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terça-feira, 28 de junho de 2016

O que os leitores querem: um jornalismo isento ou um espelho daquilo que pensam?, por Alexandre Marini.


Jornal GGN - Não existe jornalismo imparcial, segundo Alexandre Marini. Em artigo publicado no Observatório da Imprensa, o professor e sociólogo avalia que nos espaço destinado a artigos opinativos, cada vez mais a imprensa tem demonstrado o afunilamento de ideias, ou o esvaimento da "pluralidade". O leitor médio brasileiro costuma se informar a partir das redes sociais e, na maioria das vezes, busca conteúdo que confirme suas convicções e critica aquilo que vá de encontro com seus dogmas - inclusive desconsiderando o trabalho jornalistico por trás do que é divulgado. Para onde caminha a comunicação?
Por Alexandre Marini
Isenção ou identificação?
O que os leitores querem: um jornalismo que busque o máximo de isenção ou um espelho daquilo que pensam?
Há muito já sabemos que imparcialidade não existe nem em sentença judicial, quanto mais na produção diária de notícias. A crítica aos jornais deve também passar por uma crítica de consciência do leitor. Não basta acusar a ausência de imparcialidade das mídias jornalísticas, o que é importante, pois deve-se ir além. A busca pela imparcialidade está hoje mais na capacidade do leitor de buscar diferentes narrativas factuais e pontos de vistas entre as inúmeras fontes e formas de acesso trazidos pela era digital do que pela ação editorial dos jornais que, como já sabemos, nunca foram capazes de tal feito.
Anteriormente considerado um produto altamente perecível (o que as bancas de jornais não vendiam até o fim do período da manhã estava fadado ao encalhe), os jornais agora são reverberados pelos leitores através das redes sociais, durante o dia todo e, muitas vezes, pelos dias subsequentes (no último caso, o que importa não é a novidade da notícia em si, mas a capacidade de permitir passar a ideia que o leitor tem sobre o mundo ou seus problemas).
Cada vez menos o editor tem controle sobre o impacto do que é publicado. Segundo a Reuters, o brasileiro é o que mais consome notícias por redes sociais (70%) e o que mais comenta (44%). Uma notícia ou artigo em local de pouco destaque em um jornal pode ser compartilhado quase infinitamente, ganhando uma visibilidade antes impensada editorialmente. O 4º poder está mudando e isso deve-se muito à forma pela qual o leitor se relaciona com as notícias.

A pluralidade se esvai nos editoriais e nos artigos de opinião
Para repercutir uma mesma forma de pensamento vale qualquer coisa. De Joselito Müller a Diário Pernambucano, conhecidos por inventarem notícias falsas, são reproduzidos nas redes sociais como verdades desde que o artigo ou “notícia” tenha a mesma linha de pensamento de quem compartilha, o que, para muitos, parece ser o suficiente para ser verossímil.
Nesse ínterim, notícias sem qualquer relação com a verdade, como o gasto de milhões pelo Ministério da Cultura para a produção de uma estátua com mulheres seminuas em homenagem ao funk, tampouco com um discurso minimamente verossímil, como a instituição do bolsa-prostituta que daria dois mil reais ao mês para as mulheres que deixassem esta profissão,
Os grandes jornais de hoje não vivem só de novidades. Os artigos de opinião têm a capacidade de se aproximar do leitor (não necessariamente dialogar) e fogem da perecividade comum às notícias. Estas últimas servem, no entanto, como combustível para novos artigos opinativos, originais ou não, de qualidade ou não, repetitivos ou não. O número de artigos de opinião é quase tão grande quanto o noticiário. Basta ir a jornais como Folha de S.Paulo, Estadão e O Globo para perceber isso. Vendem, inclusive, a ideia de que essa pluralidade é sinônimo de isenção. Mas quem lê Guilherme Boulos, lê Kim Kataguiri?
A maioria dos articulistas conversa com um público específico, dado à reprodução de seus artigos nas redes sociais, pequenos sites, blogs ou demais páginas digitais, como música de uma nota só, repetitivamente, exaustivamente. Tal “pluralidade” defendida pelos jornais serve menos como análise dos fatos e mais como marcador de determinados pontos de vista ou ideologias compartilhadas por certos grupos de pessoas.
Nos pequenos portais de notícias, a pluralidade se esvai tanto nos editoriais, nos artigos de opinião, como nas notícias que produzem e reproduzem, geralmente contra ou a favor de alguma coisa. De Brasil 247 à Folha Política, quem entra lá sabe exatamente o que vai encontrar. Funcionam como as reprises dos programas e desenhos infantis – muitas vezes fantasiosos –, que não cansam as crianças mesmo sendo repetidos e repetidos indefinidamente, sem apresentar novidades no enredo. Diz a psicologia infantil que isto está ligado à capacidade das crianças de terem controle sobre o que veem. Sem surpresa, sabem, de antemão, que o rato dará um jeito de escapar do gato até final do episódio e que tudo acabará como deve acabar: sem sustos. O mesmo comportamento parece permanecer em muitos leitores, já adultos.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Por que não vale chorar pela união Européia? por Pepe Escobar.

