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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Como os super-ricos brasileiros evitam impostos, por Patrícia Fachin.

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Com base em dados da Receita, economista calcula: 0,05% da população ganham mais de R$ 100 mil ao mês; e 0,15%, mais de R$ 50 mil. Eles pagam apenas 7% de Imposto de Renda
Por Patricia Fachin, no IHU
Aproximadamente 70 mil pessoas estão no topo da pirâmide dos super-ricos brasileiros, que têm rendimentos acima de um milhão e trezentos mil reais anuais e, em segundo lugar, estão as outras 200 mil pessoas mais ricas do país, com rendimentos a partir de 650 mil anuais. Esses dados correspondem às informações obtidas a partir da análise da declaração do Imposto de Renda de 2013 e têm sido utilizados na pesquisa do economista Rodrigo Octávio Orair, que estuda alternativas ao atual sistema tributário brasileiro. “A principal renda deles”, informa, “são lucros e dividendos e aplicações financeiras. Então, são pessoas cuja fonte de renda não é tanto a renda do trabalho regular, mas, fundamentalmente, a renda por conta de serem proprietários de empresas, ou por investirem em ações, ou em rendimentos de aplicações financeiras”.
Na avaliação do economista, as atuais informações sobre a renda do 1% mais rico do país levantam uma discussão a respeito da desigualdade da tributação. Ele sugere, inclusive, um debate sobre uma possível reforma tributária no país, já que os mais ricos pagam “7% de imposto de renda”.
O economista frisa ainda que em muitos países desenvolvidos as alíquotas progressivas têm sido uma opção para tributar as pessoas conforme a renda. Isso significa, explica, que “uma parte da população é isenta e a partir daí existem alíquotas marginais cada vez mais altas, de maneira que os muito ricos pagam mais imposto do que a classe média alta e do que os muito pobres”. No Brasil, ao contrário, compara, “temos um conjunto de isenções e benefícios tributários que permitem que a maior parte da renda dos muito ricos seja isenta”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Rodrigo Orair pontua ainda que em vez de a Reforma da Previdência e das discussões em torno do salário mínimo serem temas do ajuste fiscal, a Reforma Tributária deveria ser colocada em pauta para retomar o crescimento e o investimento. “O ideal seria fazer uma discussão ampla e ver todas essas distorções e todos esses excessivos benefícios. O ajuste fiscal não pode ser feito só pelo lado da despesa, suprimindo direitos sociais, ainda que haja certos privilégios que precisam ser combatidos, mas é possível fazer ajuste fiscal de duas formas, inclusive pela receita, por exemplo, revisando uma série de subsídios e desonerações que não se mostraram efetivos. O segundo caminho – que é uma tendência, baseada em um relatório recente da OCDE sobre tendências de tributação nos países desenvolvidos e consiste em perseguir o ajuste fiscal, poupando a base da distribuição de renda – é por meio da ampliação da progressividade da tributação, ou seja, ampliando a tributação sobre os muito ricos; e não temos discutido isso no Brasil”, reitera.

Rodrigo Orair | Foto: Saspen
Rodrigo Octávio Orair é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
Quando se fala de ricos e super-ricos no Brasil, estamos falando de pessoas que têm qual renda?
Rodrigo Octávio Orair – Esse é um grande debate na literatura, pois não se tem uma definição clara do que é rico ou do que é classe média; tudo isso é mal definido. Em geral existem dois tipos de debate: um sociológico, a partir da temática de classes sociais; e uma definição mais econômica, a partir das faixas de renda. Acho mais interessante esses trabalhos longos que tratam das classes sociais, mas no debate político e público acaba prevalecendo uma visão mais reducionista relacionada à renda.
Então a partir da renda, como caracteriza o estrato social brasileiro? Que rendas correspondem às categorias salariais existentes hoje, como classe A, B, C, D?
Normalmente os estudos de distribuição de renda se baseavam nas chamadas pesquisas domiciliares, que, em geral, são feitas pelo IBGE. Essas pesquisas tendem a subestimar a renda dos muito ricos, por dois motivos: primeiro, porque a pesquisa é amostral, e é difícil conseguir captar quem são os mais ricos, porque é uma fração muito pequena da população; segundo, por conta da própria natureza dessas pessoas, porque são rendas que vêm, principalmente, da propriedade, seja de empresas, seja de ativos financeiros. Logo, são rendas mais instáveis e são difíceis de serem identificadas em comparação com um cidadão que tem um trabalho formal e que todos os meses recebe o mesmo salário.
