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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Enquanto os EUA correm para o abismo o mundo tenta se salvar, por Noam Chomsky.

"A mudança para o neoliberalismo fez com que decisões da arena pública fossem transferidas para o mercado", diz Noam Chomsky em entrevista ao Russia Today


Russia Today.
"Nós estamos indo na direção de um penhasco e o pior penhasco para o qual estamos nos encaminhando é símbolo dos  sistemas de mercado, " observa Noam Chomsky durante a entrevista que concedeu ao jornalista Chris Hedges, do programa On Contact,  na sua sala do MIT – o Massachussets Institute of Tecnology - onde ele, aos 88 anos de idade, continua dando aulas como professor emérito. Os dois rastrearam a história do neoliberalismo que vem sendo aplicado desde as suas origens, na década de 1970, tanto à esquerda como à direita, até a atual era de Donald Trump.

"A mudança para o neoliberalismo fez com que as decisões da arena pública fossem transferidas para o mercado,", disse Chomsky, cujo livro com o título Requiem for the American Dream foi lançado no início deste ano. "É uma ideologia que afirma expandir a liberdade quando de fato aumenta a tirania".

‘’O interesse do capital e, especificamente, das corporações transnacionais e das instituições financeiras criou uma "redução democrática" e uma  estagnação ou declínio dos salários para a maioria das populações", analisa o filósofo e lingüista, que defende uma melhor distribuição salarial.

‘’O neoliberalismo coloca os trabalhadores do mundo concorrendo uns com os outros. Deste modo, permite a liberdade do capital e um alto grau de proteção para ele. Por exemplo, os direitos de propriedade intelectual são um imposto enorme sobre a população.’’ Ele observou o domínio exercido pela Microsoft em patentes tecnológicas e os esquemas de evasão fiscal da Apple.

Co-autor do célebre estudo de mídia, de 1992, Manufacturing Consent, ele também diz que essas mudanças foram marcadas pelo "doutrinamento" de adversários que foram marginalizados, alguns até mesmo demitidos de cargos, no seu trabalho, e taxados de "antiamericanos".

"Além dos EUA, eu não conheço nenhum outro país que não seja totalitário ou autoritário onde este conceito surpreendente ainda exista.  Se você criticar a política será rotulado de antiamericano, o que só ocorre nas ditaduras", observa Chomsky cuja fama acadêmica se consolidou com a publicação da sua teoria da gramática universal. Atualmente, ele está particularmente preocupado com as mudanças climáticas e, em particular, com a recente retirada dos EUA do Acordo de Paris assinada pelo então presidente Barack Obama, em 2015.

"A posição do grupo da ala selvagem do capitalismo americano, o Partido Republicano, é realmente chocante. O pessoal desse grupo está correndo em direção a um precipício. Os EUA correm para o abismo enquanto o mundo tenta fazer algo para evitar a destruição da vida humana. ’’

O famoso acadêmico e ativista conversou também com Hedges para o site Russia Today – RT - sobre a mudança neoliberal que fez do mercado um déspota e sobre como os EUA silenciam os seus críticos.

Russia Today: Existem dez diretrizes que mostram a concentração de riqueza e poder apontadas em Requiem para o sonho americano, baseado em um documentário que você produziu. A primeira é "reduzir a democracia". O que você quer dizer com isso?

Noam Chomsky: Primeiro eu devo dizer que a construção desses dez pontos é o resultado de uma contribuição dos editores do livro. Trata-se da consolidação bastante eficaz de horas e horas de entrevistas e discussões entre nós e que foi organizada dessa forma por eles. "Reduzir a democracia" significa a marginalização gradual da população. A redução do papel da população em geral, no que diz respeito à tomada de decisão na arena pública, foi uma consequência esperada e previsível da introdução da transição para os ditames neoliberais dos anos 70 em diante. Há, basicamente, duas fases da história socioeconômica americana pós-guerra. A primeira, às vezes chamada de capitalismo regulado, o liberalismo incorporado dos anos 50 e 60. Foi um período de crescimento muito elevado, de crescimento igualitário e de alguns movimentos que apontavam para a justiça social, na década de 60. Então, houve um aumento substancial da participação democrática e as pessoas se envolveram de verdade na arena pública. Tudo isso teve vários efeitos. Um efeito foi a redução, a queda da taxa de lucro. Segundo efeito, as pessoas se tornaram interessadas e se envolveram nos assuntos públicos.