BritReferendum
As consequências geopolíticas doBrexit” podem ser dramáticas. Para encará-las, esquerda deve lembrar que a UE nunca foi a “Europa dos Povos”
Por Pepe Escobar
Então, o que começou como chantagem feita por David Cameron e válvula de escape para o descontentamento dos britânicos, a ser usado como alavanca para barganhar com Bruxelas e arrancar mais alguns poucos favores, entrou em metástase e se converteu em espantoso terremoto político que tem tudo a ver com a desintegração da União Europeia.
O irrepreensivelmente medíocre Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, fazendo pose de “historiador”, alertou que o Brexit “pode ser o começo da destruição não só da União Europeia, mas da civilização política ocidental na totalidade.”
Bobagem. Está claro que a causa do Brexit é a imigração, estúpido. E mais uma vez é a economia, estúpido (embora o establishment britânico neoliberal jamais tenha dado atenção a isso). Mas pode-se apostar dinheiro sério em que o sistema da União Europeia em Bruxelas nada aprenderá dessa terapia de choque – e não se autorreformará. Haverá racionalizações de que afinal de contas o Reino Unido classicamente sempre reclamou demais, sempre se opunha a tudo e vivia a exigir privilégios extras nas negociações com a UE. Quanto à “civilização política ocidental”, o que acabará – e, sim, é grande evento – é o relacionamento transatlântico especial entre EUA e UE com a Grã-Bretanha lá enfiada como Cavalo de Troia dos norte-americanos. (…)
Como seria de prever, a Escócia votou “Fica” e pode fazer outro referendo – e separar-se do Reino Unido – antes de deixar-se expulsar pelos votos dos trabalhadores ingleses brancos. Na Irlanda, o Sinn Fein [herdeiro do Exército Republicano Irlandês-IRA] já quer plebiscito pela unidade do país [o que implicaria em separar a Irlanda do Norte do Reino Unido]. Dinamarca, Holanda e até Polônia e Hungria quererão status especial dentro da União Europeia, porque senão… Por toda a Europa, a direita movimenta-se como estouro da boiada. Marine Le Pen quer um referendo francês. Geert Wilders quer um referendo holandês. Quanto à vasta maioria dos britânicos com menos de 25 anos, que votaram “Fica”, talvez considerem viagem só de ida, não para o continente, mas ainda mais adiante.
Mostre-me o povo
O historiador anglo-francês Robert Tombs observou que, quando europeus falam sobre história, referem-se ao Império Romano, à Renascença e ao Século das Luzes. Passam pela Grã-Bretanha como se nem existisse, de certo modo. Em troca, há britânicos que ainda veem a Europa como entidade da qual se deve guardar distância segura.
Acrescente-se ao problema que não se trata de uma “Europa de povos”. Bruxelas absolutamente detesta a opinião pública europeia, e o sistema mostra resistência férrea a qualquer reforma. Nesse projeto atual de União Europeia, que visa afinal a ser uma federação modelada segundo os EUA, a Grã-Bretanha não se encaixa. Pode-se dizer que aí está uma das razões chaves por trás do Brexit – que por sua vez já desuniu o reino e pode eventualmente reduzi-lo a pequeno entreposto comercial na beirada da Europa.
Sem “povo europeu”, o sistema de Bruxelas só conseguiu articular-se como uma burocracia kafkiana, não eleita. Além do mais, os representantes dessa Europa sem povo em Bruxelas realmente defendem o que consideram que seja o interesse nacional deles, não o interesse ‘europeu’.
Mas Brexit não significa que a Grã-Bretanha ficará livre do que dite a Comissão Europeia (CE). A CE sim, propõe a política, mas nada pode seguir adiante sem decisões do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros, que reúnem representantes de todos os governos eleitos dos estados membros.
Pode-se argumentar que um “Fica”, no melhor dos casos, teria levado a algum exame de consciência em Bruxelas, e a um sinal de alerta, que talvez se traduzisse em política monetária mais flexível; em impulso para conter os imigrantes atrás das fronteiras africanas; e mais abertura em direção à Rússia. O Reino Unido permaneceria numa Europa que daria mais peso a países fora da eurozona, e a Alemanha concentrar-se-ia nas 19 nações membros da eurozona.
O “Fica” teria levado a Grã-Bretanha a aumentar o próprio peso político econômico em Bruxelas, e a Alemanha se abriria mais para algum crescimento moderado (em vez da ‘austeridade’). Mesmo que sempre se pudesse argumentar que a Grã-Bretanha rejeitaria a noção de um futuro ministro do Tesouro da eurozona, de um FBI europeu e de um ministro europeu do Interior – de fato, toda a noção de uma completa união monetária e econômica.
Já são águas passadas. Além do mais, não se pode esquecer o poderoso drama do mercado único.