Recentemente começou a haver, de novo, um crescente interesse por outro tipo de estudo, que são os estudos com os dados das declarações de Imposto de Renda de Pessoa Física – IRPF. O principal estudo na literatura internacional sobre isso é do Thomas Piketty, no qual ele recupera séries históricas das declarações de Imposto de Renda para analisar a desigualdade e a renda dos muito ricos. Recentemente o Brasil entrou nessa onda, e começou a se ter acesso a dados mais detalhados do IRPF. Através desses dados é possível captar melhor as rendas dos muito ricos no Brasil.
Então a pesquisa via Imposto de Renda é mais adequada para identificar qual é a renda dos mais ricos?
Para obter as informações sobre os muito ricos, sim, porque só declara Imposto de Renda quem tem uma renda maior. A maioria da população brasileira não declara Imposto de Renda porque está abaixo dos limites de isenção. Com a análise desses dados começamos a ter informações reais de quanto ganham os muito ricos no Brasil. Em geral estou falando de frações de concentração de renda do topo, ou seja, o quanto ganha o 1% mais rico no Brasil, que é a população adulta dividida por 100, isto é, quanto ganha o centésimo mais rico do Brasil e quanto ganha o milésimo mais rico do país, que é 0,1% mais rico da distribuição de renda.
Qual é a renda desses estratos?
Só para dar um exemplo, conforme dados da renda anual do Imposto de Renda de 2013, que pertence ao estudo que fiz com o Sérgio Wulff Gobetti, o grupo mais rico gira em torno de 70 mil pessoas — 0,05% da população, considerando apenas os adultos no – nesse ano havia cerca de 140 milhões de habitantes com mais de 18 anos no país -, que tem rendimentos acima de um milhão e trezentos mil reais anuais, e a renda média deles é de 4,2 milhões de reais por ano. E depois, os 200 mil mais ricos do país ganham a partir de R$ 650 mil anualmente. No Brasil, os super-ricos são esses 70 mil, que recebem mais de um milhão e trezentos mil reais por ano.
É possível identificar quais são as áreas de atividades de atuação dos super-ricos?
É difícil cruzar os dados por setores de atividades, mas é possível saber o tipo de renda que eles recebem, e a principal renda são lucros e dividendos e aplicações financeiras. Então, são pessoas cuja fonte de renda não é tanto a renda do trabalho regular, mas, fundamentalmente, a renda por conta de serem proprietários de empresas, ou por investirem em ações, ou em rendimentos de aplicações financeiras.
É a partir da não tributação de lucros e dividendos que afirma que a transferência de renda para os ricos é crescente no Brasil? Como essa transferência ocorre e quais dados demonstram isso?
Para entender isso, é preciso compreender o que é a ação distributiva do Estado. O Estado altera a distribuição de renda da população de duas maneiras principais: de um lado, pela estrutura da tributação de quem arrecada, ou seja, quem paga para financiar o Estado na forma de tributos; de outro lado, os tipos de gastos que o Estado tem, que pode pagar, obviamente, benefícios assistenciais para a família, como o Bolsa Família, salários para os servidores, subsídios para investimentos e outros tipos de gastos que vão gerar renda para as famílias, como os benefícios previdenciários. O que chama a atenção no Brasil é que do lado da arrecadação, o Imposto de Renda é bastante restrito no sentido de tributar os muito ricos, e mostramos isso com os dados do Imposto de Renda.
Em quase todos os países desenvolvidos, com poucas exceções, em geral, há o que chamamos de alíquotas progressivas do Imposto de Renda, isto é, uma parte da população é isenta e a partir daí existem alíquotas marginais cada vez mais altas, de maneira que os muito ricos pagam mais imposto do que a classe média alta e do que os muito pobres. No Brasil temos um conjunto de isenções e benefícios tributários que permitem que a maior parte da renda dos muito ricos seja isenta; o principal deles são os lucros e dividendos: a pessoa é dona de uma empresa, essa empresa opera, transfere lucros e dividendos para a pessoa física, que por sua vez paga 0% de imposto quando recebe esses rendimentos.
