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segunda-feira, 28 de maio de 2018

Você realmente se preocupa com os caminhoneiros?, por Jorge Luiz Souto Maior.


"A mobilização dos caminhoneiros, formalmente, tem tudo para ser considerada uma greve e a adesão social que se tem dado ao movimento representa, no mínimo, a oportunidade para que se supere, de uma vez, a aversão generalizada que as greves de trabalhadores enfrentam no Brasil."


Por Jorge Luiz Souto Maior.

Perguntaram-me se a mobilização dos caminhoneiros seria greve ou locaute.
Do ponto de vista jurídico, não se trata de locaute, pois este, nos termos da lei é “a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados”, sendo proibido (art. 17 da Lei n. 7.783/89).
No caso concreto, ainda que se tenha elementos para afirmar que muitas empresas de transporte apoiaram e até impulsionaram a paralisação dos caminhoneiros, não se pode dizer que o fizeram para frustrar uma negociação com os respectivos empregados ou dificultar-lhes o atendimento de suas reivindicações. Muito pelo contrário, embora rara, haveria uma comunhão de interesses com relação ao objeto da paralisação, a redução dos custos de produção, razão pela qual, visto como ação de natureza política, parece-me legítimo o movimento, pois a política não está interditada para nenhum segmento social.
Seria, então, greve?
​A resposta não é tão simples.
Nos termos do art. 9º da CF, a greve é um direito dos trabalhadores aos quais compete “decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
A Constituição Federal apenas remete à lei a possibilidade de definir “os serviços ou atividades essenciais”, cumprindo-lhe, também, dispor “sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, de modo a, sem impedir o direito de greve, buscar os meios necessários para que a greve não implique danos irreparáveis (parágrafo único do art. 9º).
Além disso, a Constituição prevê que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
Então, ainda que se possa falar em uma coincidência de interesses com o das transportadoras, pelas normas constitucionais, a mobilização deflagrada pelos caminhoneiros, de conteúdo político, pode ser considerada uma greve.
Do ponto de vista jurídico formal, no entanto, a já citada Lei n. 7.783/89, votada logo depois da promulgação da Constituição, teve a nítida intenção de reduzir o alcance da norma constitucional.
Assim, segundo a lei, a greve só poderia ser deflagrada por entidade sindical, após deliberação em assembleia, atendendo, também, o requisito de uma comunicação prévia ao empregador, o que remete, ainda, à ideia de que só pode haver greve de reivindicação de direitos perante o empregador (art. 1º a 4º).
Nos moldes da compreensão positivista, e atendendo-se à visualização quase sempre restritiva como as mobilizações de trabalhadores sempre foram juridicamente tratadas no Brasil, se levada a questão em juízo, o resultado seria a declaração da ilegalidade da greve dos caminhoneiros.
Ocorre que esses limitadores da Lei n. 7.783/89 são, nitidamente, inconstitucionais, pois o pacto firmado na Constituição de 1988 foi no inegável sentido de integrar os trabalhadores à vivência política do país, garantindo-lhes a greve como um Direito Fundamental, inclusive. Aliás, não se chegaria ao pacto constituinte sem a ocorrência das greves do ABC, que se alastraram Brasil afora, sinalizando a abertura de um processo de ascensão popular que congregou não só trabalhadoras e trabalhadores de outros setores profissionais, como o movimento antimanicomial e as lutas pela saúde pública, pelo direito das mulheres, das negras e dos negros, das populações indígenas, de LGBTs, e que por isso mesmo, da mesma forma como pode ocorrer com a greve dos caminhoneiros, teve uma enorme adesão popular.
A mobilização dos caminhoneiros, portanto, formalmente, tem tudo para ser considerada uma greve e a adesão social que se tem dado ao movimento representa, no mínimo, a oportunidade para que se supere, de uma vez, a aversão generalizada que as greves de trabalhadores enfrentam no Brasil.
A greve, cumpre acrescentar, é um Direito Fundamental dos trabalhadores e para ser exercido não exige formalidade essencial, limitando-se, unicamente, pela inserção, no caso concreto, de outros Direitos Fundamentais, não bastando, pois, para o mero incômodo ou prejuízo econômico, pois a greve, na essência, causa transtornos, já que quebra a normalidade, e pode levar a danos econômicos.
A greve, além disso, faz parte da essência da democracia em uma sociedade capitalista, pois, sem ela, os trabalhadores não teriam vez e voz.
É, também, uma oportunidade para o desenvolvimento de um processo de conhecimento, vez que a engrenagem da vida transforma as pessoas em máquinas. Neste sentido, aliás, é bastante oportuno questionar se a “normalidade” que foi quebrada era, de fato, normal, ou seja, fruto de uma situação natural, inexorável, ou o resultado de uma construção histórica e que, por diversas determinantes, criou a aparência de “natural” para relações sociais carregadas de opressões históricas e extremamente assimétricas.