A Grã-Bretanha não perderá apenas o livre acesso ao mercado único europeu de 500 milhões de pessoas; terá de renegociar todos e cada um dos tratados comerciais com o resto do mundo, uma vez que todos eles foram negociados pela/na União Europeia. O ministro da Economia da França e aspirante à presidência Emmanuel Macron já alertou que “se a Grã-Bretanha quer um tratado de acesso comercial ao mercado europeu, os britânicos têm de contribuir para o orçamento europeu, como fazem noruegueses e suíços. Se London não concorda com isso, nesse caso tem de ser saída total.” A Grã-Bretanha ficará excluída do mercado único – para o qual vão mais de 50% de suas exportações –, a menos que pague quase tudo que paga atualmente. Além disso e sobretudo, Londres terá ainda assim de aceitar a liberdade de movimentos, tipo imigração europeia.
A City ganhou um olho roxo
Brexit derrotou conjunto espantoso do que Zygmunt Bauman definiu como as elites globais da modernidade líquida: a City de Londres, o FMI, Wall Street, o Fed, o Banco Central Europeu [ing. European Central Bank (ECB)], grandes fundos de hedge/investimentos, todo o sistema interconectado do banking global.
Mais de 75% da City de Londres, como era de prever, votou “Fica”. Espantosos US$2,7 trilhões são negociados todos os dias na “milha quadrada”, que emprega quase 400 mil pessoas. E não é só a milha quadrada, porque a City agora inclui também Canary Wharf (quartel-general de vários grandes bancos) e Mayfair (local privilegiado de convivência dos fundos hedge).
A City de Londres – indiscutível capital financeira da Europa – também administra espantoso $1,65 trilhão de fundos de clientes, riqueza, literalmente, de todos os cantos do planeta. Em Treasure Islands, Nicholas Shaxson diz que “empresas de serviços financeiros voaram em bandos para Londres, porque Londres as deixa fazer o que não podem fazer em casa.”
Desregulação sem limites combinada a influência sem igual sobre o sistema econômico global é mistura tóxica. Nessa direção, Brexit pode também ser interpretada como um voto contra a corrupção que invadiu a mais lucrativa indústria da Inglaterra.
As coisas mudarão. Dramaticamente. Não mais haverá “passporting” [“Passporting significa que um banco britânico pode prover serviços em toda a UE, a partir de sua sede na Grã-Bretanha. Importante, também significa que um banco suíço ou norte-americano pode fazer a mesma coisa de uma filial ou subsidiária estabelecida na Grã-Bretanha, pela qual os bancos podem vender produtos a todos os 28 membros da UE, com acesso, assim, a uma economia integrada de $19 trilhões” (de Dlapiper, NTs)]. Basta ter quartel-general em Londres e alguns miniescritórios satélites. Passporting entrará em fase de negociação feroz, assim como o que acontece nos pregões denominados em euro, de Londres.
Acompanhei o Brexit aqui de Hong Kong – a qual, há 19 anos, teve seu próprio Brexit, quando realmente deu bye bye ao Império Britânico para ligar-se à China. Pequim está preocupada, temendo que Brexit venha a se traduzir em fuga de capitais, “pressões de depreciação” sobre o yuan, e perturbações sobre a gestão da política monetária do Banco da China.
Brexit pode até afetar seriamente as relações China-UE, porque Pequim, em tese, pode vir a perder influência em Bruxelas, sem o apoio britânico. É crucial não esquecer que a Grã-Bretanha apoiou um pacto de investimento entre China e UE e um estudo conjunto da viabilidade de um acordo de livre comércio China-UE.
He Weiwen, codiretor do Centro de Estudos China-EUAUE, sob a Associação Chinesa de Comércio Internacional, parte do Ministério do Comércio, disse claramente: “A União Europeia provavelmente adotará abordagem mais protecionista nos negócios com a China. Quanto a empresas chinesas que instalaram quartéis-generais ou filiais na Grã-Bretanha, é possível que já não gozem de acesso sem tarifas ao marcado europeu em geral, depois que a Grã-Bretanha deixar a União Europeia.”
Isso se aplica, por exemplo, às grandes chinesas de alta tecnologia, como Huawei e Tencent. Entre 2000 e 2015, a Grã-Bretanha era principal destino de investimento chinês direto, e o segundo maior parceiro comercial da China dentro da UE.
Mas também pode acabar por reverter em ganha-ganha para a China. Alemanha, França e Luxemburgo – todos competindo com Londres pelos sumarentos negócios offshore em yuan – aumentarão seu papel. Chen Long, economista do Banco de Dongguan, está confiante de que “o continente europeu, especialmente países da Europa Central e Oriental, se envolverão mais ativamente nos programas chineses de “Um Cinturão, Uma Estrada” [também chamados “Novas Rotas da Seda” (NTs)].
A Grã-Bretanha, assim, viraria a nova Noruega? É possível. A Noruega deu-se muito bem depois de rejeitar a inclusão na União Europeia, em referendo de 1995. Será estrada longa e sinuosa, antes de o Artigo 50 ser invocado e lançar-se uma negociação de dois anos entre Reino Unido e União Europeia sobre território ainda não mapeado. Alistair Darling, ex-chanceler britânico do Exchequer, resumiu tudo: “Ninguém tem ideia do que signifique ‘Fora’.

