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quarta-feira, 23 de maio de 2018

Não há democracia sem tesão, por Gustavo Conde.





Não sei se vocês percebem, mas o golpe aniquilou o bom senso e a capacidade de codificação básica de enunciados do brasileiro (o pouco que ele tinha). É devastador.
O primeiro sintoma é no comércio. Comerciantes, cabisbaixos, com medo, não entendem mais nada. Eles esqueceram de como lidar com clientes. Estão mais preocupados – com razão – com a própria sobrevivência. Você pergunta uma coisa, eles respondem outra.
Exemplo? Acabo de ligar para a imobiliária para comunicar um problema na casa em que moro. Digo que é preciso avisar o proprietário. A resposta: “desculpe, senhor, mas é preciso antes avisar o proprietário”.
É uma réplica do debate político. Muitas vezes, a pessoa discorda de você e diz exatamente o que você disse. É o efeito-Globo.
Essa mania de a imprensa facilitar demais o texto para o leitor produziu, ademais, uma classe média leitora com déficits severos de leitura, que só poderão ser sanados gerações adiante.
Tudo isso é grave e vinha sendo grave já no período democrático. Mas, agora, o mergulho foi profundo e de cabeça (sendo que a piscina é rasa).
Eu não facilito para o meu leitor. Acho que seria uma falta de respeito. Deixo muitos espaços ‘em branco’ mesmo para que ele tenha a oportunidade de preenchê-los e contribuir para o debate.
Voltando à cena de guerra das ruas e das pessoas desamparadas e desoladas: trabalhadores do comércio mal conseguem sorrir. Nem fazem mais questão. Isso é muito sintomático. É o estado de espírito que tomou conta do país.
Nem precisaria o relato factual de quem anda nas ruas: o índice sempre favorável nas pesquisas de ‘otimismo’ que o Brasil vinha liderando caiu por terra. Hoje, o brasileiro é um dos povos mais infelizes do mundo.
Não é pouco esse estado de espírito devastado. Isso afeta todo o resto, da economia à expectativa de vida. Pessoas sem esperança morrem. Por dentro e por fora.
Muito mais que tecnicalidades de ‘reformas’ e ‘retomadas’ que nunca chegam, a questão no Brasil é recobrar a autoestima. Sem ela, nada vai acontecer.
Eu me lembro do contraste a tudo isso nos governos Lula. Você ia ao comércio popular comprar qualquer coisinha e o vendedor travava uma conversa olho no olho, com respeito e com muita assertividade Queria o resultado – e era ótimo para ambos os lados.
Havia sorrisos, ideias, conversas e sempre um bom negócio no final. Sem bom negócio não há muita chance de se ter uma boa relação simbólica.
O tão comentado ‘tecido social’, portanto, se desfez. Rasgou. A metáfora nem funciona mais (que ‘tecido’, cara-pálida? Isso aqui é um trapo puído e desfiado).
Transportem esse termômetro agora para todos os outros segmentos: gestão pública, gestão empresarial (a febre dos coachings caça-níqueis na falta de se ter empreendedorismo real), gestão educacional, cenário político. Óbvio que a coisa vai mal.
Aí, entra o ponto central: nós vivemos uma escalada sem precedentes de ceticismo. Tem cético saindo pelo ladrão. Eles concentram sua anti-energia nos seguintes enunciados: “ah, o Lula vai ficar preso muito tempo”; “ah, o golpe venceu”; “ah, a esquerda é burra”.
São esses os enunciadores da desgraça brasileira, muito mais que o próprio golpe (que mal consegue enunciar qualquer coisa, tão destituído de competências linguísticas básicas que é).
Muita gente reclama do amor incondicional que Lula provoca nas pessoas. Morrem de desgosto de ver gente apaixonada por Lula e pelo PT. É o clássico ‘despeito’. O que eles esquecem é que não há democracia sem tesão.
A paralisia que grassa no Brasil neste momento é afetiva, é libidinal. É um medo lascado de amar de novo (como amaram os 13 anos de democracia insinuante da esquerda).
Só quando esse bloqueio emocional for rompido, o país retomará o raciocínio. Só assim, eu poderei comprar qualquer coisinha no comércio popular e voltar com a felicidade de ter conhecido um vendedor – ou vendedora ou vendedorx – interessante, altivo e de posse de seus sentidos.

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