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terça-feira, 19 de junho de 2018

A CABEÇA DO TOURO (CONTO, PARTE II), POR ALEXANDRE MEIRA


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O menino João parecia um adulto andando pela estrada barrenta em frente a sua casa de mãos dadas com o adulto ao seu lado. Não tinha idade alguma pra perceber alguns comentários envenenados que eram feitos a seu respeito. Aos cinco anos só sabia correr dos primos ou gargalhar de suas travessuras. Ou então, em momentos como esse, andar ostentando um orgulho infantil enquanto esticava o pescoço para cima pra tentar olhar nos olhos do gigante ao seu lado.
- Cuidado aí... olha pra frente!
E logo o menino se posicionava para prosseguir sem largar a mão imensa que o guiava. “Me ajuda, pai!” dizia o garoto tentando ampliar o tamanho dos passos incompatíveis com o de seu par.
Junto a ele, João se sentia inatingível.
Às proximidades de uma espécie de feira João  desvencilhou-se e começou a correr por entre as barracas. Observado por um olhar altivo e protetor, sentiu segurança para andar à vontade. Ninguém falava com ele. Quando seu jeito infantil lhe permitia trocar algumas palavras com quem quer que fosse, o retorno frio do receptor, em geral, o impingia a calar ou seguir em silêncio. Desde muito novo, João aprendeu a conviver com o silêncio.
Destacando-se, seguindo mais a frente, sentou-se a beira de uma espécie de armarinho. Era de entrada estreita mas se esgueirava até o fundo com muitos produtos baratos, e que para o menino não tinham utilidade alguma. Ao fundo da loja chamava a atenção no alto e bem ao centro uma cabeça de touro empalhada, daquelas que só existiam em açougues. O menino franziu a testa quando viu. Virou-se e observou o movimento da rua. Começou a brincar com algumas mercadorias expostas ao seu derredor. Lembrou-se do pai, mas com um olhar atento, viu que ele se posicionava há algumas dezenas de metros, em igual atenção.
Notou atrás de si que era observado por um homem de dentro do estabelecimento. Continuou sentado, e viu que um possível comprador entrou na loja. O menino pôs a brincar com a piaçava das vassouras expostas, enredando os dedos por entre suas pontas espetadas. Aquelas vassouras imensas que sua vó se empenhava arduamente para mantê-las longe dele.
Quando de susto ouviu:
- Não mexe nessa porra não, ô crioulo!
João olhou para trás. Era o homem que o observava.
Levantou-se e parou a frente do local, moveu os braços pequenos para trás do corpo. O homem continuou:
- Daqui a pouco some alguma merda daqui e eu vou saber que é você! Solta essa porra!
O garoto ficou estático. Não teve reação. O homem então passou por baixo do pequeno balcão e foi em direção a ele. No meio do caminho gritou a plenos pulmões: “Macaco!”. João tremeu. O homem pegou uma ripa de madeira que estava disponível e acelerou em direção ao garoto. O menino levantou os braços pra se proteger e fechou os olhos. Logo ouviu uma voz falando:
- Que isso, cara! Tá maluco! É aquele neto da Yolanda!
O garoto aproveitou que um cliente de dentro da loja impediu o avanço do homem e desatou a correr para a praça onde estava a feirinha. Procurava aquele adulto protetor. Mas havia muita gente, muitas pessoas atrapalhando. Espalhou-se desorganizadamente por entre as barracas à procura. Mas onde ele estava? Onde ele estava quando mais se precisava?
Um braço forte o segurou.
- Que aconteceu, João?
Alívio. O menino agarrou suas pernas.
- Você está correndo de quem? O que aconteceu? - puxou rapidamente o corpo do menino e colocou a sua frente.
A voz dura o obrigara a dizer. Mas só conseguia olhar para a frente do armarinho. Abaixou a cabeça evasivamente e ouviu:
- O que aquele cara falou com você. Eu vi que estavam gritando com você. Quem foi? - disse o homem elevando a voz.
O menino não falava. Sentiu a mão grande erguer o seu queixo e forçar o olhar direto nos olhos. Chegava a doer.
O menino não conseguiu segurar a voz quando viu aquele rosto mestiço com um bigode bem aparado contornando a boca, e olhos levemente amendoados, incisivos, interrogando-o de forma contundente:
- Foi o moço da casa, ali... - disse a criança com os olhos baixos apontando para o local.
- Por que ele gritou com você?- elevou mais ainda o tom de voz.
- Não sei... - engoliu seco, João.
O homem ergueu o corpo. Olhou para a porta do armarinho. Num golpe rápido estalou o pescoço. Alguns olhares ficaram mais atentos quando ele puxou as mangas da camisa e ajeitou o cinto. Puderam ver o trazia na cintura. João ainda ouviu de alguém:
- Calma, Bento!
O homem parou. Mirou o pequeno e perguntou uma última vez:
- Ele te xingou, João? Não minta pra mim!
O menino hesitou, mas balançou a cabeça positivamente, e antes que pudesse falar, ouviu de volta:
- Então eu ouvi bem! - disse com os olhos brilhando.