O poder da mídia no Brasil, por Pedro Benedito Maciel Neto

26 de Junho de 2016

REUTERS/Adriano Machado: <p>Presidente Dilma Rousseff chega para cerimônia no Palácio do Planalto 22/03/ 2016. REUTERS/Adriano Machado</p>

A ONG “Repórteres Sem Fronteiras” crê e professa que a liberdade de expressão e informação é o primeiro fundamento das sociedades livres e democráticas; que somente com uma imprensa livre será possível denunciar e lutar contra o massacre de civis, o flagelo das crianças soldados e defender os direitos das mulheres.
A preservação do ambiente de liberdade dos jornalistas é fundamental para que eles possam relatar os fatos, denunciar abusos e desafiar o interesse dos poderosos, a opinião pública, essa muitas vezes contaminada e aprisionada por crenças e preconceitos que somente a imprensa livre pode libertar.
Concordo com eles e acrescento: não fosse a imprensa e sua gênese libertadora e revolucionária, torturadores continuariam sua saga miserável, políticos e empresários corruptos continuariam suas práticas ilegais e regimes totalitários seguiriam a reescrever os fatos de acordo com a conveniência.
Sim, a liberdade de informação é a base de qualquer democracia, ela é fundamental para consolidação da democracia em todo o mundo, no entanto quase metade da população mundial ainda não tem acesso a uma informação livre e no Brasil ela sofre de deficiências estruturais importantes, deficiências que comprometem o papel da mídia, especialmente porque, como afirma João Feres, a mídia manipula a opinião pública em nosso país.

Pode parecer um paradoxo, pois o país tem grandes grupos de comunicação e jornalistas extraordinários e mesmo assim não ser livre ou ser por isso manipuladora.
Bem, a crise política que vivemos é exemplo disso. A imprensa teve um papel decisivo e, em nome da defesa da democracia, atentou contra a democracia e contra valores republicanos; a História vai cobrar essa conta.
Bem, não é novidade que a indústria da mídia é dominada por algumas poucas, conservadoras e poderosas famílias, e, em certa medida, reacionárias, intimamente ligadas ao Poder (público e privado) e dele dependente.
Há uma concentração de poder na indústria da informação e toda concentração flerta com o totalitarismo.
E, reflexo disso, é que o país encontra-se apenas na 104ª posição no “Ranking de Liberdade de Imprensa” de 180 países, ranking da ONG “Repórteres Sem Fronteiras”
O Brasil está mais mal ranqueado que Uganda, Gabão, Timor Leste, Bolívia, Kenia, Libéria, Kosovo, Togo, Moçambique, Peru, Nicarágua, República Dominicana, Guiana, Argentina, Haiti, Nigéria, dentro outros... O país sul-americano melhor ranqueado é o Uruguai em 20º lugar.
A cobertura da crise política pela mídia nacional é uma vergonha internacional, pois de forma mal disfarçada, edita os fatos, omite, interpreta ou expõe apenas o que lhe interessava (o que faz à exaustão); e isso ajudou a derrubar Dilma Rousseff.

A mídia desejou o afastamento da presidente, noutras palavras, o que critico não é a posição política dos donos de jornal, mas o poder nefasto que eles têm em criar fatos, transformar opiniões e versões em fatos e verdades inquestionáveis.
É importante registrar que o ódio da indústria da mídia à esquerda não é recente, noutro artigo prometo escrever sobre isso, mas não custa lembrar o que essas famílias fizeram com João Goulart e o quanto ajudaram a fabricar “razões” para o golpe de 1964.
A tecnologia é outra hoje, mas o método não.
Penso que os jornalistas que trabalham para os grandes veículos não têm a liberdade necessária e estão sujeitos aos interesses privados ou ideológicos dos senhores da informação, o que compromete a qualidade da informação, compromete a liberdade de imprensa, a liberdade de informação e, via de conseqüência, a própria democracia.
Mas os ataques à liberdade de imprensa não são apenas endógenos 
SOBRE A ODIOSA CENSURA. 
O grande Rui Barbosa escreveu que “a palavra aborrece tanto os Estados arbitrários, porque a palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade. Deixai-a livre, onde quer que seja, e o despotismo está morto”, mas não é isso que a aristocracia urbana pensa, a qual apropriou das carreiras de Estado.

