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terça-feira, 4 de outubro de 2016

Eleições 2016: um desastre e seus siginficados Por Antonio Martins.


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Seduzida pelo poder, esquerda afastou-se de seu eleitorado e entregou aos conservadores o voto anti-establishment. Foi massacrada. Será hora de reinventá-la?
Por Antonio Martins | Imagem: Oswaldo Guayasamín
[Terceira parte da série O Brasil sob o Golpe: seis hipóteses polêmicas. Leia também as hipóteses 12 e 3]
As forças políticas que deram um golpe de Estado e empossaram um governo ilegítimo, há poucos meses, tiveram ontem uma vitória eleitoral expressiva, em todo o país. Ela pode ser vista por diversos ângulos.
No conjunto dos municípios, PMDB (1028) e PSDB (793) – os dois partidos essenciais para o golpe – elegeram o maior número de prefeitos. Embora já fosse assim em 2012, a novidade mais expressiva é o encolhimento das prefeituras petistas: são agora apenas 256, menos da metade de há quatro anos.
Já nas capitais e municípios com mais de 200 mil eleitores – um universo de 93 cidades, onde concentram-se 40% dos eleitores – sobressai algo ainda mais grave: o predomínio do PSDB; além, novamente, do declínio do PT. Os tucanos, que tinham 18 prefeituras há quatro anos, elegeram 14 candidatos no primeiro turno e levaram 19 postulantes ao segundo. Os petistas, que tinham 14 em 2012 (e chegaram a eleger 25, em 2008), ficarão entre um (eleito no primeiro turno) e oito.
O PT foi derrotado em redutos onde se concentraram, por décadas, suas bases sociais. Nos 39 municípios do ABC Paulista e Grande São Paulo, o partido só irá ao segundo turno em Santo André e Mauá. Em São Paulo, registrou seu pior resultado em vinte anos. Nas capitais do Nordeste, para onde migrou seu eleitorado a partir da chegada de Lula ao governo, participará de uma única disputa definitiva: em Recife. Enquanto isso, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, conservador notório, despontava como um dos grandes vencedores do pleito. Alcançou o feito, contraditoriamente, ao eleger para a capital, já no primeiro turno, um suposto outsider: João Dória, milionário quase desconhecido, que surfou incólume na onda da rejeição à “velha política”.
Ao contrário do que algumas análises previam desde 2013, o espaço perdido pelo PT não foi ocupado por forças à esquerda. Nem os partidos estabelecidos (como o PSOL ou PCdoB) tiveram crescimento expressivo; nem surgiu, com relevância, alguma formação de novo tipo, um Podemos brasileiro. Algumas vitórias alcançadas são notáveis: Marcelo Freixo e Edmilson Rodrigues (PSOL) irão ao segundo turno no Rio de Janeiro e Belém. O mesmo farão Edvaldo Nogueira e Carmin Moura (PCdoB), em Aracaju e Contagem. Mas nem em número de votos, nem em capacidade de expressar tendência nacional, estes resultados equiparam-se ao que significou o avanço da esquerda nas prefeituras entre 1990 e 2008.
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Estes resultados devastadores atiçam certos analistas. Ainda ontem, o cientista político Gaudêncio Torquato, um dos assessores mais próximos de Michel Temer, decretava “a morte” do PT “radical”, “polarizador”, “de confronto”. Ele concede: a esquerda pode sobreviver – desde que se normalize; conforme-se às desigualdades e recalques da sociedade brasileira; perca dentes e unhas; e, em especial, aceite a agenda de retrocessos prevista para os próximos meses.
Segundo este raciocínio – que, nos próximos dias, será repetido à exaustão – as eleições de ontem desmentem, para todos os efeitos, a ideia de que houve um golpe. A sociedade não elegeu os partidos acusados de golpistas? Aqueles que se sentiram golpeados e reivindicavam a democracia não foram agora punidos exemplarmente pelos eleitores? Os que assumiram o poder derrubando Dilma não conquistaram ontem legitimidade para as medidas “sensatas e indispensáveis”? Não é hora de aceitarmos o congelamento os investimentos públicos, o corte dos direitos previdenciários e a devastação a CLT?
Tal construção choca-se, porém, com outra realidade. Há anos, o Brasil é palco de uma sucessão de movimentos e deslocamentos sociais que expressa uma agenda oposta à que foi, supostamente, vitoriosa nas urnas. Isso inclui, entre inúmeros fenômenos, a emergência das Culturas da Periferia, a multiplicação dos Cursinhos Públicos, as Marchas da Maconha e das Vadias, as Jornadas de Junho de 2013, os rolezinhos que desafiaram a segregação dos shopping centers, a Primavera da Mulheres (e a aparição do Feminismo Negro), a reivindicação de uma nova escola pelos secundaristas. A reinvenção e a criatividade parecem intermináveis. O sentido, porém, é nítido: mais direitos; menos controle da sociedade pela lógica do branco, macho e rico. Ou seja, as ruas estão em conflito com o que dizem as urnas, segundo os que pretendem interpretar o 2 de Outubro…