O dano econômico gerado pela greve seria, efetivamente, um prejuízo, ou a mera obstrução temporária da extração de mais-valor do trabalho exercido pelos trabalhadores?
Neste aspecto, a greve permite perceber que é o trabalho que produz e faz circular a riqueza produzida.
Ocorre que na concebida vida “normal”, as pessoas vivem em função das mercadorias que adquirem (produzidas para atenderem aos interesses do estômago ou do imaginário) e do trabalho que precisam realizar para ganhar o dinheiro que lhes permite ter acesso às mercadorias. Mas, no geral, no estágio da “normalidade” não paramos para pensar que, como já se disse, “as mercadorias não chegam sozinhas ao mercado”. Elas são produzidas por alguém em algum lugar e precisam ser transportadas até o local de consumo.
Assim, por trás de uma bela marca há trabalho, muito trabalho, prestado em condições bem distintas daquelas que foram fetichizadas nas vitrines iluminadas de shoppings perfumados.
Pensadas as relações sociais pela sua essência, o que se tem por normalidade é apenas um mascaramento da realidade. O real, então, é desvelado pela greve.
Vejamos o caso dos caminhoneiros.
Na dinâmica da vida “normal” não se consegue perceber que os caminhoneiros estão nas estradas dirigindo durante 14 horas ou mais, sendo que não é rara a situação de que fiquem dias seguidos à disposição do trabalho, longe de casa, dormindo na boleia do caminhão, nos carregamentos e descarregamentos, entre uma viagem e outra, em pátios ao redor de grandes fábricas ou entrepostos. Pior, inclusive, é a vida dos denominados motoristas “autônomos”, ou “Transportador Autônomo de Cargas” – TAC (Lei n. 11.442/07), também identificados como “agregados”1 ou “independentes”2, vez que trabalham em condições típicas de empregados e lhes são negados os direitos trabalhistas, com agressão a diversos preceitos constitucionais. Esses “autônomos”, aos quais se transferem os custos da produção, recebendo por quilômetro rodado, muitas vezes acabam se vendo obrigados a consumir substâncias prejudiciais a própria saúde para conseguirem trabalhar dias e noites quase sem parar.
Inúmeras são as situações em que os “agregados” são induzidos a adquirem os caminhões, com financiamento impulsionado pelas próprias empresas, e depois precisam trabalhar de forma incessante para, com o dinheiro do “frete”, conseguirem pagar o financiamento, o combustível, a manutenção do veículo, os pedágios, os impostos, sobrando-lhes um “ganho” que é pouco superior a um baixo salário, isto quando não experimentam prejuízos, sobretudo quando, para o exercício da atividade, precisam contratar ajudantes, cuja condição de trabalho é ainda pior. Esses ajudantes, aos quais a Lei n. 11.442/07, de forma grotescamente inconstitucional, também nega a relação de emprego e, consequentemente, os direitos trabalhistas, aparecem como empregados dos motoristas “autônomos” e, assim, os “autônomos” muitas vezes ainda precisam assumir os custos de reclamações trabalhistas, na condição falseada de empregadores.
Aliás, a todos que se dizem comovidos com a situação dos caminhoneiros, cumpre informar que as diversas reclamações trabalhistas, movidas por motoristas e ajudantes em todo o Brasil, pelas quais pleiteiam o reconhecimento da relação de emprego e a efetivação dos direitos trabalhistas, questionando os termos da Lei n. 11.442/07, estão com sua tramitação suspensa desde 28 de dezembro de 2017, por determinação do Ministro Luís Roberto Barroso, em decisão proferida na Ação Direta de Constitucionalidade n. 48, movida pela Confederação Nacional do Transporte – CNT.
O fato é que, seja na condição formalizada de empregados, seja na situação juridicamente desvirtuada de “autônomos”, tem sido trágica a condição de trabalho e de vida dos caminhoneiros no Brasil e essa é uma questão central na produção e na distribuição da riqueza nacional, tanto que até mesmo a recente “reforma” trabalhista pode ser apontada, em parte, como uma reação do poder econômico, encabeçado pela CNT (Confederação Nacional do Transportes), à alteração, na última década, do posicionamento da Justiça do Trabalho frente às condições de trabalho dos motoristas, tanto no que tange à superação do disfarce da autonomia, quanto no que diz respeito à limitação da jornada de trabalho.
Essa postura da Justiça do Trabalho, inclusive, refletiu-se na edição da Lei n. 12.619, de 30 de abril de 2012, que avançou na proteção jurídica desses trabalhadores, notadamente no aspecto da limitação da jornada de trabalho, por se tratar, inclusive, de uma questão de saúde pública, dado o enorme índice de acidentes nas estradas envolvendo motoristas de caminhão. No entanto, a reação do setor econômico logo veio e, em 02 de março de 2015, foi publicada a Lei n. 13.103, que revogou vários dispositivos da Lei n. 12.619/12, retomando a lógica de uma exploração quase sem limites do trabalho desses profissionais.