Vivemos num Estado Policial no qual a censura prévia à imprensa está presente e ela vem do mesmo lugar em que se reinstituíram os tribunais do santo oficio na capital de um dos estados do Sul do Brasil. 
Lá nem todos são iguais perante a lei e estará garantida sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade à liberdade, desde que não incomode os juízes e promotores que, mesmo sem votos, apropriaram-se do Poder; passou a ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, desde que os juízes e promotores de Curitiba assim autorizem.
Isso mesmo. Decisões proferidas pelos Juízes do 8º e o 12º Juizados Especiais Cíveis de Curitiba - atendendo pedido de delegados federais do Departamento de Polícia Federal no Paraná  - determinaram a suspensão de dez reportagens publicadas no blog do jornalista Marcelo Auler, reportagens cujo conteúdo seria ofensivo aos autores da ação. Essa ordem judicial induvidosamente caracteriza censura.
Mas o abuso não parou por ai.
Outra juíza, essa da 8º Juizado Especial, foi além e proibiu o jornalista de “divulgar novas matérias em seu blog com o conteúdo capaz de ser interpretado como ofensivo ao reclamante, verdadeira censura prévia.
As determinações judiciais citadas caracterizam cerceamento nítido da liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal e revelam o lado perigoso da hipertrofia do Poder Judiciário.
Fato é que de maneira clara o blog do jornalista está sendo alvo de censura, inclusive na odiosa modalidade de censura prévia quando juízes proíbem a publicação de novas matérias.
SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA JORNALISTAS.
E há ainda a questão da violência contra jornalistas.
Apenas em 2015 sete jornalistas, o que faz do Brasil o 3º país mais inseguro para jornalistas, vencido apenas pelo México e por Honduras. Esses sete jornalistas estavam investigando casos de corrupção e crime organizado.
O relatório da entidade internacional “Comitê para a Proteção dos Jornalistas”, divulgado durante o fórum de Liberdade de Expressão em 2014 é outro exemplo. O relatório mostrava que 12 jornalistas foram mortos entre 2011 e 2014 no Brasil em represália direta por seu trabalho. E os dados indicavam que, além das 12 mortes confirmadas, havia cinco casos de jornalistas mortos em circunstâncias obscuras, ainda investigadas pelo comitê. Com isso, segundo o relatório, o Brasil se tornou um dos países mais perigosos do mundo para repórteres.
CONCLUSÃO. 
Gente séria concorda que no plano do desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados a Lava Jato já ocupa um lugar de destaque na história do país, caberia à imprensa informar isso, afinal nunca houve um caso penal em que as violações às regras mínimas para um justo processo fossem tão relativizadas, mas a imprensa não fala sobre isso.
O juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba relativiza a presunção de inocência e o direito de defesa e, além disso, tudo, não se observa a garantia da imparcialidade da jurisdição e o princípio do juiz natural foi ignorado e a imprensa não fala sobre isso.
Grandes criminalistas afirmam que há ainda o desvirtuamento do uso da prisão provisória, vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e a violação às prerrogativas da advocacia, dentre outros graves vícios, estão se consolidando como marca da Lava Jato, com conseqüências nefastas para o presente e o futuro da justiça criminal brasileira e agora chegou a censura prévia à imprensa e mesmo assim a imprensa não fala sobre isso.
Esses abusos têm de ser denunciados e banidos do nosso tempo, pois se nada fizermos chegará o dia que nada poderá ser feito, pois
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Pedro Benedito Maciel Neto, 52, advogado, sócio da MACIEL NETO ADVOCACIA, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007. 



quarta-feira, 22 de junho de 2016

O Golpe e os Golpeados, por Eliane Brum.

Sheila da Silva desceu o morro do Querosene para comprar três batatas, uma cenoura e pão. Ouviu tiros. Não parou. Apenas seguiu, porque tiros não lhe são estranhos. Sheila da Silva começava a escalar o morro quando os vizinhos a avisaram que uma bala perdida tinha encontrado a cabeça do seu filho e, assim, se tornado uma bala achada. Ela subiu a escadaria correndo, o peito arfando, o ar em falta. Na porta da casa, o corpo do filho coberto por um lençol. Ela ergueu o lençol. Viu o sangue. A mãe mergulhou os dedos e pintou o rosto com o sangue do filho.
A cena ocorreu em 10 de junho, no Rio de Janeiro. Com ela , a pietà negra do Brasil atravessou o esvaziamento das palavras. O rosto onde se misturam lágrimas e sangue, documentado pelo fotógrafo Pablo Jacob, da Agência O Globo, foi estampado nos jornais. Por um efêmero instante, que já começa a passar, a morte de um jovem negro e pobre em uma favela carioca virou notícia. Sua mãe fez dela um ato. Não fosse vida, seria arte.