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Como decifrar este descompasso? Em oposição às análises convencionais, este texto propõe cinco argumentos:
1) A esquerda clássica não sucumbiu por se opor à “sensatez” neoliberal, mas por deixar-se aprisionar numa cilada histórica. Suas conquistas mudaram a paisagem social do Brasil; mas sua estratégia foi marcada por dois limites, examinados num texto anterior: a recusa a lutar por reformas estruturais e o captura pelo Estado – ou seja, a desmobilização dos mecanismos de pressão social sobre as instituições;
2) A presença da esquerda no governo central foi tolerada, enquanto capaz de acomodar tanto os ganho da oligarquia financeira e grandes empresas quanto grandes espaços de poder para os partidos tradicionais. Por volta da metade do primeiro governo Dilma, porém, este arranjo entrou em risco. A partir desse momento, as elites antes associadas ao governo exerceram resistência crescente e diversa: oposição à queda dos juros; “greve de investimentos”; rebelião da base de apoio ao Palácio do Planalto no Congresso; “pautas-bombas”. E, crucial: logo ficou claro que o governo era presa fácil, que cedia a chantagens, que fazia concessões cada vez mais escancaradas, exatamente devido a suas duas vulnerabilidades. Ele havia deixado intactas as estruturas (o oligopólio da mídia, por exemplo) que o emparedavam; e já não dispunha, fora do Estado, de nenhum fator de contrapressão. Da percepção desta fraqueza ao golpe, foram poucos passos.
3) A esquerda institucional reuniu, em diversos períodos, enorme popularidade. Porém, por não ter criado estruturas de contrapoder, este apoio foi sempre frágil, inorgânico, sujeito às manipulações midiáticas. A perseguição seletiva contra o PT, durante toda a Lava Jato, jamais pôde ser eficazmente enfrentada. E políticas muito relevantes, como as que colocaram pela primeira vez centenas de milhares de negros nas universidades, acabaram sendo individualizadas, vistas como resultado do mérito pessoal. Distanciado de sua base, sem impulso político para mobilizá-la, o PT acabou por perdê-la também eleitoralmente. É o que mostram os fracassos emblemáticos no ABC Paulista ou nas capitais do Nordeste.
4) Pior – e daqui a ideia de cilada histórica. Por estar até recentemente no poder; por acovardar-se diante das pressões e chantagens; por enxergar como única defesa um mergulho cada vez mais acrítico nas práticas políticas tradicionais, a esquerda tornou-se incapaz de disputar o movimento de protesto anti-establishment. Trata-se de um fenômeno pouco estudado, mas cada vez mais potente em toda parte. Está na origem de fenômenos opostos. De um lado, os Indignados espanhóis e a formação do Podemos; Occupy Wall Street e a candidatura de Bernie Sanders; Jeremy Corbyn, na Inglaterra. De outro, o Brexit, a ascensão de Marine Le Pen na França, o Brexit, a rejeição do acordo de paz entre o Estado colombiano e as Farc, ainda ontem, em plebiscito.
5) Nos velhos tempos, um PT rebelde orgulhava-se de ser “diferente de tudo o que taí”. Agora é visto, no mínimo, como parte da elite política; ou, frequentemente, como sua expressão maior... Ontem, o voto anti-establishment manifestou-se no Brasil com força inédita. Examiná-lo com rigor, tarefe indispensável, não cabe neste texto. Mas é possível adiantar algumas hipóteses. Ele assumiu a forma de um índice inédito de votos em “ninguém” (abstenções, brancos e nulos somados): eles suplantaram o primeiro colocado em dez capitais.
Mas este voto deslocou-se também para um tipo particular de candidato, do qual João Dória, o novo prefeito de S.Paulo, é a principal expressão. Parece ter sido cuidadosamente construído. Nunca havia disputado um pleito. Iniciou a disputa como azarão, com 5% das intenções de voto – o que o livrou do fogo cruzado dos adversários. Apresentou-se como “um gestor, não um político”. Difundiu a imagem de “homem bem sucedido”, “por seus próprios méritos”. É tão verdadeira como uma nota de três reais, mas impressionou o eleitorado, numa disputa rápida, morna e sem atrativos.
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“Olhar nos olhos de nossa tragédia é meio caminho andado para vencê-la”, escreveu o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha), pouco depois do golpe de 1964. A derrota de ontem, autêntico 7 x 1, não é a da resistência ao golpe, da oposição a sua agenda de horrores, da luta que permanecerá cada vez mais atual para vencer as relações de Casa Grande-Senzala. Mas é, de fato, a derrota de um projeto ao qual, de um modo ou de outro, todos estivemos ligados.
Vamos nos atrever a superá-lo? Por que parece tão difícil fazê-lo, no Brasil? Este é o assunto do próximo texto desta série.

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