O contraste com o salário é muito grande, porque se você é um trabalhador, vai pagar até 27,5% de IRPF. Portanto, esse é um mecanismo que, de um lado, faz com que o financiamento do Estado pese muito pouco a mão dos muito ricos. Do outro lado, da ótica do gasto, o Estado brasileiro promove uma transferência de renda bastante significativa para a base da distribuição, mas grande parte disso é anulada pela chamada regressividade da carga tributária, porque como se tributa muito os mais pobres e pouco os mais ricos, quando se transfere renda para eles, acaba se compensando uma coisa pela outra. No debate de hoje está se falando de Previdência e do salário mínimo, mas estão esquecendo vários outros mecanismos que beneficiam o topo da distribuição de renda e que não estão sendo discutidos.
Quais?
Vou mencionar alguns exemplos. Primeiro, o conjunto de desonerações que foram dadas nos últimos anos para as grandes empresas com o intuito de se retomar o investimento, o qual não se efetivou. Para ampliar o investimento para o setor privado foram dadas várias desonerações para as grandes empresas, obviamente, indiretamente se beneficiaram os proprietários dessas grandes empresas, e esse é um conjunto de transferências do qual não se fala muito. O segundo, evidentemente, é o grande pagamento de juros no Brasil que, indiretamente, beneficia aqueles que são detentores da dívida pública ou que têm aplicações financeiras com renda fixa nas suas carteiras e assim sucessivamente, então, é outro tipo de transferência da qual pouco se fala.
Como é possível resolver a questão das isenções e desonerações para as grandes empresas?
O país está em um momento fiscal difícil, mas a discussão está muito enviesada porque só se fala em uma coisa: a Previdência. O ideal seria fazer uma discussão ampla e ver todas essas distorções e todos esses excessivos benefícios. O ajuste fiscal não pode ser feito só pelo lado da despesa, suprimindo direitos sociais, ainda que certos privilégios precisem ser combatidos. É possível fazer ajuste fiscal de duas formas, inclusive pela receita, por exemplo, revisando uma série de subsídios e desonerações que não se mostraram efetivos. O segundo caminho – que é uma tendência, baseada em um relatório recente da OCDE sobre tendências de tributação nos países desenvolvidos e consiste em perseguir o ajuste fiscal, poupando a base da distribuição de renda – é por meio da ampliação da progressividade da tributação, ou seja, ampliando a tributação sobre os muito ricos; e não temos discutido isso no Brasil. O principal exemplo é revisar esse conjunto de benefícios tributários do IRPF no Brasil.
Quando analisamos a renda dos muito ricos – aqueles que ganham mais de um milhão –, vemos que a alíquota deveria ser progressiva de acordo com a renda das pessoas. Com isso vamos vendo que a maior parte da população brasileira é isenta, porque só em torno de 26 milhões de pessoas declaram Imposto de Renda. E quem paga IR no Brasil são os 5% mais ricos da população. Essa alíquota começa em zero e vai crescendo, até chegar próximo de 12 ou 13% para a população que recebe R$ 160 a R$ 300 mil por ano. Por que ela vai crescendo? Porque a renda dessa população ainda é salário; essa é a “classe média alta”. A partir de R$ 360 mil, as alíquotas começam a cair. Por que elas caem? Porque a partir desse ponto a principal fonte de renda deixa de ser o salário e passa a ser os rendimentos isentos, principalmente lucros e dividendos, e rendimento de aplicação financeira, cujas alíquotas são mais baixas que o salário. E quando chegamos ao topo da pirâmide, nos muito ricos, como a maior parte da renda deles é isenta ou têm alíquotas menores, isso acaba fazendo com que eles paguem 7% de IR, enquanto a classe média alta paga entre 12% e 13%, em média, pois têm os que pagam mais e os que pagam menos. Então, esse é um exemplo de como se quebrar a escala de progressividade.
Como os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE têm atuado em relação à tributação?
O único dos 34 países membros da OCDE que tem isenção total como o Brasil é a Estônia. Outros quatro, entre eles, México, Eslováquia e Grécia, tinham isenção total e revisaram.
Houve uma época em que se tinha a tendência de dar incentivos tributários para a renda do capital, isto é, tratar de forma diferente a renda do capital e a renda do trabalho. Isso tem se mostrado ineficaz e hoje se está revisando essa medida, está se tentando unificar o tratamento tributário, isto é, rever incentivos, rever esses benefícios e essas desonerações; é uma tendência global, simplificar e unificar.
