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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Dupla captura do orçamento público, por Marcos Ianoni.

O governo interino aguarda a conclusão do processo de impeachment para enviar ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visa limitar, por duas décadas, o montante de gasto público de cada exercício anual à variação da inflação do ano anterior. Além disso, a nova gestão federal está implementando uma política de redução de despesas em várias áreas de políticas públicas, de modo que, caso aprovada a referida PEC ainda esse ano, o reajuste do gasto de 2017 pela inflação será feito sobre um montante orçamentário comprimido pelos cortes em curso. Ademais, o ministro Henrique Meirelles pretende reformar a Previdência Social, sobretudo pela introdução da idade mínima para a aposentadoria, direito que não mais se vincularia ao tempo de contribuição (30 anos para mulheres e 35 para homens). Atualmente, a regra de idade mínima (48 anos para mulheres e 53 para homens) só existe para os pedidos de aposentadoria proporcional. O que significam essas medidas fiscais?
Durante todo o Estado moderno uma questão fundamental é a do orçamento público. Quem paga imposto para prover receita pública e a quem se destina a despesa do Estado? Na Revolução Americana contra o Império Britânico, por exemplo, emergiu o seguinte lema dos colonos insurretos: “nenhuma taxação sem representação”. Os colonos não eram representados no parlamento Britânico que os taxava e, entrando em guerra contra os ingleses, conquistaram a Independência dos EUA.
Quanto à disputa em torno do destino da despesa pública, pode-se saltar alguns séculos à frente e exemplificar recorrendo ao livro “A crise fiscal do Estado”, de James O´Connor, publicado em 1973. Sobretudo nos regimes democráticos, o Estado enfrenta um conflito entre as necessidades de acumulação e legitimação. Esse autor argumenta: "Um estado capitalista que usa abertamente suas forças coercivas para ajudar uma classe acumular capital às expensas de outras classes perde a sua legitimidade e prejudica, portanto, a sua base de apoio". Ao cumprir funções sistêmicas da sociedade capitalista democrática de gastos com capital social (investimento social e consumo social) e despesas sociais (que, segundo ele, não são necessariamente diretamente produtivas, mas importantes para manter a harmonia social), dispêndios inteligíveis na dupla lógica de acumulação e legitimação, o Estado está diante de uma potencial crise fiscal. Há uma forte tendência de descompasso entre receitas e despesas, inclusive para propiciar as condições necessárias à expansão dos monopólios, que o setor privado não propicia.
O´connor escreveu pouco antes do final do período histórico chamado por Eric Hobsbawn de “Era de Ouro” do capitalismo, que antecedeu a globalização. A despesa pública crescente se destinava tanto às classes proprietárias como aos trabalhadores. O neoliberalismo é, por um lado, uma ofensiva dos ricos e estratos das camadas médias das democracias desenvolvidas contra os impostos necessários para o Estado cumprir suas mencionadas funções sistêmicas e contraditórias de provisão de infraestrutura, segurança, educação, bem-estar etc. Por outro lado, o neoliberalismo é uma reação das grandes corporações dos países de renda alta contra o aumento da concorrência internacional, a partir do final dos anos 1970, causado pela industrialização dos países emergentes. Outros determinantes do neoliberalismo não poderão ser aqui mencionados.
A questão formulada na introdução pode ser assim respondida: a política fiscal neoliberal do governo interino visa responder à crise econômica, ao aumento do déficit público e da dívida pública e à queda dos investimentos públicos e privados desequilibrando a equação entre acumulação e legitimação em benefício dos ricos. Mas, mais que isso, em benefício de um modelo de acumulação capitalista chamado “financeirização”, definido por Gerald A. Epstein como “o aumento do papel dos motivos financeiros, mercados financeiros, atores financeiros e instituições financeiras nas operações das economias nacionais e internacionais".
Do ponto de vista da despesa pública, esse regime de acumulação tem significado no Brasil, mas também em outros países, a sua captura pelos ricos, sobretudo na sua condição de portadores dos títulos da dívida pública, remunerados aqui com a taxa de juros real mais alta do mundo. O economista Pedro Rossi assim se referiu à PEC da limitação do gasto público à variação da inflação, que, aprovada, bloqueará o crescimento real do gasto primário: “Ganham os menos dependentes dos serviços públicos, avessos a financiá-los com impostos e os grupos econômicos que enxergam o Estado como concorrente e desejam apropriar-se dos espaços econômicos na saúde, na educação, e drenar a renda dos trabalhadores para fundos de previdência e escolas privadas”. Nessa mesma fonte de pesquisa (bit.ly/28JaPS0), o empresário industrial Mário Bernardini, da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, afirmou, em relação às atuais medidas fiscais: “São providências exclusivamente fiscalistas e isso, num primeiro momento, não ajuda a retomada da economia, nem no curto nem no médio prazo”. Sublinhe-se “não ajuda a retomada da economia”. Em relação à inexistente política de redução da taxa básica de juros, ele disse: “Seria uma boa sinalização, perfeitamente viável, pois a inflação cairá de 10% para 7% este ano e os juros reais continuariam em 4%, uma loucura no mundo de hoje”.
Além da corrupção, há uma dupla captura do orçamento público, que está embutida na política macroeconômica neoliberal, uma pela via monetária, outra pela fiscal. Juros altos para prover os ricos de bolsa rentismo e corte de despesas sociais para trabalhadores e pobres. É muito importante que o país modernize suas práticas orçamentárias, não desperdice dinheiro público, debata mais sobre o orçamento e mantenha a saúde fiscal. Mas a hegemonia da condução da política macroeconômica pelo enfoque fiscalista não corresponde aos anseios da população por crescimento econômico, geração de emprego, renda salarial e melhores serviços públicos. A financeirização tem sido uma causa fundamental do crescimento baixo e das crises.
A saída mais racional para a crise da economia brasileira seria prosseguir no caminho, por si só já difícil, dada a irracionalidade do capitalismo globalizado, de buscar o melhor equilíbrio, para o conjunto da nação, entre acumulação e legitimação, perspectiva que gerou importantes frutos nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, mas que falhou ao não fortalecer a industrialização. Porém, os erros cometidos, principalmente por Dilma, na tentativa de manter o equilíbrio mencionado, inspiraram uma ofensiva neoliberal que, apostando na acumulação financeirizada e na dependência do Brasil, em detrimento da legitimação e de um projeto nacionalista, tende a perseverar no percurso do túnel escuro que o país trafega, sem qualquer luz distante a animar a cabeça dos brasileiros, a não ser, no momento, a convicção das organizações sindicais e populares de rejeitar a contraproducente agenda da austeridade.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford.


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