A pietà pinta o rosto com o sangue do filho para se fazer humana

Sheila ouviu os tiros e seguiu adiante. Ela tinha que seguir adiante torcendo para que as balas fossem para outros filhos, outras mães. E voltou com sua sacola com batata, cenoura e pão. Ela ainda não sabia que a bala desta vez era para ela. Ainda nem havia sangue, mas a imagem já era terrível, porque cotidiana, invisível. A mulher que segue apesar dos tiros e volta com batata, cenoura e pão, furiosamente humana, buscando um espaço de rotina, um fragmento de normalidade, em meio a uma guerra que ela nunca pôde ganhar. E guerras que não se pode ganhar não são guerras, mas massacres. E então ela corre, esbaforida. E desta vez a batata, a cenoura, o pão já não podem lhe salvar.
A pietà pinta o rosto com o sangue do filho para se fazer humana no horror. E então nos alcança. Mas é uma guerreira desde sempre derrotada, porque nos alcança apenas por um instante, e logo será esquecida. E depois do seu, outros filhos já foram perfurados à bala. E seu sangue correu por becos, vielas e escadarias, misturando-se ao esgoto dos rios e riachos contaminados que serpenteiam pelas periferias.
A pietà da favela não ampara o corpo morto do filho como na imagem renascentista. Ela ultrapassa o gesto, porque aqui não há renascenças. Faz do sangue do filho a sua pele, converte o sangue dele no seu, carrega-o em si. Ritualiza. Neste gesto, ela denuncia duas tragédias: o genocídio da juventude negra que, desta vez, alcançou seu filho e o fato de que “genocídio” é uma palavra que, no Brasil, já não diz. Se para a dor da mãe que perde um filho não há nome, não existe palavra que dê conta, há um outro horror, e este aponta para o Brasil. A tragédia brasileira é que as palavras existem, mas já não dizem.

As palavras tornaram-se cartas extraviadas, perdidas, que jamais chegam ao seu destino

Porque, se não há escuta, não há dizer. As palavras tornam-se cartas enviadas que jamais chegam ao seu destino. Cartas extraviadas, perdidas. Se o outro é um endereço sempre errado, uma casa já desabitada, não há ouvidos, não há resposta. Num país em que as palavras deixam de dizer, resta o sangue. As palavras que as mães poderiam dizer, as palavras que de fato dizem, não perfuram nenhum tímpano, não ferem nenhum coração, não movem consciência alguma. Diante do corpo morto do filho, a pietà negra precisa vestir o sangue, encarnar, porque as palavras desencarnaram. No Brasil, as palavras são fantasmas.
Quatro dias depois de Sheila da Silva ter pintado o rosto com o sangue do filho, em 14 de junho, no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, cerca de 70 fazendeiros montaram em suas caminhonetes e invadiram a área onde um grupo de indígenas Guarani Kaiowá havia retomado Toro Paso, a sua terra ancestral. Assassinaram o indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza Guarani Kaiowá, 26 anos, agente de saúde, e feriram à bala outros cinco indígenas, entre eles um menino de 12 anos, que levou um tiro na barriga. Não foi um “confronto”, como parte da imprensa insiste em dizer. Foi um massacre.
Cerca de 70 pessoas saíram de suas casas com uma ideia: vou expulsar esses índios mesmo que tenha que matá-los. E mataram. Pelo menos desde a véspera já se sabia na região que o ataque estava planejado, mas as autoridades não tomaram nenhuma providência para impedi-lo. Mais um episódio de outro genocídio, o dos indígenas. Mais de 500 anos depois da invasão europeia, na qual milhões começaram a ser exterminados, ele segue em curso. Mas a palavra já nada diz. E o sangue manchou Toro Paso, mais uma vez.
Os Guarani Kaiowá sabem que a palavra dos não índios, no Brasil, nada diz. Desde 1980 é denunciado que os jovens indígenas se enforcam em pés de árvores porque as palavras dos brancos nada dizem. Sem poder viver, se matam. Isso chamou alguma atenção, no início do “fenômeno”, depois entrou na rotina, já não era notícia. Os altos índices de desnutrição, que já levou crianças à morte, também são bem conhecidos. Nem a consciência de que os indígenas passam fome acelerou o processo de demarcação de suas terras.

Os Guarani Kaiowá sabem que a palavra dos brancos não age

Em 2012, um grupo de 170 homens, mulheres e crianças Guarani Kaiowá escreveu uma carta. Eles seriam mais uma vez arrancados do seu lugar por uma decisão da (in)justiça. Escreveram, na língua dos brancos, que resistiriam em sua terra ancestral, dela não sairiam nem mortos: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos”.
A carta os arrancou do silêncio mortífero ao qual haviam sido condenados. Afinal, a interpretação do que os indígenas diziam era clara: assumam o genocídio e decretem nossa extinção. Nos sepultem todos de uma vez e plantem soja, cana e boi sobre a terra roubada e adubada com nossos corpos. Tenham a coragem de assumir o extermínio em vez de usarem suas leis para nos matar aos poucos. Pronunciem o nome do que de fato são: assassinos. Era isso e, dito na língua dos brancos por aqueles que a outra língua pertencem, causou um choque. Mas o choque passou. E os Guarani Kaiowá continuaram a ser exterminados. Também à bala.

