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sexta-feira, 11 de maio de 2018

JOÃO ANASTÁCIA NASCEU (CONTO, PARTE I), POR ALEXANDRE MEIRA.


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- Minha filha, responde!!! Que que tá acontecendo!?!?”
Os murros secos na porta travada por uma enxada eram ameaçadores. A menina encolhida no canto comprime a barriga com força. Tão ofegante que não responde, e mesmo que quisesse não conseguiria responder, sobretudo às outras perguntas que viriam, e a surra, talvez, que por força do hábito sua pele já pudesse até aguentar.
-  Mariana!! Abre!!!
E a dor compulsiva reverberava, como um  parasita que o corpo procura expulsar a todo esforço. Não era mais possível conservar aquele segredo enorme de forma adolescente como quem esconde as provas de uma travessura. O sol escaldante e a realidade crua roubaram já há muito tempo da menina a possibilidade de experimentar a vida através de pequenos erros.
Não era o nascimento. Era uma morte, o aborto de uma infância atropelada pela aridez que sempre esteve atrás daquela porta. Uma segunda vida rompia as paredes do seu corpo enquanto a sua própria esvaia-se através de um rosto sem brilho.
Mais alguém havia chegado do lado de fora e resignada Mariana chorava copiosamente a espera da “vida nova”. Ela quer muito voltar no tempo e buscar uma explicação pra tudo que aconteceu, talvez reescrever uma história, mesmo que possibilidades houvesse muito poucas para mudá-la. Mas a menina subitamente é tomada por um calor que consome todo o corpo ao ver um mar vermelho aquecer seus pés e umedecer todo seu vestido. Agora não era só ela quem precisava ser salva.
Como um raio a garota sobe a cama ainda desfeita abre a pesada janela de madeira, ultrapassa-a, e desce rolando o barranco atrás da casa de sua tia. Aquela mulher tentava arrombar aquela porta com a ajuda de um mascate velho que o desespero obrigou a tragá-lo à pensão. Ainda escutou os gritos da velha quando mancando se lançava na estradinha tórrida deixando um rastro de sangue delator.
Agora ela corre tropegamente emitindo um som estranho meio choro, meio gemido, quase desumano, cuja dor insistia em reger. Cidade pequena, cuidava a menina de não se prender a ninguém que encontrasse pelo caminho. Ainda mais que a curiosidade sempre aguçou aquela gente pobre que a viu crescer às voltas da pensão brincando com suas primas. E por muitas vezes a viu correr como um garoto ora delas, ora da mãe, viciada que era, quase, nas traquinagens, mas que não suportaria vê-la mulher tão cedo, e de tal forma.
- Mas é mais uma, com certeza, das crias de Mariana, correndo assim descabelada e chorando, no mínimo foi mais uma dela. A velha deve aparecer logo atrás com o chicote na mão. - E assim a garota ia se distanciando do povoado, com as pernas sujas de sangue e barro.
Dormente pela tensão, flashes tomavam seus pensamentos justamente na hora em que mais precisava de clareza e foco. A credulidade daquele povo não era pouca, e para uma menina que mergulha sozinha em dilemas tão complexos, às vezes, as respostas mais simples são as mais acalentadoras. Havia sim como resolver parte dos problemas. Talvez fosse parte de um processo de redenção, um expurgo necessário, pelo qual mulheres em iguais condições se utilizavam para se justificar. Mas tudo isso não tinha mais nenhuma importância. “Pede pra Mãe Naná filha, você não dá conta disso sozinha”. Lembrou que era assim que algumas mulheres movidas pela desconfiança se dirigiam a ela, sem maiores constrangimentos.
- Vai aonde menina?! - Perguntou mais uma assustada de dentro de um casebre desbotado. Prontamente ignorada.