Outros países já têm feito essa revisão tributária? Quais os resultados alcançados?
Revisão da isenção completa foi feita pelo México, a Grécia e a República Eslováquia, mas os outros países já tinham feito. A administração do George Bush havia reduzido impostos para os mais ricos nos EUA, tanto a alíquota máxima, quanto a alíquota sobre dividendos, que era 20% e caiu para 15%. O governo Bush também tinha autorizado a redução do Imposto de Renda, o que fez com que a alíquota máxima caísse de 39,5% para 35% – no Brasil, a alíquota máxima é 27,5%.
Esse problema de consolidação fiscal é global, vários países do mundo estão percebendo isso. Em sua gestão, por exemplo, Obama teve a opção de fazer um ajuste fiscal. O governo Obama teve a opção de renovar essas alíquotas baixas e tomou a decisão de ampliar as deduções para os mais pobres no Imposto de Renda, beneficiando-os; manter as alíquotas reduzidas para a classe média; e aumentar as alíquotas do topo para o percentual anterior ao do governo Bush. Desse modo, a alíquota máxima do Imposto de Renda nos EUA voltou de 35% para 39,5% e os 15% de dividendos voltaram a ser 20%.
E qual foi o impacto dessa mudança?
É difícil fazer a avaliação, porque essa medida é recente e a economia global está em uma crise, mas os estudos mostram que isso não teve um impacto tão grande assim no crescimento e gerou um potencial de receita razoável.
Quem também fez uma reforma parecida foi a Michelle Bachelet, no Chile, em 2013. A reforma tributária chilena é uma experiência curiosa. Quando aconteceu aquela revolta dos estudantes em torno da educação, eles pediam uma reforma do sistema educacional, porque o governo Pinochet estabeleceu tanto um sistema privado de previdência como também um sistema educacional com financiamento privado. O problema é que a economia caiu muito desde 2008, data que a economia global desacelerou, e com isso se gerou um problema: o aluno vai para a universidade, faz um financiamento junto ao setor privado e sai da faculdade com a dívida, esperando conseguir um bom emprego para pagá-la. No entanto, a gurizada saía da faculdade e ficava com a dívida e o desemprego, gerando um enorme mal-estar. Então havia uma pressão nas ruas para fazer uma reforma educacional.
À época o presidente era o Sebastián Piñera, candidato conservador, e ele era favorável a reduzir impostos para recuperar o crescimento, mas Bachelet defendeu a proposta de que era preciso fazer uma reforma do imposto de renda para tributar os mais ricos e financiar a reforma educacional. A proposta dela foi a vencedora nas urnas e ela fez a reforma em 2013.
Há resistência por parte dos mais ricos de aumentar a tributação? Eles argumentam que se aumentar a tributação, poderão deixar de investir?
Isso é curioso. Nos anos 1980 e 1990 foram dados vários benefícios para os mais ricos. Inclusive foi feita uma reforma na década de 1980, no Brasil, que reduziu as alíquotas do Imposto de Renda e foi dada uma série de incentivos tributários nas décadas de 1980 e 1990, e não veio nem o crescimento todo nem o investimento todo, não só no Brasil, mas em vários países do mundo. Então, a experiência histórica recente tende a mostrar que não há essa relação tão clara. Tanto é assim que existe um livro organizado pelo governo britânico sobre sistema tributário. Nessa obra, vários economistas comentam os modelos teóricos na década de 1970, os quais acreditavam que se deveria dar incentivos tributários e reduzir a tributação dos mais ricos para estimular o crescimento e o investimento.
Recentemente grande parte desses caras revisou seus modelos, com base na ideia de que essas hipóteses eram muito simplistas, que na prática não funcionaria assim, e criaram modelos mais pragmáticos. Nesses casos estou falando de ganhadores de prêmios Nobel como, por exemplo, o Joseph Stiglitz, que na década de 1970 fez um modelo que defendia esse tipo de redução de alíquotas do capital e dos mais ricos, o qual reviu recentemente. Além dele, Anthony Barnes Atkinson e James Mirrlees, que defenderam esse ponto de vista, voltaram atrás e revisaram seus modelos.