Para os Guarani, é a palavra-alma que humaniza; sem ela a pessoa se torna um não ser

A palavra, para os Guarani, tem um sentido profundo. Ñeé é palavra e é alma, é palavra-alma. Vale a pena lembrar um trecho do belo texto da antropóloga Graciela Chamorro:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados Guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo”.
Como explicou o antropólogo Spensy Pimentel quando a carta foi divulgada, “a palavra é o cerne da existência, tem uma ação no mundo, faz as coisas acontecerem, faz o futuro”. Para os Guarani Kaiowá, palavra é “palavra que age”. Os indígenas ainda não tinham compreendido a profundidade da corrosão do que se chama de Brasil, essa terra erguida sobre seus cadáveres por colonizadores que já foram colonizados, expropriados que se tornaram expropriadores, refugiados que expulsam. Essa terra em permanente ruína porque construída sobre ossos, vísceras e sangue, unhas e dentes, ruínas humanas. Ao invocar a palavra dos não índios, os Guarani Kaiowá não tinham compreendido ainda que o Brasil apodrece porque a palavra dos brancos já não age.

A palavra dos brancos perdeu a alma

O genocídio dos Guarani Kaiowá, assim como o de outros povos indígenas, ao ser pronunciado, até gritado, não produz ação, não produz movimento. Que se enforquem, que verguem de fome, que sejam perfurados à bala, nada disso move. As palavras se tornaram tão silenciosas quanto os corpos mortos. As palavras, como os corpos, não têm mais vida. E, assim, não podem dizer. Não são nem fantasmas, porque para ser fantasma é preciso uma alma, ainda que penada. A palavra-alma dos Guarani ilumina, pelo avesso, que a palavra de seus assassinos já não está. Nem é.

O golpe fundador do Brasil se repete, e a carne golpeada é negra, é indígena

Se há um genocídio negro, se há um genocídio indígena, e conhecemos as palavras, e as pronunciamos, e nada acontece, criou-se algo novo no Brasil atual. Algo que não é censura, porque está além da censura. Não é que não se pode dizer as palavras, como no tempo da ditadura, é que as palavras que se diz já não dizem. O silenciamento de hoje, cheio de som e de fúria nas ruas de asfalto e também nas ruas de bytes, é abarrotado de palavras que nada dizem. Este é o golpe. E a carne golpeada é negra, é indígena. Este é o golpe fundador do Brasil que se repete. E se repete. E se repete. Mas sempre com um pouco mais de horror, porque o mundo muda, o pensamento avança, mas o golpe segue se repetindo. A ponto de hoje calar mesmo as palavras pronunciadas.
No filme Trago Comigo, de Tata Amaral, que acabou de estrear nos cinemas do Brasil, o mais potente são as tarjas pretas. A obra entremeia uma narrativa de ficção com depoimentos de pessoas reais. Um diretor de teatro, vivido por Carlos Alberto Riccelli, é um guerrilheiro da ditadura preso, torturado e exilado, que esqueceu de um capítulo vital da sua história. Para a reinauguração de um teatro que fora abandonado, um teatro cheio de pó, teias de aranha e silêncios, como esse canto da sua memória, ele encena uma peça que é sua própria história, o capítulo apagado de sua história. Para lembrar de si, encena a realidade como ficção. Mas, para que lembremos nós, os que assistem, de que é de realidade que se trata, torturados pelo regime civil-militar contam sua estadia nos porões da repressão.
Quando pronunciam os nomes dos torturadores, porém, a voz é emudecida e uma tarja preta tapa a boca daquele que fala. Os nomes não poderiam ser pronunciados ainda hoje, quando se vive formalmente numa democracia, porque torturadores e assassinos do regime não foram julgados nem condenados. Ao escolher a tarja, a diretora protege a si mesma de eventuais processos judiciais. Mas também denuncia o golpe que continuou – e continua – a ser perpetrado.

Em Trago Comigo, a tarja que tapa a boca das vítimas aponta o obsceno: os torturadores seguirão impunes

A tarja aponta o que é obsceno – ou pornográfico: que os torturadores e assassinos não podem ser nomeados porque não serão julgados. E, assim, não responderão pelos seus crimes. Sem poder nomear aqueles que os violentaram, os que sobreviveram continuam a ser violentados. E os mortos, os que foram assassinados, sem o nome do assassino seguirão insepultos. Sem fazer o acerto de contas com a história, um país condena o presente, porque o passado segue se repetindo no presente. E nada pior do que um passado que não passa.
A questão é que, fora do cinema, os nomes dos 377 agentes do Estado que atuaram direta ou indiretamente no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáveres durante o regime de exceção (1964-1985) foram pronunciados. Estão documentados e acessíveis ao público no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes da ditadura. Mas nem por isso foram julgados. O único torturador reconhecido pela Justiça foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). Em abril de 2015, porém, uma das ações contra ele foi suspensa por liminar da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), com base no perdão promovido pela Lei da Anistia. O coronel morreu em outubro sem ter sido punido. Há um grande clamor para que a Lei da Anistia seja revista, mas em 2010 o Supremo decidiu não revê-la. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com recursos, que anos depois ainda não foram analisados.

