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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

É BENTO, SENHORA! (CONTO - PARTE IV), POR ALEXANDRE MEIRA


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            Era um clima tenso. Várias pessoas ainda acordadas no meio da madrugada. Uma novidade e tanta pra aquela gente. Malocas de senhoras curiosas fervilhavam, e vários homens bancavam valentia enquanto ostentavam facões e foices sujos pelos sulcos feitos na mata. Mas já estava tudo resolvido. E não era pra tanto. Enquanto isso Yolanda com as mãos comprimidas de tensão dava ordens confusas quase sem poder lidar com tudo ao mesmo tempo:
- Arruma alguém pra mim Severino!! Pelo amor de Deus, ela ainda tá sangrando muito.... Ai meu Deus!!! Margarete!!! Corre com as compressas de água gelada!! Alguém ficou com as crianças?! Vê se a rezadeira já chegou.... Eu não vou aguentar, gente, é muita coisa!! Meu Deus me ajuda....
Aquele entra e sai na pensão só deixava as meninas mais nervosas e Yolanda, principalmente, sem ter como esconder o motivo de seu maior constrangimento. “Ele deve tá junto dos seus meninos. Veja como elezinho está pra mim, não quero que ele comece a chorar, Mirtes, por favor...” sussurrou quase chorando pra filha do meio, que como um raio sumiu no meio das pessoas.
- E a menina, Yolanda?? Vê se acalma minha filha! - Pergunta uma idosa à matriarca. Ela vira Mariana correndo mais cedo pro caminho da Pedra do Gavião.
- Tá... não sei. Tá que parece que morreu... Deus do Céu...- respondeu com a voz trêmula, logo interrompida a fala com um beijo no inseparável escapulário. Completou, olhando-a com angústia:
- Se não fosse a senhora não sei se teria achado a minha filha!! Mas quem, gente?! Quem ia fazer uma maldade dessa com ela meu Deus?!
A senhora com um lenço na cabeça que revelava ainda mais a sua idade transmitia-lhe calma abraçando-lhe fraternamente. Conhecia a família de Yolanda há muito e como outros naquele povoado trazia nas experiências pessoais conhecimento suficiente para ler as entrelinhas do olhar. Abraçando-a mais um pouco, confidenciou:
- Não é a primeira que faz isso, filha, nem vai ser a última. Mas talvez precise mais de você do que qualquer outra menina dessas...
- O que ela  foi fazer lá naquele lugar?? - Suplica Yolanda.
A idosa reflete imersa em seus olhos negros. Ante o barulho daquela gente, não era conveniente falar de todo o que estava pensando.  Optou, no entanto, por levá-la ao interior da pensão com a ajuda de alguns próximos. Conduziram Yolanda pelos braços até um lugar mais calmo, uma vez que ela não resistiria se visse novamente Mariana no estado em que se encontrava.                
Fora dali, em frente a casa Mercedes ouvia atentamente o relato de alguns envolvidos:
- Tava tudo escuro na hora, foi Deus mesmo, sorte nossa os cachorros não terem achado antes... era muito sangue.  Eles tavam lá em cima mesmo, quase na pedra! Precisou Geraldo, eu, e mais o pessoal que vinha atrás pra trazer. “Ia” morrer os dois... Mas como é que ninguém viu essa menina de barriga?!
- Ela tava com mais alguém, Seu Tião? - Interrompe estrategicamente Mercedes, e antes que alguns outros vizinhos passassem por eles entrando pela pensão, ela interpelou asperamente,    - Não entra não gente, deixa minha mãe descansar um pouco!! Por Favor!
- Tava não... - respondeu o homem - não tinha como chegar mais ninguém lá não, só se já soubesse. Pra mais de dez horas que ela tava sumida. A gente perdeu muito tempo aqui na rua até achar o rastro de sangue, e ninguém podia saber que ela tinha ido tão longe... rodamos a mata na parte baixa muito tempo. Aí danou-se.- constatou ainda excitado com o feito.
- Ela pariu sozinha...- comentou conformado um morador que assistia ao relato do senhor.
Mercedes, a filha mais nova de Yolanda, conhecia bem Mariana. Sabia de sua gravidez, era cúmplice na omissão, mas não poderia imaginar o que ela faria para fugir da tia. Talvez fizesse a mesma coisa em desespero pra esconder a barriga, mas jamais encamparia no meio da mata, ainda mais pra um lugar daqueles. Ela não demonstrava querer se livrar do filho. E se quisesse fatalmente teria feito antes. Revisitava suas lembranças, ansiosamente, na tentativa de justificar aquilo tudo, alguma pista, alguma coisa que Mariana pudesse ter dito. Mas o que? Era muito difícil aquelas alturas organizar as idéias.
- Mercedes!!
Mirtes gritava da janela de um dos cômodos do segundo andar da pensão. Por um momento toda aquela gente silenciou e as atenções voltaram pra lá. Fez um sinal curto pra que ela entrasse rapidamente. A menina fechou a entrada da pensão e como rastilho de pólvora em segundos estava em frente ao quarto de onde a irmã chamara. Entrou. Trancou a porta. Quando virou-se não pode conter o assombro. Colou as costas na madeira fria da  porta, e suas mãos ainda meninas começaram a tremer. No quarto figuravam Mirtes, duas senhoras, uma delas envolta com panos e bacias de água. E sobre uma das camas remexia um pequeno bebê sobre panos brancos encardidos. Mercedes mal conseguia andar em direção a cama, e da porta mesmo perguntou?
- Ele tá bem?
- Agora tá...Precisa descansar, mas parece que não dorme... tá inquieto. - respondeu quase sussurrando a outra senhora que ajudava no quarto.
- Mas porque ele não chorou até agora? - perguntou Mercedes aos poucos se aproximando.
- Não sei minha filha... fala baixo por favor.. essa criança tem que descansar...
- Mas tá todo mundo perguntando da criança, todo mundo viu o Seu Tião chegando com ela, e ninguém ouviu choro!! Vão achar que morreu...
- Cala boca Mercedes!! - Gritou Mirtes.
A parteira olhou acidamente para as duas jovens que recompuseram o tom de voz. Ela foi chamada as pressas pra ajudar a cuidar da criança, já que o mais difícil, o parto, já ocorrera. Vigorosamente torcia os panos com água quando relembrou às duas de algo quase tão importante quanto o pequeno que estava sobre a cama.
- Vocês já foram ver Mariana?
Mercedes levou as mãos à boca lembrando-se da prima num breve susto. Mas antes de se virar e partir, com os olhos brilhando aproximou-se e estendeu a mão tocando de leve a cabeça do bebê. Talvez a primeira carícia que aquela criança de fato recebera depois daquelas horas tortuosas. A menina de dezesseis anos por um momento se divertiu fechando os olhos num sorriso fácil, que contagiou as outras mulheres. Curvada sobre a cama, segurando os longos cabelos encaracolados atrás das orelhas, ainda soltou uma de suas frases brejeiras:
- Ele é pretinho, pretinho... né?
No andar de baixo Yolanda era consolada por vizinhas enquanto Margarete conduzia os curiosos para fora do estabelecimento. Antes de levar os últimos até o pequeno portão de madeira, deparou-se com Severino, muito amigo da família, trazendo a notícia à boca miúda:
- Margô... O pessoal tá vindo aí. Parece que pegaram.
Ciente do que estava pra acontecer Margarete aos gritos praticamente expulsou o restante das pessoas que ainda estavam na frente da pensão. Yolanda ouvindo a filha no portão, levantou os olhos de lá do fundo da casa, e pediu que as poucas senhoras que a acudiam permanecessem com ela. Era muito tarde. Margarete como um cão de guarda olhava agudamente para o final da estrada barrenta, à espera de algo. Mirou num instante a mãe prostrada numa cadeira de palha ao longe e fez um sinal de positivo, numa aparente impiedade. Yolanda baixou os olhos e murmurou para si mesmo algo triste.
De onde estava viu cerca de dez homens se aproximarem e serem interceptados por Margarete, eles arrastavam um jovem negro com os braços amarrados para trás e com o rosto muito machucado. Parecia chorar. Yolanda não quis chegar perto. Margarete conversou com eles mais alguns minutos antes de se separarem. A maioria dos homens seguiu carregando o rapaz. O restante entrou pela pensão seguindo Margarete, com passos firmes, vindo em direção a Yolanda. Ela não conhecia nenhum deles. Dentre eles um homem alto, magro e com uma arma na cintura parecia ser o responsável pelo grupo. Margarete, chegando à mãe, disse:
- Mãe... pode ficar tranquila agora que esse safado não vai fazer mais maldade com a filha de ninguém.
Yolanda balançou a cabeça devagar enquanto era abanada por uma das vizinhas. Juntou forças e perguntou:
                - Ele era daqui, filha?
             - É um garoto que trabalhava na chácara do Salustiano. Trabalhou lá pouco, uns dois meses. Depois foi mandado embora. Mesmo assim frequentava a pensão da senhora, pernoitando sem motivo algum aqui na cidade. - Respondeu o homem alto com uma voz forte.
             - E você é quem meu filho? Acho que já vi você algumas vezes... - Perguntou a mãe franzindo a testa.
              - Eu não moro aqui não senhora, trabalho aqui perto. E quando não estou de viagem faço uns serviços por essas bandas. É raro, mas sempre que preciso durmo na sua pensão...
                - Mas o garoto...
               - Pode ficar tranquila, minha senhora. O garoto vai ter o corretivo que merece... Isso não é coisa pra senhora, deixa com o meu pessoal. A senhora precisa descansar agora e cuidar da criança e da menina Mariana.
        As mulheres ouviam atentamente ao homem que não aparentava ter muito mais de 30 anos. E por mais duro que pudesse parecer, aquela notícia trouxe um pouco mais de calma a elas. Sem mais delongas Yolanda ofereceu refeição, mesmo sabendo que nada havia sido preparado. Sabia através de Margarete que aquele grupo saiu desde à tarde atrás do pai da criança, e que estariam por demais cansados. Mesmo assim o homem não aceitou. Ajoelhou-se beijou a mão da senhora, fez um leve afago no cabelo da jovem Margarete, e despedindo-se deu as costas junto com os outros em direção à porta. Yolanda, num sobressalto, elevou a voz:
                  - E seu nome meu filho... A sua graça por favor?
                  O homem virou-se e com o olhar sério respondeu:
                  - É Bento, senhora. Meu nome é Bento.

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