Bento. Era o nome dele.
Era ele quem cuidava de João.
O homem foi em direção ao estabelecimento. João por receio o seguiu. Corria para alcançar seus passos.
Algo estranho começou a apertar seu coração. O menino estava com medo.
Parou num susto, quando viu Bento chegar ao armarinho retirando a arma da cintura e colocando-a sobre o balcão. O homem que gritou com João estava lá, e parecia ter ficado mais branco.
- Pra que isso Bento?! Por que essa arma... assim?! - tentava o homem envergonhadamente contemporizar.
Alguns observadores que seguiram os dois e se posicionaram atrás de Bento na expectativa talvez de acalmá-lo, com certeza pensaram em recuar quando ouviram sua voz seca dizer:
- Ué. É porque eu vou usar...
Começou a girar o tambor do revolver, conferindo a munição.
O menino João abraçou suas pernas. Bento continuou:
- Mas fica tranqüilo, pra te deixar mais calminho, eu vou tirar as balas e só vou deixar uma.
Bento retirou seis projéteis, deixando apenas um. Girou o tambor na frente do homem, fechou, e apontou a arma para a cabeça do comerciante. “Eu só preciso de uma...” disse olhando para ele.
O menino apertou a perna de Bento com mais força.
O homem buscava se conciliar dizendo:
- Por favor, fique calmo. Isso não vai acontecer de novo. Eu não conhecia ele. Não sabia que era seu filho. Por favor me desculpe, Bento... - o homem tremia muito enquanto falava pausadamente.
Bento contestou, mirando a testa:
- Você chama todo mundo que não conhece de macaco?
O homem respirou fundo. Olhou para João como se pedisse ajuda, e disse:
- Bento, calma, o garoto está do seu lado. Ele está bem. Me desculpe! Eu errei, por favor. Você está assustando seu filho!!
Alguns homens tocaram o ombro de Bento pedindo pra ele se acalmar. Mas nada parecia mudar o seu cenho desafiador. Ele continuou com a arma em riste e disse:
- Você assustou meu filho! Eu estou apenas ensinando a ele como deve agir quando são covardes com ele... - disse Bento engatilhando a arma.
O estalar do gatilho soou como um sino fúnebre. Os pedidos de calma se ampliaram e alguns gritos surgiam da multidão que já se juntava atrás do menino e do pai.
Alguns já deixavam o local com medo de um tiroteio. O homem quase se ajoelhou diante da arma antes de dizer: “Por favor, não faça uma besteira, desculpa, eu te imploro, Bento... eu tenho duas filhas...”
Bento soube ser cruel:
- Tomara que elas toquem melhor essa espelunca do que o pai...
O homem fechou os olhos com as mãos incontrolavelmente trêmulas e começou a andar pra trás. Bento não piscava, apesar dos clamores de todos. E o menino João não acreditava no que estava para ver. Seu coraçãozinho disparou de vez.
Bento estava convicto do que iria fazer.
Num golpe rápido alguém puxou o menino e tampou seus olhos. João gritou.
Um tiro.
Uma correria generalizada se instalou no local e o menino foi largado as trombadas no meio do armarinho. Deitado gritou: “Pai!!!!”. Identificou do chão Bento apoiado sobre a bancada com o revolver em riste, cujo cano soprava uma fumaça sinuosa. Era inacreditável a expressão impiedosa de Bento. O menino levantou-se e abraçando as pernas de seu protetor viu no fundo da loja o homem com as mãos no rosto, soluçando copiosamente. Procurou algum vestígio de sangue, não encontrou.  Olhou para ambos com um misto de pavor e incredulidade.
Bem acima do homem pálido reluzia a cabeça empalhada do touro.
Entre os olhos do animal destacava-se um buraco feito pelo tiro certeiro.

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