A quantidade de horas de trabalho, a baixa remuneração, a ausência de proteção social, o elevado número de acidentes de trabalho, a assunção pelos trabalhadores do custo da produção que seria próprio do capital e não deles próprios constituem a essência das dificuldades cotidianamente enfrentadas pelos caminhoneiros e nada disso está em pauta, seja na própria reivindicação dos caminhoneiros, conforme o que tem sido difundido na grande mídia, seja daqueles que tentam se aproveitar do movimento para construir uma narrativa que favoreça a interesses não revelados.
Um movimento de trabalhadores que não tenha bem nítido o seu interesse de classe, quando tenha grande força mobilizadora, pode ser apropriado como um movimento de massa para abarcar uma insatisfação generalizada, despolitizada, contra o aumento de preços, a majoração de impostos, uma rejeição ao governo e aos políticos. No lastro dessa disputa de narrativa é que, em um país historicamente refratário às lutas dos trabalhadores, contrário à ascensão da classe trabalhadora, à declaração e à efetivação dos direitos dos trabalhadores, resistente às políticas de redução da pobreza, a greve dos caminhoneiros está recebendo um enorme apoio da classe média e até mesmo de parte da classe dominante, que veem no movimento a chance para emplacarem seus projetos específicos, apresentados como interesse da nação, aproveitando-se da perda completa de legitimidade do governo.
É por isso que se tem tentado apropriar do movimento dos caminhoneiros para torná-lo legitimador de pautas genéricas que, concretamente, não explicam nada e nada propõem, a não ser a quebra total da institucionalidade para a instauração do caos e, com isso, se chegar a negativação plena do Estado Democrático de Direito.
Como revelador das contradições, é possível ver inúmeras pessoas e movimentos se manifestando em favor da greve dos caminhoneiros, mas que, concretamente, são arredios aos direitos dos trabalhadores.
A questão é que quando trabalhadores se mobilizam para formular pretensões restritas à redução dos custos de produção, sem interferir nas condições de trabalho, atendendo, por conseguinte, a interesses que seriam próprios dos empregadores e, com isso, abrindo espaço à formação de um movimento de massa que destrói a política e que põe em risco as instituições democráticas, não se teria, propriamente, uma greve. Não seria mais que um movimento de massa, que ganha apoio generalizado, em novo movimento de massificação da racionalidade, para servir a interesses que pouco, ou quase nada, dizem respeito àqueles dos protagonistas iniciais do movimento.
De todo modo, não me arriscaria a dizer que a mobilização em questão seja somente isso que se tem projetado sobre ela, que, mesmo com reivindicação restrita, ligada ao custo da produção, não tenha importância concreta para os caminhoneiros ou que seja completamente deslocada de uma autêntica greve de trabalhadores, até porque os movimentos sociais são, como o próprio nome diz, uma história em movimento e, portanto, pode até ganhar um direcionamento muito além daquele que fora o inicialmente projetado ou simplesmente imaginado.
Daí porque se equivocam todos aqueles que pretendem explicar o que é e para qual objetivo se destina a greve dos caminhoneiros. As certezas a respeito são, de fato, apostas e são muito mais uma projeção da vontade do analista do que, propriamente, a essência do movimento.
Trata-se, isto sim, de um movimento muito importante e que, por isso mesmo, está em disputa. Diante da grandiosidade atingida, inclusive, abriu as portas do futuro, que não está escrito.
A grandiosidade dessa mobilização, que parte de uma insatisfação tão grande que, inclusive, conseguiu se alastrar pelo mero uso do WhatsApp, pode fazer com que os caminhoneiros, vivenciando um processo de autoconhecimento, se percebam como trabalhadores e tenham a compreensão de que sua vida efetivamente sofrerá mudança significativa, e ainda assim bastante restrita, com a efetivação de direitos como a limitação das horas de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, 13º salário, estabilidade no emprego e demais direitos trabalhistas, aumento real de remuneração, inserção na rede de proteção social, assunção pelas empresas dos riscos da atividade, sobretudo no que tange aos acidentes de trabalho, e não com a mera redução de impostos e diminuição do preço de pedágio, que são, concretamente, custos da produção que lhes foram transferidos indevidamente.
O processo de formação da consciência cabe a todos que se propõem a formular seus registros narrativos e cabe, claro, de modo prioritário, no caso concreto, aos próprios caminhoneiros, ao menos no sentido de reconhecerem quais são os interlocutores que estejam efetivamente dispostos a levar adiante as causas que digam respeito aos seus reais interesses.
A quem se propuser a formular impressões valorativas sobre a situação, uma pergunta está pressuposta: você realmente se preocupa com os caminhoneiros?

NOTAS
1 Art. 4º – “§ 1o  Denomina-se TAC-agregado aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa.”
2. Art. 4º – “§ 2o  Denomina-se TAC-independente aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem.”
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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