta de domingo, tomado aqui a partir de uma cidade como Campinas, pérola do pujante interior paulista, parece ter escancarado esse regime de visibilidade. Qualquer um que se detivesse em assistir à manifestação poderia estimar com relativa facilidade que a idade média dos manifestantes ficava na casa dos 50 anos. Havia um certo número de pessoas mais jovens, mas havia sobretudo uma grande massa de pessoas acima dos 60 anos. Um desses senhores trazia no peito um papel impresso com o dizer “intervenção militar já!”. A aritmética do aspecto etário com o reconhecimento de certas visões de mundo pode oferecer uma conclusão singela: não eram apenas idosos em uma manifestação como essa; eram efetivamente as viúvas da ditadura.
Outro elemento visual impactante, mesmo para um lugar do interior de São Paulo (talvez não o fosse no interior de Santa Catarina), é que raramente uma manifestação parece ter reunido tanta gente loira. Não deixa de ser um recorte fisionômico bastante inusitado da população brasileira, para que compareça em tal grandeza de amostragem numa manifestação política. Já foi o tempo em que a direita pintava o cabelo de acaju. Sem querer ensejar preconceitos ou estereótipos, mas apenas pelo intrigante do impacto visual: o que teria tornado a direita tão loira?
Em número reduzido, decepcionante para eles mesmos talvez (sobretudo depois das gloriosas manifestações massivas do ano passado), muitos manifestantes pareciam, desta feita, movidos por certa exasperação. Vendo um transeunte caminhar no sentido contrário da marcha, um dos manifestantes fez-lhe gestos incisivos de que era para o outro lado que se deveria caminhar. O manifestante parecia notavelmente contrariado. Mais atrás, alguns porteiros saíam dos prédios em que trabalhavam, em pleno domingo tão ciosamente (por outros) destinado ao lazer. Um deles, não se sabe por que impulso, chegou a comentar com algumas pessoas alheias ao acontecimento: “O Lula vai ganhar no primeiro turno!”

A esquerda, a carne e o pragmatismo masoquista, por Igor Fuser.

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Dilma, Blairo Maggi (atual Ministro da da Agricultura) e Renan Calheiros (ex-presidente do Senado)

