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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Tragédia e farsa em dois golpes de Estado, por Marcus Ianoni.




“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, diz a clássica frase. Em 1964, o golpe civil-militar, que depôs o governo João Goulart, veio à história na crueza da tragédia, recorrendo ilegalmente à força para se livrar da legitimidade fundada na democracia e, enquanto fosse possível, reconstruí-la pelo crescimento econômico concentrador de renda e promotor da desigualdade.
O golpe em curso, conduzido por uma ampla coalizão conservadora, desinteressado – ao menos até aqui, e oxalá também no porvir – de mobilizar os quartéis, abriu seu caminho de afastamento da presidente eleita pelo trato discricionário da Constituição e de outros dispositivos legais, instrumentalizando seletiva e politicamente o combate à corrupção, subvertendo direitos civis em nome de ações jurídico-investigativas, criando, com respaldo de massa, um inimigo público (o PT e suas lideranças) midiaticamente construído e, por fim, produzindo uma maioria parlamentar, primeiro na Câmara e, agora, no Senado, que politizou a lei do impeachment, forjando, arbitrariamente, um crime de responsabilidade, no mínimo, altamente controverso e que coloca em risco o reencontro da estabilidade política e social perdida ao longo da crise.
A economia, novamente, é a principal razão de fundo desse golpe latino-americano do século XXI, mas a ela se chega por procedimentos jurídicos e políticos hipócritas, disfarçados, por um lado, no combate à corrupção. A motivação assentada na aliança entre o interesse econômico do grande capital, nacional e estrangeiro, e o oportunismo político elitista, indiferente à fidelidade à democracia, também se desnuda no argumento golpista da superação da ingovernabilidade, situação que os próprios subversivos de terno e gravata se esforçaram para produzir, por exemplo, com pautas-bomba e vários tipos de veto ao governo objeto da ação orquestrada de deposição. Com moralismo hipócrita e militante e boicote à governabilidade foi sendo pavimentado o acesso da ampla coalizão golpista ao Palácio do Planalto e à Esplanada dos Ministérios. A subversão da direita segue seu curso como se se tratasse da condenação da presidente por efetivos crimes na política fiscal e de uma fatalidade necessária devido às circunstâncias da crise. Suas lideranças se dizem circunscritas à ordem institucional, quando se trata de um golpe de Estado de novo tipo, sofisticado, executado sob o manto da Constituição, respaldado nos representantes do povo e na mobilização popular, para se passar por democrático, mas ardiloso e fraudulento. A imprensa internacional está percebendo a farsa.
O golpe civil-militar resultou de uma conspiração, mas partiu para a ação de modo explícito, chamou a si próprio de “revolução”, colocou tanque nas ruas, rasgou a Constituição de 1946, decretou atos institucionais, conferiu poderes autoritários aos novos donos do poder, definiu os crimes contra a segurança nacional, cassou parlamentares, perseguiu, prendeu e torturou inimigos internos, destinando muitos deles ao rol dos mortos e desaparecidos, impôs o bipartidarismo, fechou o Congresso quando precisou etc. Tudo isso foi executado com a lamentável bênção das bases sociais do autoritarismo de então, como a CNBB (ora progressista), a OAB, o empresariado, incluindo a imprensa mercantil, e a classe média. Além disso, a aliança golpista civil-militar, costurada em contexto de Guerra Fria, teve o respaldo estratégico do governo Kennedy-Johnson.
O golpe das oligarquias latino-americanas do século XXI, caso do Brasil atual, implementa-se com várias ousadias: combate seletivo à corrupção, aliança partidarizada entre Judiciário e mídia, fabricação de uma opinião pública pró-impeachment, alavancagem de protestos de rua pelo poder econômico, através da disponibilização às suas lideranças de vários tipos de recursos, abusos jurídico-investigativos – como na implementação e uso da delação premiada e escuta telefônica – e volatilização da lei do impeachment, para considerar crime de responsabilidade práticas fiscais recorrentes no Brasil. Ademais, a subversão de direita conta com a omissão ou conivência da Suprema Corte, mas alguns de seus ministros, como Gilmar Mendes, não hesitam em expor seu golpismo.