RT: É o que Samuel Huntington chamou de "excesso de democracia"?


NC: "Excesso de democracia". Duas publicações muito importantes surgiram no início dos anos 70, ambas apontando para essa teoria. Interessantes, porque eram extremos opostos do espectro político, mas basicamente chegaram à mesma conclusão embora com estilos retóricos um tanto diferentes. Um deles foi o memorando The Powell escrito por um advogado corporativo trabalhando para as corporações de tabaco que mais tarde se tornaram alvo da Justiça, na Suprema Corte, sob a administração Nixon. Ele escreveu um memorando, que deveria ser confidencial, mas que vazou para o grupo empresarial da Câmara de Comércio dos EUA. A retórica é bastante fascinante. Powell expressou a sua visão, o que não é incomum entre os que realmente possuem o poder mundial, de que o controle deles teria sido ligeiramente diminuído. Comparava esta situação a uma criança de três anos de idade que não recebe um doce. E isso significaria que o mundo estaria chegando ao fim.

RT : Um ataque ao sistema americano da livre empresa, não?

NC: O mundo dos negócios, então, se encontrava sob forte ataque liderado por Ralph Nader e Herbert Marcuse. Um ataque a tudo o que é significativo na vida americana. O memorando diz: "Bem, cuide de nós porque nós, os empresários, basicamente possuímos tudo. Nós somos as grandes empresas que mantêm as universidades e nós não podemos deixar essas crianças que estudam correrem de uma forma selvagem como fazem hoje. Nós podemos delimitar a mídia. Afinal, nós somos detentores do poder. ’’ E ele pede a mobilização do mundo dos negócios para que esse se defenda.

RT: Qual foi o impacto do memorando?

NC: Ele teve um grande impacto no crescimento dos grupos de reflexão de direita, de grande parte da ideologia da extrema direita. Esse é o lado direito do espectro. Aí, você vai para o outro extremo dele: basicamente, o liberalismo da administração Carter. Na verdade, as pessoas que administravam o governo Carter, a Comissão Trilateral com suas democracias industriais: a Europa, o Japão, os EUA - era basicamente composta de internacionalistas liberais. Eles têm uma publicação intitulada A crise da democracia. Para eles, a crise da democracia era motivada pela existência de exagerada democracia. Na década de 1960, muitas pessoas, que em geral eram passivas e apáticas, foram iniciadas na arena política e começaram a pressionar as demandas  dos chamados interesses especiais – grupos de jovens, de pessoas idosas, de agricultores, trabalhadores, ou seja, de todos. Exceto o setor corporativo. Ele não é mencionado porque seria, segundo eles, de interesse nacional. Mas esses ‘’interesses especiais’’ colocaram muita pressão sobre o estado. Dizia-se: precisamos ser mais moderados nessa questão da democracia e as pessoas têm que voltar a ser mais passivas e apáticas. Com alguma nostalgia, Samuel Huntington se referiu ao período em que, como afirmou, Truman conseguiu dirigir o país com a colaboração apenas de alguns advogados e executivos de Wall Street. Então, nessa época, não houve crise de democracia.