Junto dessa antiga geração, que são mais velhos e que eram da geração originária desses modelos de tributação, surgiu uma nova geração de pessoas entre 40, 50 anos, como Piketty, que mostra que esses benefícios não têm esses efeitos tão claros.
E quando você menciona que não houve o crescimento esperado com as isenções, que tipo de crescimento se esperava no caso do Brasil, por exemplo?
Em geral, principalmente, espera-se investimento. O grande argumento é que quando há a tributação da renda dos muito ricos, se reduz a poupança, e com a redução da poupança, haverá a redução dos investimentos. O argumento contrário é o mesmo: se deixar de tributar, terá uma poupança maior e essa poupança maior vai gerar um investimento, um esforço empreendedor, e as empresas investirão mais, os mais ricos vão tomar riscos etc. O ponto é que em 1995 isso foi feito, e o investimento no Brasil não respondeu; o investimento no país só teve um curto período de expansão forte entre 2003 e 2008, mas isso não parece ter relação com a reforma de 1995. Se analisarmos as informações dos anos seguintes à reforma, veremos que o investimento não respondeu. Se esse modelo estivesse tão certo assim, não teria que ter respondido?
Alguns alegam que os empresários não investem por causa de outro fenômeno que é a alta taxa de juros brasileira, a qual garante alta rentabilidade para investidores, de tal modo que eles preferem investir desse modo do que de outro. A alta taxa de juros tem influenciado a falta de investimentos no mercado, por exemplo? Qual é a dificuldade em reduzi-la? O que impede o Estado de atuar de modo mais direto nesse ponto?
A alta taxa de juros é um problema; ela influencia, sim, esse processo. A reforma tem que estar colada em um arranjo macro, do contrário não dá para fazer qualquer discussão de política econômica no Brasil. O problema é que a taxa de juros é alta e com isso garante um piso de rentabilidade para o capital muito alto. Imagine: eu sou empresário, posso colocar minha renda em títulos públicos ou em uma carteira de rendimentos de renda fixa, como algum CDB, ou num título público que me dá 15%. Eu até pago 15% de imposto, tem um pouco de inflação, mas mesmo assim esse tipo de investimento me dá um ganho certo de 4%. Assim, eu só vou investir se tiver algo muito atrativo, porque senão eu fico mais tranquilo com esse tipo de investimento. Por que vou correr riscos se posso ter a vantagem de aplicar em títulos públicos que dão liquidez e rentabilidade? Esse é um problema do Brasil.
A redução da taxa de juros seria um mecanismo efetivo para distribuição de renda?
Do ponto de vista da distribuição de renda, tem que ver as consequências dessa redução, mas em geral, sim. A taxa de juros tem um chamado “efeito riqueza”, porque é, na verdade, a remuneração dos detentores dos títulos da dívida pública. É preciso ter certo cuidado nesse debate, pois, às vezes, as pessoas acham que os detentores da dívida pública são quatro ou cinco pessoas que moram no Morumbi, mas não é bem assim. A dívida pública está nas mãos dos grandes, claro que há pessoas físicas que são detentoras de títulos da dívida pública, mas em geral são carteiras de bancos, carteiras de empresas e assim sucessivamente, que vão lastrear as aplicações.
Tem muita gente de classe média que quando vai ao banco e aplica em um CDB, que é um conjunto de aplicações do banco, entre eles, os títulos da dívida pública, também está aplicando nesse tipo de investimento. Nesse sentido, a classe média se beneficia um pouco, indiretamente, com essas aplicações que faz.
Quais as alternativas para reduzir a transferência de renda para os mais ricos?
Uma grande revisão de desonerações e subsídios, que foram ampliados nos últimos anos e também não se mostraram efetivos.
A maior taxação de fortunas e heranças seria adequada?
Há toda a discussão de progressividade da tributação. O que é essa ideia de progressividade? Tributar proporcionalmente mais quem ganha mais, ou seja, quanto maior a sua renda, maior deveria ser sua alíquota. Existem várias maneiras de fazer isso: um instrumento mais direto é o IRPF. Só que essa não é a única maneira de tributar os mais ricos, há outros mecanismos, inclusive o Piketty defende a tributação de heranças progressivas, porque as alíquotas para tributação de heranças são muito baixas, em geral é de 2% a 4%, enquanto seria possível regulamentar alíquotas de até 30%. Nos Estados Unidos isso depende um pouco, mas em outros países desenvolvidos têm alíquotas que chegam a tributar 40% e 50% da herança.