Está um curso o golpe da regressão do desenvolvimento democrático, não necessariamente o retorno a um regime autoritário, mas a diminuição do teor de democracia nas instituições públicas e nas relações sociais, pois, além da seletividade partidarizada do Estado de Direito, mobilizam-se subculturas políticas de intolerância e ódio contra adversários ideológicos, preconceitos dirigidos a mulheres, negros, pobres e beneficiários de programas sociais. Criam-se fantasmas, também imaginados em 1964, como o comunismo, hoje chamado de bolivarianismo ou petismo. Tal como há vários tipos de regimes autoritários, há também várias democracias, passando pelas semidemocracias. Os sistemas políticos podem aumentar ou diminuir seus níveis de autoritarismo e democracia. Na ditadura brasileira, por exemplo, ocorreu o “golpe dentro do golpe”, que promoveu aumento do autoritarismo.
A qualidade das crenças e ações das elites políticas e o respaldo social ao golpe mostram como os valores políticos das lideranças e cidadãos são importantes para o desenvolvimento ou subdesenvolvimento da democracia, que não deveria ser concebida pelas ciências sociais como um mero regime, e sim como um tipo de sociedade, a sociedade democrática, erguida sobre uma cultura democrática.
Trata-se também do retrocesso nas políticas públicas social-desenvolvimentistas. A ponte para o futuro do PMDB conduz, na verdade, à retomada do passado neoliberal, dos tempos de Fernando Collor de Mello e, sobretudo, Fernando Henrique Cardoso, com recessão ou crescimento baixo, desemprego, juros elevadíssimos, imensa captura da política fiscal pelos credores da dívida pública, privatizações e aumento da dependência nacional em relação ao capital estrangeiro, ávido por aprofundar sua presença no mercado nacional e por botar as mãos nos recursos naturais do Brasil, a começar pelo pré-sal.
Por fim, o caráter de farsa do golpe atual – retrocesso democrático sofisticado, operado ao arrepio da ordem legal, pretenso berço esplêndido de União Nacional de um suposto gigante despertado, mas, na verdade, carente congênito de legitimidade – não exclui sua dimensão trágica. Ou não será tragédia o resultado da mobilização de um conjunto de farsas?  Combate à corrupção com corruptos e fichas sujas? Diminuição do clientelismo no sistema político com o partido que mais o encarna comandando a caneta do Estado? Democracia com mobilização de comportamentos políticos de tipo fascista nas ruas e em líderes institucionais, empenhados em criminalizar o maior partido de trabalhadores surgido no mundo desde o Segundo Pós-guerra? Justiça cega, mas que, na realidade, enxerga e tem partido? União Nacional, mas contra os direitos populares e a serviço da plutocracia brasileira e internacional?
Talvez pior do que o golpe nu e cru, o golpe atual – por ser malicioso e enganador, construído entre contradições que vão dos anseios dos privilegiados, avessos aos direitos de cidadania, pela tradicional hierarquização em classes sociais, responsável pela delimitação de papéis e lugares distintos e estáticos aos brasileiros, passando pela mobilização de eleitores vestidos de verde e amarelo nas ruas, desejando políticas sociais – seja mais munido, ao menos no curto prazo, do poder de iludir, ao passo que o militarismo impôs o medo das baionetas prontamente nos trabalhadores. Mas não é uma tragédia anunciada acreditar que políticas orientadas para o mercado possam ser o caminho capaz de elevar a renda média e o padrão de vida do conjunto da nação? Justo no Brasil o neoliberalismo vai vingar, um país emergente, profundamente desigual, com uma economia altamente oligopolizada, pouco competitiva, carente de um modelo de desenvolvimento nacional independente da poupança externa e de um Estado republicano que implemente políticas de bem-estar e direitos de cidadania? Basta olhar para o que a austeridade fiscal e monetária e os interesses mesquinhos, que norteiam a lógica dos agentes de mercado, estão propiciando em matéria de recessão, desemprego, afora o arrocho que está por vir, para se ter uma ideia do tempo obscuro e regressivo ao qual a reação conservadora contra a revolução democrática está conduzindo o país. Mas a resistência progressista está viva e não aceita a farsa do governo interino de Temer, como não aceitou a tragédia do golpe de 1964. Desde as eleições de 2014, os golpistas escolheram o caminho da polarização política.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford

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