RT: Vamos então ao seu próximo item: "moldagem da ideologia". Você fala sobre a diferença entre Madison e Aristóteles. Ambos entendiam que se houvesse desigualdade, haveria tensões entre os ricos e os pobres. Madison pedia para o governo reduzir a democracia. Aristóteles, no entanto, diz que a solução, que você obviamente apóia, é reduzir a desigualdade. Seu segundo ponto então é este: ‘’moldando a ideologia’’. Mencionamos o Powell Memo, mencionamos a Comissão Trilateral. Eles, para ser preciso, seccionaram vários segmentos da sociedade. Você comenta sobre a forma como eles criaram projetos arquitetônicos para colégios, por exemplo, de tal modo que grandes manifestações não eram possíveis de serem organizadas nesses espaços. E preconizavam a destruição das instituições públicas. Fale sobre esse processo para que possamos (re)configurar essa ideologia no formato de neoliberalismo.

NC: Eu sugiro que a Comissão Trilateral tenha liderado esses desenvolvimentos. Havia, em certa medida, uma articulação do consenso de elite liberal sobre essas questões. Por essa razão, é bastante interessante examinar a doutrinação dos jovens porque, segundo a ideologia, as instituições responsáveis %u20B%u20Bpelo doutrinamento dos jovens estavam falhando no seu dever.

RT: Essa é uma maneira interessante de descrever as instituições educacionais.
NC: É semelhante ao comentário nostálgico sobre Truman ser capaz de dirigir o país com poucos advogados corporativos... Mas esse foi e é o ideal a ser alcançado. Segundo esse ponto de vista deve existir um processo de doutrinação: os alunos não devem ser livres para pensar. Eles não dizem isso às claras, mas insinuam que não devem ser livres para perguntar, pensar e desafiar. Devem apenas aprender o tipo de coisas que estão inscritas no sistema educacional tradicional e que os jovens seriam encorajados a estudar nas escolas e nas universidades. Mas isto é perigoso, porque eles podem questionar muitas verdades eternas, incluindo a de que tem que existir um domínio e um controle por parte da elite. Isso é expresso durante todo o processo educacional.

RT: Você acha que eles foram bem sucedidos?

NC: Eles estavam articulando o consenso que depois se desenvolveu. Foram razoavelmente bem sucedidos, sim. Por exemplo, um tipo de modelo de negócio começou a ser imposto em faculdades e universidades. Houve um enorme crescimento da burocracia, passando o equilíbrio do controle da faculdade para o controle burocrático. Houve um aumento acentuado do valor da taxa de matrícula, que teve e tem um efeito disciplinar muito forte. Na década de 1960, o jovem poderia dizer: "Ok, eu vou dar um tempo durante um ano para me envolver no movimento antiguerra ou em um movimento feminista, ou algo assim, e depois volto para estudar e continuar a minha vida". Você não pode mais fazer isto caso tenha um peso enorme de dívidas sobre a sua cabeça.  Se você faz Direito vai pensar: "Eu adoraria ser um advogado de interesse público, mas eu tenho que pagar 200 mil dólares de dívida contraída na faculdade." Então, para pagá-la você tem que procurar trabalhar em um escritório de advocacia corporativo e acaba absorvendo essa cultura. Há muitas maneiras diferentes de impor disciplina...

RT: Você também fala sobre como as críticas repentinas do império americano ou do capitalismo americano foram marcadas com o antiamericanismo.

NC: O antiamericanismo é um conceito muito interessante. É um conceito que só existe nos estados totalitários. Por exemplo, se alguém na Itália, digamos, criticasse o governo Berlusconi, ele não seria acusado %u20B%u20Bde ser antiitaliano. Mas na antiga União Soviética, você poderia ser condenado porque seria considerado anti-soviético. E na ditadura militar brasileira você poderia ser tido como um antibrasileiro. Mas, além dos EUA, não conheço nenhum outro país não-totalitário, não autoritário, onde o conceito ainda exista. Esse é um conceito peculiar. Se você é um crítico da política você é antiamericano. Na verdade, isso tem uma origem bíblica muito interessante. O primeiro uso desse conceito foi o rei Acabe, o rei do Mal Supremo, na Bíblia. Ele chamou o profeta Elias e perguntou por que ele contestava Israel, que era a mesma coisa que condenar os atos do Rei do Mal. Esse conceito é básico: se você desafia a autoridade, você se opondo à sociedade, à cultura e à comunidade.



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