A taxação sobre heranças recairia sobre todos os bens ou parte deles?
Não necessariamente. Em alguns lugares do mundo são isentos os bens imobiliários, se for um só. Mas, a princípio, entra todo o patrimônio que o pai ou a mãe que falece deixará para seus herdeiros.
A ideia do Piketty é muito interessante, porque em seu livro ele faz referência às obras de literatura. Entre as obras, ele menciona O Pai Goriot, de Honoré De Balzac, para dizer que um dos fundamentos do sistema capitalista, da economia que conhecemos por essa dinâmica, é a ideia do mérito, a ideia de que, ao me esforçar, trabalhar e conquistar as coisas pelo mérito, vou elevar o crescimento da produtividade e da produção de todo o mundo. Então, tenho que acreditar que com o meu mérito eu consigo atingir meus objetivos. Mas quando eu herdo uma propriedade, isso não é um mérito meu; eu simplesmente herdei, dei sorte e isso é uma questão aleatória. Mas, mais do que isso, ele mostra que desde o século XX a taxa de crescimento do capital, isto é, a taxa de crescimento da renda que vem de bens imóveis e de aplicações financeiras, é sempre mais alta do que da renda do trabalho e da produção. Logo, a taxa com que o capital cresce é sempre maior do que a taxa da produção. Qual a implicação disso? É de que a pessoa que nasce rica ou que herdou um patrimônio, vai terminar mais rica, porque a renda de acumulação desse patrimônio é mais rápida do que a da produção. E assim, por várias gerações, acaba se criando uma espécie de uma nova oligarquia ou de uma plutocracia, que não tem mérito.
Piketty exemplifica isso contando a história do livro O Pai Goriot. A história se passa em torno de uma pensão decadente e mostra que uma das maneiras que existia à época para não dividir o seu patrimônio era fazer com que o primogênito herdasse toda a fortuna da família, de tal modo que não se dividisse a herança, para ter sempre um patrimônio grande que iria acumulando. O Pai Goriot é um empreendedor, que vende todo o seu patrimônio para conseguir pagar o dote para suas filhas se tornarem nobres. Nessa pensão vive uma mocinha que não era a primogênita da família, mas seu irmão. Na mesma pensão moravam um estudante e um coroa fanfarrão. O jovem estudava para ser advogado e procurador, mas o coroa o desestimulava, dizendo que mesmo que ele estudasse, no máximo ganharia alguns marcos por ano e, portanto, ao invés de perder tempo estudando para conseguir as coisas pelo mérito, deveria se casar com a mocinha, pois aí herdaria o patrimônio, o qual daria a ele uma rentabilidade. No entanto, para ganhar a renda da moça, dado que ela não era a primogênita, o jovem teria que matar o irmão dela para que ela pudesse herdar o patrimônio. A ideia de tributar a herança evita esse canal e, portanto, reorienta a sociedade para atividades de fato meritórias, em que se conquista o que é seu a partir do seu trabalho.
Os que são contrários à tributação maior das grandes fortunas argumentam que deixariam de produzir mais se não compensasse ter uma renda satisfatória. Esse lhe parece um argumento válido?
Você acha quem alguém deixaria de ter fortuna se fosse tributado? Você acha que o Bill Gates, com a alíquota de imposto de renda máxima, ficaria mais pobre?
Mas aí eles poderiam contra-argumentar que não valeria a pena trabalhar tanto.
Sim, mas as pessoas falam isso porque têm na memória alíquotas que, de fato, eram muito altas. As alíquotas chegaram a mais de 80% nos países desenvolvidos, por exemplo, no entre guerras. O Ronald Reagan dizia que no entre guerras só se produzia três ou quatro filmes, porque se produzissem o quinto ou o sexto, as empresas cairiam nessa alíquota máxima, então não valeria a pena produzir, porque não tinha razão de trabalhar tanto para não ganhar com isso. Só que nesse período as alíquotas eram de 80%, 90%, porque se estava dentro de um esforço de guerra em que se tinha que financiar o Estado de guerra. No pós-guerra, essas alíquotas caíram para patamares mais baixos. Então, não estamos falando de alíquotas de 80% e 90%, mas de alíquotas de 27,5% do Imposto de Renda de Pessoa Física no Brasil. Ninguém deixaria de ser rico porque pagaria 27,5% de Imposto de Renda.