Não somos nós os que sempre afirmamos, desde os nossos tempos de movimento estudantil secundarista, que o latifúndio (atual agronegócio) é inimigo do povo brasileiro?
Por Igor Fuser
Na campanha eleitoral de 2014, a Friboi fez um donativo de 200 mil reais, declarados, em favor de Jair Bolsonaro, candidato a deputado federal no Rio de Janeiro. O mesmo frigorífico foi um dos maiores anunciantes da mídia burguesa durante todo o período em que os principais veículos de imprensa, rádio e TV do país levaram adiante a campanha golpista.
Pois bem, como todos sabemos, os gigantes do oligopólio da carne, como a Friboi e a Brasil Foods, dona das marcas Sadia e Perdigão, foram denunciados por subornar fiscais da vigilância sanitária a fim de ocultar práticas ilegais que põem em risco a saúde dos consumidores. (Segundo o Sensacionalista, a carne da Friboi tinha até pelos do ator Tony Ramos…)
Diante do escândalo, qual é a reação de boa parte da esquerda?
Um militante mostra-se, numa rede social, preocupado com “a dissolução das forças produtivas”. Outros autores de posts e artigos, de variadas tendências políticas, denunciam, sem provas (e em alguns casos, nem mesmo a convicção), uma suposta conspiração imperialista para quebrar o capitalismo brasileiro.
Outros, mais cautelosos, se inquietam com a perda de mercados da pecuária brasileira na Europa e em outras regiões, com o avanço da concorrência e com as decisões de autoridades estrangeiras limitando as exportações brasileiras de carnes.
Não falta também quem reproduza, nos nossos espaços virtuais alternativos, o eterno argumento da direita de que o agronegócio é quem sustenta a economia brasileira, gerando divisas para o país com os seus negócios no exterior.
Nenhuma dessas ponderações é absurda, e a maioria dos que se manifestam nessa linha se situam no campo da defesa da soberania nacional e do desenvolvimento do nosso país.
Mas… peraí, não somos nós os que sempre afirmamos, desde os nossos tempos de movimento estudantil secundarista, que o latifúndio (atual agronegócio) é um inimigo do povo brasileiro? Não somos nós que nos revoltamos e indignamos sempre que trabalhadores do campo são perseguidos, agredidos, caluniados, presos e (como acontece frequentemente, ainda hoje) até assassinados, por lutarem pela reforma agrária?
Quem, senão nós, intelectuais de esquerda, temos denunciado, até perder a voz ou nos tornarmos chatos, o aberrante cenário da concentração das terras no país? E não é a pata do boi que está destruindo a Amazônia para fazer pastagens? Não são os grandes fazendeiros os culpados pelo genocídio dos guaranis no Centro-Oeste?
Mas, peraí de novo… Deve existir um plano genial por trás disso tudo, uma lógica. Ah, rá, aqui está: encontramos uma brecha na tramoia golpista! Esses pit bulls do aparato judicial-policial não imaginam a besteira que fizeram. Agora o agronegócio, ferido gravemente pelo denuncismo irresponsável, vem pro nosso lado e… crau! Fora Temer, acabou o golpe, diretas-já, quem sabe até uma Constituinte…
Calma, companheiro, acorde, chega de sonhar. O “rei da soja” Blairo Maggi continua lá, firmão, no Ministério da Agricultura. A Globo dedicou boa parte da sua programação de domingo, dia 19 de março, em horário nobre, para convencer os consumidores de que podem comprar a sua picanha sem medo. Enquanto isso, o Michel oferecia um jantar com carnes, nobres também, para os igualmente nobres membros do corpo diplomático em Brasília.
Será então (olhando por outro ângulo) que a situação no campo brasileiro mudou e nós não percebemos? Será que senhores das imensas sesmarias já não são os mesmos? A oligarquia rural já aceita conviver democraticamente e em paz com as organizações camponesas?
Doce ilusão. Leio no portal do MST que nesta segunda-feira, 20 de março, o mesmo dia em que ativistas, blogueiros e outros “formadores de opinião” do campo progressista enfatizavam o lado positivo (digamos assim) do agronegócio, no sul da Bahia trinta famílias sem-terra foram despejadas de uma fazenda (antes improdutiva) que ocupavam há dez anos.
No Paraná, militantes do MST continuam na cadeia, como detentos comuns, pelo “crime” de lutar pela terra, enquanto a truculenta repressão policial a comunidades indígenas no mesmo Estado continua causando mortes.
Cada um desses episódios tem na sua raiz a intransigência dos fazendeiros, ainda apegados ao costume colonial de tratar a questão agrária como caso de polícia. E a propriedade (muitas vezes, obtida ilegalmente) continua a ser encarada como um bem sagrado, em desafio à Constituição que enfatiza a sua função social.
Trabalho escravo, eu ouvi trabalho escravo? Centenas de trabalhadores dos frigoríficos mutilados, todos os anos, pela rotina massacrante no corte e preparo dos frangos?
O que é isso, compadre? Deixe de lado o que diz o Sakamoto. Vamos olhar o panorama mais amplo. O nosso inimigo principal não é o agronegócio, é o imperialismo. Uma aliança com o agronegócio? Sim, tudo bem, mas apenas uma aliança tática. Temporária.
Como? Repita, não ouvi bem. O quê? Você está me dizendo que as grandes empresas rurais do Brasil estão totalmente integradas nas cadeias globais de produção agrícola e pecuária? Que todo o esquema de sementes, fertilizantes, agrotóxicos, máquinas, tratores que impulsionam os recordes de produção do campo brasileiro, é tudo transnacional? Que a Friboi anunciou no ano passado que ia mudar a sua sede para Dublin, a capital da Irlanda, como um meio de evitar o pagamento de impostos no Brasil?
Mas que hora para lembrar disso! Você não está entendendo que as grandes companhias de capital brasileiro estão sendo perseguidas por forças (ocultas) externas? Sim, as grandes empresas em geral, não é só a Odebrecht, as empreiteiras. Querem acabar com tudo. Sim, até com os amigos deles, os sócios, os capitalistas brasileiros que sempre apoiam tudo o que vem de fora, que adoram Miami.
E a aquela minha ideia de organizar um evento em solidariedade aos frigoríficos? Não? Mas por que os empresários não querem? Como? Então eles nem deram retorno à tua chamada? Já tentou pelo whatsapp? E o nosso plano de B, um ato em frente à PF para protestar contra a perseguição às grandes empresas? Nem entrou na pauta da reunião, que pena.
Agora entendi. A Friboi, a Sadia e demais frigoríficos, na verdade, estavam do lado da Dilma, embora parecesse que estavam com os coxinhas. Não, não é bem assim? Apoiaram e participaram do golpe? Caramba! O Bradesco também? Sim, quer dizer, não, até certo ponto… Estavam, mas no futuro talvez deixem de estar, quem sabe. Ou não. Depende da conjuntura.
Ufa, caiu a ligação. Em boa hora. Esse papo estava ficando muito confuso. Mas valeu, beleza, acho que, finalmente, aprendi o que é pragmatismo, a arte de engolir sapos. Tipo assim, apertar a mão do Maluf em troca de 2 minutos diários no horário eleitoral.
Pragmatismo, no discurso da esquerda, é minimizar, relativizar ou flexibilizar certos princípios – ideias fundamentais de um projeto voltado para a transformação social no longo prazo – em troca de vantagens imediatas. Vivendo e aprendendo…
Alô, você, de novo? Não é bom falar em pragmatismo? Entendi, esse conceito não se aplica neste caso. De qualquer modo, acho que captei o mais importante. Certos amigos nossos estão a favor do apoio – tático, momentâneo, limitado – aos grandes frigoríficos, pecuaristas e oligopólios das carnes de ave e suíno, diante dessa ofensiva contra as nossas sagradas forças produtivas nacionais.
Assim, vamos obter algum saldo político, conquistar aliados preciosos, furar o cerco neoliberal e autoritário, avançar na nossa luta contra o retrocesso.
Não? Tudo vai continuar igual, o Lula ainda poderá ser impedido de se candidatar em 2018? E não ganhamos o apoio de nenhuma dessas empresas? Nada? E a previdência?
Acho que aqui temos uma novidade para os manuais da ciência política. Os livros dizem que o pragmatismo envolve concessões políticas e/ou ideológicas para alcançar resultados práticos. Uma espécie de barganha. Acabamos de inventar um novo tipo de pragmatismo: sem resultados de nenhum tipo em favor das lutas e das demandas populares, e nem mesmo a expectativa de obtê-los. O pragmatismo masoquista. Essa nem o Zizek explica.