A essa hora sua tia, primas e alguns bêbados cativos daquela pensão, já estariam a sua procura pela cidade, e em poucos minutos a miudeza daquela gente já estaria toda mobilizada atrás de Mariana. Não seria difícil a encontrar, assim como para muitos aquela barriga apertada nas roupas cada vez mais largas, que a isolavam cada vez mais dentro de casa, e que nos últimos dias não a tiravam do quarto, sempre foram provas óbvias de que a velha deveria abrir os olhos com aquelas meninas.
Todo mundo sabia que um dia ia dar nisso”-.
A estrada de barro estreitava a medida que a copa das árvores refrescavam o calor. O terreno acidentado não a impedia de seguir adiante. O choro, o gemido e o semblante atormentado já não eram constantes. A dor lancinante ainda a roubava alguns gritos, porém ela sabia exatamente como aquilo iria terminar. Ela sabia aonde estava indo. Uma certeza visceral que ninguém tinha. Era o final da linha e dentro de toda sua precoce convicção, fraquejar aquela hora seria negar o sentimento maternal que germinava junto com aquela criança. A menina morreu na estrada. Quem embrenhava a mata fechada e temida era a mulher.
O terreno ingrato agora ascendia num declive, o que forçava a barriga prenha, e desenhava o caminho com ainda mais sangue. Obstinada, escalava algumas pedras e barrancos com a agilidade de um gato, enquanto o feto se acostumava as agruras e descaminhos que sua experiência terrena lhe trariam.
“Tenha uma boa hora minha filha e pega na mão de mãe Naná... nessas horas ela protege”
Faltava pouco pra chegar ao lado da pedra do gavião. Ali, mulher não chegava mesmo, e poucos homens acreditariam que lá ela ousasse estar. No mínimo na casa de algum safado desses que costumam se acovardar quando uma cidade inteira está querendo a cabeça de alguém.
Mas não havia homem nenhum. Pelo menos alguém que ela pudesse dividir a responsabilidade daquilo tudo. Assim como para qualquer um, um pouco menos ignorante, após ver aquele rastro de sangue, constataria que não haveria criança alguma no final. Mas criança ainda havia. Ela sentia, arrebentando-lhe a barriga, o ventre. Ela intuía. Ela ainda lembra daqueles pesadelos repetidos, incessantes. O zumbido no ouvido. Pesadelos duros que lhe roubavam a esperança. E talvez seus catorze anos não fossem claros o suficientes ainda para entender que os namoricos com aqueles pobres-coitados, por mais que lhe levassem a virgindade, não seriam suficientes pra povoar tão morbidamente a cabeça de uma menina tão simples. Como um carma que devesse ainda cumprir, ela corria destemidamente por aquela mata. Não era o medo de assumir que teve um filho com um daqueles bóias-frias que a fazia sacrificar sua vida, com certeza isso não era.
Mais lembranças.
Quem era a senhora despudorada e lasciva que a acordava do sonho dizendo: “Ele é meu!!”. A angustia que vinha depois dos sonhos era forte demais. E essa necessidade sufocante de pedir ajuda? O que ela queria?
Mariana parou. Não conseguia mais. A dor a dobrou de vez e mal abria os olhos. Abraçada aos joelhos, não consegue enxergar a pele encardida de seus pés. A dor indescritível iria matá-la, definitivamente, como a missão de um hospedeiro. Olha para o alto e por entre a copa fechada vê à distância a pedra do gavião. Não tivesse ela sonhado também tantas vezes com aquela pedra talvez, a essa hora descansaria envolta de mulheres que a socorreriam daquela dor.
Por que ela estava ali? Sozinha!
Ela deveria entregar o que não era dela, e implorar pela sua vida e a do nascituro. “Por favor, mãe Naná, me ajuda!”. Balbuciou a menor trancando os dentes. Buscou alguma oração na lembrança, mas a dor a impediu.
- Não me deixa ir! Me deixa viver pra cuidar do seu filho.
Às três da tarde, a mata fechada profere um grito mortal. A menina desfalece sobre uma poça de sangue, e em meio a sublimação da dor, vê passando atrás de uma árvore uma senhora altiva de cabelos negros soltos, olhar fixo e sombrio. Mariana mal teve tempo de sentir medo.
João nasceu.

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