E como seria a tributação da herança? Seria preciso tributar toda a herança ou parte dela?
Em relação à herança se fala de todo o estoque que passa de pai para filho e há toda uma discussão de direito sucessório e planejamento. O imposto sobre grandes fortunas é um pouco mais complicado e há uma discussão global em torno dele, porque na França todos fazem a mesma coisa que faz Gérard Depardieu: colocam o dinheiro em paraísos fiscais, porque do contrário seriam super tributados. Então, existe de fato uma discussão sobre qual seria o melhor formato para tributar heranças. Normalmente se tira o capital imobiliário da tributação, mas não se sabe se vai se tributar a família, por exemplo, porque esse é um tributo mais complexo inclusive de operacionalizar. Por isso tendo a preferir a tributação do IRPF.
Há alguma outra forma de tributação adequada além dessas?
O ideal para o Brasil seria uma ampla reforma tributária, não tanto para fins distributivos, mas, principalmente para a simplificação. Inclusive defendo ampliar a tributação do IRPF sobre os mais ricos, e temos que reconhecer que a carga tributária no Brasil é muito alta e muito ruim, porque se tributa muito e mal, principalmente nas empresas e no lucro. Então, poderíamos ampliar a progressividade sobre as pessoas físicas e usar isso para reduzir um pouco a tributação no nível da empresa, reduzir o IRPJ, o CSLL e também reformar alguns impostos sobre bens e serviços, como PIS, Cofins.
Também precisamos fazer um debate sobre a tributação de bens e serviços. O imposto sobre bens e serviços, que é o chamado tributo indireto, é, principalmente, aquele que está embutido nos preços dos bens e serviços. Mas por que ele é regressivo? Porque não diferencia o rico e o pobre, pois o tanto de imposto que estou pagando em um pote de sorvete é o mesmo que será pago por uma pessoa muito rica e por uma muito pobre. A diferença é que os mais pobres consomem toda a sua renda para suprir suas necessidades básicas, porque eles não têm poupança. Como eles consomem tudo proporcionalmente à renda, pagam mais impostos do que eu, que guardo um pouquinho, ou do que o Silvio Santos, que guarda um montão. Ao usar parte do imposto direto progressivo e do imposto de renda para tributar os mais ricos, e reduzir e reformar um pouquinho a tributação sobre bens e serviços, está também se favorecendo um pouco o crescimento econômico – com a redução dos impostos das empresas – e também os mais pobres porque, justamente, são eles que mais pagam impostos sobre bens e serviços.
Para o enfrentamento das desigualdades, alguns têm sugerido a criação de uma renda universal para todos os cidadãos. Parece-lhe plausível? Como isso poderia funcionar num país como o Brasil?
A renda básica universal é uma proposta antiga. Sinceramente, no atual momento fiscal acredito que não é possível, em médio e longo prazo, aplicar isso no Brasil. Neste momento estamos na defensiva, temos que defender o que temos aí e evitar que o ajuste fiscal venha a retirar alguns direitos básicos e renda dos mais pobres. Se conseguirmos defender programas como Bolsa Família, que são limitados, mas existem e são importantes, se conseguirmos defender algumas vinculações, o salário mínimo e algumas transferências vinculadas ao salário mínimo, já está bom demais.
Em outra conjuntura essa proposta seria possível?
Tem que ver o desenho da proposta. Uma coisa é universalizar um programa e assegurar que todo o brasileiro que tiver uma renda abaixo de R$ 300 terá sua renda complementada com mais R$ 300, outra é transferir R$ 300 para todos os 200 milhões de brasileiros. O custo fiscal disso é muito alto e acho que não é o caso. É viável ter, de fato, uma ampliação de um programa como o Bolsa Família para todo mundo que não consiga, via mercado ou via seu trabalho, atingir esse mínimo. Agora, transferir essa renda para todos os brasileiros não é possível, pois somos um país muito populoso, com mais de 200 milhões de pessoas; não vejo isso como viável do ponto de vista do financiamento. Existem alternativas que são mais desejáveis, principalmente de ampliação de serviços públicos, de serviços universais de saúde, de serviços de educação.

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