É mais complicado do que censura, porque hoje as palavras são ditas, mas não produzem transformação

Assim, é ainda mais complicado do que censura, é ainda mais complicado do que não poder dizer. Porque, de novo, as palavras existem. As palavras são ditas. Mas nada dizem, porque não produzem movimento suficiente para transformar a realidade. Neste caso, movimento suficiente para promover justiça, para que as palavras possam dizer que este país não tolera – nem tolerará – torturadores e assassinos, que este país não tolera – nem tolerará – ditadores e ditaduras.
Só num país onde as palavras faliram que a escolha de colocar uma tarja sobre as palavras ditas é uma denúncia mais potente do que dizê-las – ou destapá-las. A tarja aponta menos o que não se pode dizer, mais o que de nada adianta dizer. A censura é a repressão aplicada às palavras que agem e, por agir, desestabilizam a opressão, tornam-se perigosas para os opressores. Aqui, não agem mais, o que faz o país que retornou à democracia mergulhar num terror de outra ordem.
Na votação da Câmara dos Deputados que decidiu pela abertura do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff (PT), em 17 de abril, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) mostrou o que acontece num país em que as palavras perderam a alma. Ao votar pelo impeachment, ele homenageou um dos maiores torturadores da ditadura civil-militar: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim".
Sob o comando de Ustra, pelo menos 50 pessoas foram assassinadas e outras centenas foram torturadas. Uma delas foi Amélia Teles, mais conhecida como Amelinha. Depois de ser barbaramente torturada, ela foi sentada na “cadeira do dragão”, instrumento em que a vítima é amarrada com cintas de couro e fios elétricos são colocados em várias partes do corpo, entre elas os genitais. Amelinha estava nua, urinada e vomitada. Ustra mandou chamar seus dois filhos, de 4 e 5 anos, para testemunharem a situação da mãe. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Amelinha estava azul por causa dos choques. As crianças foram levadas, e a mãe seguiu sendo torturada.
Este era o homem que Bolsonaro homenageou, e este é apenas um caso entre centenas. Jair Bolsonaro foi aclamado por muitos por homenagear um assassino em série, sem contar a perversão explícita do aposto: “o pavor de Dilma Rousseff”. Como se sabe, a presidente, hoje afastada, é uma das torturadas pela ditadura.


O cuspe de Jean Wyllys não acertou apenas Jair Bolsonaro, acertou muito mais

Quando o deputado Jean Wyllys (PSOL) votou contra o impeachment, Bolsonaro o insultou, chamando-o de “veado”, “queima-rosca” e “boiola”, e agarrou-o pelo braço. Jean Wyllys cuspiu em Bolsonaro. O cuspe virou polêmica. Para parte da sociedade brasileira, cuspir se tornou um ato mais grave do que homenagear um torturador e assassino que morreu impune. Mas o que o cuspe pode ter denunciado? A impossibilidade da palavra, pelo seu esvaziamento. Para além de debater se o cuspe é aceitável ou não, há que se decifrar o cuspe.
Quando alguém democraticamente eleito pode homenagear um assassino em série da ditadura e lembrar sadicamente que ele era o “pavor” da presidente que está sendo afastada e, em seguida, cometer homofobia, e nada se move além de mais palavras, é porque as palavras se esvaziaram de poder. O cuspe não acertou apenas Bolsonaro, acertou muito mais. Tendo apenas palavras mortas a seu dispor, palavras que não dizem, talvez só tenha restado cuspir. E, assim, sem palavras após o 17 de abril, manifestantes cuspiram e vomitaram sobre as fotos de parlamentares Brasil afora.

A disputa em torno do “golpe” também aponta para o esvaziamento das palavras

Já escrevi mais de uma vez que considero o governo de Dilma Rousseff indefensável em aspectos fundamentais, e que o do vice-conspirador Michel Temer é a sua continuação piorada. Afastar uma presidente democraticamente eleita sem base legal, porém, desrespeita o voto da maioria e custará muito caro ao país. Assim, sou contra o impeachment. Mas a disputa em torno da palavra “golpe” – se é golpe ou não o processo de impeachment – me parece apontar também para o esvaziamento das palavras. É imperativo perguntar, para evitar o risco das simplificações que podem servir para o pragmatismo de agora, mas cobrar um preço elevado depois: onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias, dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeiro da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa da sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça, dos que o Estado apenas finge ensinar em escolas caindo aos pedaços, negando-lhe todas as possibilidades, dos que são expulsos de suas terras ancestrais e empurrados para as favelas das grandes cidades, dos que têm seus cobertores arrancados no frio para não “refavelizar” o espaço público. Basta seguir os que morrem e os que são mortos para saber onde está o golpe e quem são os golpeados. Como nos lembrou Sheila da Silva, a pietà negra do Brasil, o sangue diz o que as palavras já não são capazes de dizer.
Esta crise não é apenas política e econômica. É uma crise de identidade – e é uma crise da palavra. São as palavras que nos arrancam da barbárie. Se as palavras não voltarem a encarnar, se as palavras não voltarem a dizer no Brasil, o passado não passará. E só nos restará pintar o rosto com sangue.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum