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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

As tendências que dinamizam a sociologia, por Mangabeira Unger.


“Defensores de cada uma fingem ser inimigos, mas na realidade são aliados”

Jornal GGN - O artigo à seguir é uma palestra proferida pelo professor e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, Roberto Mangabeira Unger, em 2014 na Universidade Federal Fluminense, onde ele, de modo sucinto, explica as três tendências que dominam as ciências sociais: racionalizadora, humanizadora e escapista. Segundo Unger, apesar dos defensores dessas três tendências brigarem entre si eles são, na verdade, aliados. 
"Essas três tendências são três modos diferentes, porém, complementares, de suprimir a imaginação do possível e cortar essa ligação indispensável entre entender o existente e imaginar o possível".
Revolução, reforma ou contemplação - a teoria social enjaulada*
Palestra e debate com o professor Mangabeira Unger em 23/11/2014 no Laboratório de Alternativas Institucionais da Universidade Federal Fluminense.
Há três tendências dominantes no amplo espectro das ciências sociais e das humanidades.
1 – Tendência Racionalizadora
Ocorre nas ciências sociais positivas, sobretudo como cultivadas na academia dos EUA, onde predomina uma racionalização retrospectiva dos arranjos existentes nas sociedades contemporâneas.
Essa tendência é mais patente na ciência social mais influente, a economia. E, sobretudo, no uso prático da economia para orientar o debate sobre as políticas públicas.
É uma racionalização funcionalista que se fundamenta numa ideia de convergência. Ou seja, as sociedades contemporâneas estariam convergindo para as mesmas instituições e práticas, por um processo quase darwiniano de seleção daquilo que funciona melhor. No vocabulário da história da filosofia nós poderíamos chamar essa tendência de um hegelianismo de direita, porque seu espírito é identificar o real com o racional.
2 - Tendência Humanizadora
É aquela que predomina nas disciplinas normativas da filosofia política e da teoria jurídica.
Nesse caso, a iniciativa intelectual prevalecente, nas sociedades ricas do Atlântico Norte, é o recurso a justificativas pseudofilosóficas de dois tipos de prática: reformista ou humanizadora.
Humanizadora pela redistribuição compensatória através dos programas sociais e da tributação progressiva. E, reformista, pela idealização sistemática do direito como um conjunto de princípios impessoais e de políticas públicas.
O espírito delas é a aceitação do último grande compromisso ideológico e institucional construído em meados do século passado. Na Europa, é descrito como socialdemocrata e, nos EUA, é representado pelo legado do New Deal de Roosevelt
No atual momento, o projeto dominante no Atlântico Norte é a reconciliação social dos europeus com a flexibilidade econômica dos americanos, dentro de um arcabouço institucional pouco ajustado.
E aqui vale uma crítica a esse segundo conjunto de ideias, pois, o compromisso social democrata se definiu pelo abandono de qualquer tentativa de redefinir os mundos do poder e da produção. Daí, esse esforço humanizador na filosofia política e na teoria jurídica.
Vejam, por exemplo, as filosofias de justiça influentes no mundo anglo-saxônico. Na forma são muito abstratas, teorias de “contrato social”, mas o objetivo prático é muito claro. É a justificativa filosófica das ações compensatórias. 
- Quanto se vai tirar de quem, para atenuar as desigualdades geradas no sistema atual.
Não havendo qualquer tentativa de reimaginar o sistema atual. Sendo, por isso, definida como uma tendência humanizadora.
3 – Tendência Escapista
Um conjunto de ideias nas humanidades (fora das ciências sociais aplicadas, incluindo a economia), onde prevalece um “aventureirismo subjetivista”, inteiramente desconectado de qualquer tentativa de reimaginar e reconstruir a ordem social.
Os defensores dessas três tendências, a racionalizadora, a humanizadora e a escapista, fingem ser inimigos, mas na realidade são aliados. Aliam-se no desarmamento da imaginação transformadora.
Do ponto de vista epistemológico, o problema central é o corte do vínculo entre o entendimento do possível e a imaginação da transformação.
Entender um fenômeno é entender as suas transformações, sobretudo, na penumbra do possível adjacente, dos próximos passos. Assim é nas ciências naturais.
Essas três tendências anteriormente descritas são três modos diferentes, porém, complementares, de suprimir a imaginação do possível e cortar essa ligação indispensável entre entender o existente e imaginar o possível.
Agora uma segunda ordem de reflexões para situar esse quadro intelectual, especificamente, na história da teoria social e na história das ciências sociais.
A ideia central da teoria social europeia clássica, cuja expressão mais elaborada é a doutrina de Marx. É o conceito de que a estrutura da sociedade são criações humanas, não são fenômenos naturais. Nós (humanidade) fizemos essas estruturas. E, como escreveu Vico, porque nós as construímos nós podemos compreendê-las.
Para adotar um vocabulário que não é aquele dos teóricos sociais clássicos, podemos dizer que as estruturas da sociedade são como uma “política congelada”.
Há uma luta prática e visionária sobre a organização da sociedade e essa luta é sempre parcialmente interrompida e a interrupção dessa luta é que gera essa estrutura e aí a metáfora da “política congelada”.
Esse foi o conceito revolucionário da teoria social clássica. Exemplificada na crítica de Marx da economia política dos ingleses. Eles (os ingleses) imaginavam que essas leis da economia eram eternas e universais, enquanto que, na verdade, eram leis de um determinado regime.
Essa concepção revolucionária estrutural foi, porém, na teoria social clássica, cerceada e comprometida por um conjunto de ilusões deterministas. Em especial, por três tipos de ilusões.
1) Na história há um elenco fechado de regimes, de sistemas ou de estruturas, como são os modos de produção do marxismo.
2) Cada um desses sistemas é indivisível, sustenta-se ou cai como um todo. A consequência prática disso é que só há dois tipos de política. A revolucionária, que substitui um sistema por outro; e a reformista, que maneja um desses sistemas para estabilizá-lo ou humanizá-lo.
3) Além das leis próprias de operação de cada um desses sistemas indivisíveis (modos de produção) há supostamente leis que governam a sucessão histórica desses sistemas.
Tudo falso. Ilusões. Sem alongar, observa-se apenas que poucos ainda acreditam nessas ideias. Curiosamente, porém, continuam usando o vocabulário dos sistemas teóricos que não acreditam. O que é uma atitude, poderia se dizer, sentimental em relação a um ideário fossilizado e decrépito.
A ciência social rejeita essas ilusões deterministas, porém, perdeu a ideia revolucionária central das estruturas (como criações humanas) e, por isso, o espírito predominante do pensamento social é o da naturalização das estruturas.
É aquilo que foi observado antes como tendência racionalizadora. Essa operação de naturalizar, de fazer com que aquilo que aconteceu na história pareça, senão necessário, ao menos natural, ganha cores persuasivas numa situação histórica em que não há grandes transformações estruturais. Caso estivéssemos em meados do século passado na Europa, no período das guerras, tudo isso teria menos credibilidade. Mas se há uma estagnação relativa essas tendências mistificadoras ganham uma autoridade que elas não merecem.
Qual é, então, nossa tarefa na construção do pensamento social?
É resgatar a ideia central, o que há de melhor na teoria social clássica, libertando-a dessas tendências racionalizadoras, humanizadoras e escapistas. Em suma, libertar a teoria social das ideias que a corromperam e radicalizar a visão das estruturas como “política congelada”. A partir disso, é preciso demonstrar que a radicalização da teoria social não a leva a um agnosticismo, a uma impotência explicadora, mas sim a formas alternativas de explicação.  E o resultado disso não será um ceticismo ou o voluntarismo, mas outra maneira de explicar os constrangimentos e as transformações.
A partir desse ponto, Mangabeira Unger inicia a apresentação de sua teoria social. Devido a extensão e complexidade, não será descrita aqui.
Apenas como provocação vale a pena transcrever o relato de sua experiência em relação a subordinação cultural brasileira e a nossa falta de capacidade inventiva. Segue o relato do professor:
Vou narrar um fenômeno prático que eu assisti por anos e anos lá em Cambridge Massachusetts.
Um jovem de classe média do Brasil, muito inteligente que sempre se deu bem nas provas e é admitido no doutorado em economia no MIT ou em Havard.
Ele chega lá, pensando que vai escrever uma tese crítica à teoria econômica dominante. Contra a economia neoclássica pós-marginalista. Ele vem com intenções de rebeldia. Vai ser um pensador.  
Chega lá, e depois de algum tempo, constata que não consegue fazer.
É claro que é contra a maré, mas ele não é proibido de fazer. Ele não deixa de fazer [a tese “revolucionária” que imaginava] porque os mentores o proíbem. Ele deixa de fazer porque ele não consegue fazer. Ele não sabe por onde começar. Ele não tem uma formação mais ampla. Não conhece na intimidade a história do pensamento econômico. Não tem ideias filosóficas ou de teoria social mais elaborada. Então, ele não consegue fazer. Aí ele se rende. E acaba escrevendo uma tese aplicando a teoria que ele pretendia atacar.
Sua tese trata de algum aspecto da experiência brasileira que ele vivenciou. Por exemplo, uma tese sobre a hiperinflação. Com isso, ele tem uma experiência de fracasso, de malogro. E até de corrupção pessoal. Não é um malogro só intelectual, é um colapso do projeto existencial dele.
Aí ele pensa assim: eu sou um jovem de classe média, eu não vou ser o pensador que eu imaginava..., pelo menos, eu não vou ser pobre.
Rousseau comenta em algum lugar. Eles não puderam ser homens (sic), então, decidiram ser ricos.
E essa é uma experiência recorrente, então esse jovem diz: eu vou trabalhar lá no BC ou na Fazenda e depois eu vou alavancar isso numa banca privada e eu vou ser rico.
São essas pessoas que escreveram os planos econômicos no Brasil e conduziram a política do Estado Brasileiro. E a posição deles no país é uma consequência direta de fracasso pessoal que eu acabei de relatar. Eu gostaria de ver esse ciclo interrompido. E eu dei só esse exemplo numa área, mas em outras áreas ocorre a mesma coisa.
* A palestra não tem título. Esse é uma criação minha Rpv. A ideia de contemplação é associar a racionalização funcionalista com a contemplação meramente descritiva pós-moderna. A ideia de jaula é da alegoria de Weber "ein stalhartes Gehause" traduzida para o ingles como iron cage - jaula de ferro.

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