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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Mercado x Democracia na crise atual, por Marcus Ianoni.


Em recente edição do programa Momento Político, na rádio CBN, Carlos Sardenberg e o entrevistado Merval Pereira abordaram a vantagem propiciada pela impopularidade de Temer, reprovado por 66,6% da população e investido ao cargo sem o voto popular. Segundo Merval, Temer, que mal conseguira eleger-se como deputado federal, tornou-se presidente por um fato fortuito, de modo que não precisaria mais se preocupar com seu futuro político, pois este já estaria garantido. Livre das amarras da ambição político-eleitoral, Temer estaria se comportando como um estadista, um decisor desapegado em relação à opinião pública e despreocupado com a popularidade. Esse comentarista político relembrou o conselho que o publicitário Nizan Guanaes deu ao atual presidente: - aproveite sua impopularidade e faça as reformas que precisam ser feitas! Prosseguindo em sua análise, Merval disse que o Congresso pode atrapalhar na realização da reforma da Previdência Social. “A base aliada é forte, mas vive de voto”. Claríssima a dicotomia, na política e economia enquanto realidades, e não ficção, examinadas pelo jornalismo engajado no ideário neoliberal, entre as reformas orientadas para o mercado e a democracia.

Segundo o pensamento econômico liberal, a economia de livre-mercado é a principal alavanca da democracia. A propriedade privada funcionaria como uma força centrífuga, movida pela liberdade individual, que irradiaria ao sistema político nacional uma pujante demanda microssocial pelas instituições do regime democrático. A dispersão do poder que caracterizaria a expansão horizontal da propriedade privada protegeria a todos de uma eventual coerção estatal. Essa ideologia pode ter servido para fundamentar, há alguns séculos atrás, a luta das classes proprietárias européias contra o absolutismo ou dos colonos americanos contra a Monarquia Inglesa, na etapa histórica de concentração do capital, ou seja, da separação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção. E é verdade, também, que tendências pluralistas da ordem social competitiva, principalmente nos países desenvolvidos, propiciaram, em alguma medida, certa dispersão dos recursos de poder e associativismo, assim como o Estado incorporou direitos civis, políticos e sociais, os dois últimos, inclusive, paridos a partir das lutas dos trabalhadores contra as restrições participativas do sistema representativo censitário e contra as desigualdades promovidas pelo mercado.
Porém, desde o final do século XIX, com a centralização do capital, geradora dos monopólios encarnados nas grandes corporações em todos os setores de atividade e mais ainda após a queda do Muro de Berlim, com o aprofundamento da internacionalização das relações econômicas, o Estado, incluindo seu regime político, até mesmo quando este se trata de uma democracia, é constrangido, pela financeirização do capitalismo em todo o globo, a aprofundar sua servidão aos megainvestidores.
O Brasil atual que, como nunca, através do governo resultante do impeachment, está optando por um modelo de capitalismo intensamente orientado para o mercado, propicia claras evidências de que, longe dos agentes econômicos – que são grandes corporações e, com a globalização, desterritorializam-se, perdendo nacionalidade operativa – demandarem dispersão do poder e fortalecimento da democracia, eles recorrem à mão invisível do Estado e à concentração do poder decisório para atender sua inesgotável necessidade de reformas visando enfrentar os problemas de acumulação gerados pelas crises recorrentes do capitalismo. O neoliberalismo depende de uma colonização do Estado pelos interesses econômicos vinculados a esse modelo ultramercadista, para o qual a política democrática tende a ser um empecilho.
O pensamento político-liberal de Alexis de Tocqueville sustenta com muita propriedade que o principal conteúdo do processo democrático é a igualdade de condições. Mas a colonização da democracia pelo neoliberalismo depende de expandir as opções dos investidores, para os quais a saúde pública, a previdência social, as políticas sociais em geral (assistência social, educação pública, programas de transferência de renda etc) são concorrentes a serem eliminados ou, pelo menos, drasticamente restringidos, além do que, pressionariam no sentido da elevação da carga tributária. Ou seja, o mercado, na perspectiva dos megainvesdidores, regidos pela lógica da financeirização, não se harmoniza com a igualdade, com a democracia, nem tampouco com a ideia de projeto nacional. É isso que explica a emenda constitucional do teto de gastos, a reforma da previdência, a reforma trabalhista, a privatização da Petrobras, o desmonte da política de conteúdo local, que visa fortalecer a indústria etc. Essas são as políticas do governo pós-impeachment, resultando de um processo no mínimo duvidoso de deposição presidencial.
Não à toa, o golpe contra Salvador Allende no Chile foi feito em nome da economia de mercado, com o respaldo do então presidente Nixon, e aquele país, sob Pinochet, tornou-se o primeiro laboratório do neoliberalismo, pelas mãos dos Chicago Boys, economistas chilenos treinados por Milton Friedman e outros professores do Departamento de Economia da Universidade de Chicago. Choque de mercado tende a pressupor choque de autoritarismo.
O mercado, dominado pelo megacapital, vive da acumulação, não tem pátria e não tem compromisso com a igualdade, seja ela política ou social. Não só o voto do qual os representantes políticos dependem para se eleger pode atrapalhar a economia, como disse Merval Pereira, mas também o combate à pobreza, ou seja, a justiça distributiva, a equidade. Como tem sido ao longo da história, a democracia é uma demanda dos de baixo. 
Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.

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