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terça-feira, 31 de maio de 2016

A cultura do estupro vem de séculos e precisa ser combatida, por Roberto Tardelli.




Roberto Tardelli
Tentar escrever é tentar superar o asco, a repugnância, o horror. Não pareceria ser possível que seres humanos fizessem o que fizeram, não pareceria possível que um homem pudesse se excitar sexualmente com uma mulher, na verdade, uma adolescente, que sangrava na vagina, onde a penetraria, ele e outros trinta. Trinta. Trinta. Trinta.
Um deles ou dois deles ou vários deles filmaram e postaram em rede social uma cena que exibia orgulho pela façanha sexual e pelo desprezo à vítima. Na foto, exibida pelos jornais, o homem estava de com a língua lascivamente para fora, mostrando a moça desfalecida e sangrando. Uma legenda dele para o que seria impublicável: “abri novo túnel para o rio.” O sarcasmo cruel marcava a absoluta e inteira alienação deles com a dor e o desespero da jovem, que perambulou, feito zumbi, por pelo menos três dias depois de estuprada por aquela turba.
Aprendi que os agressores sexuais – excetuados casos pontualíssimos – não são doentes mentais. Possuem profissão, são insuspeitos membros de clubes de serviço, educados, camaleônicos. Tão camaleônicos que a quase totalidade das agressões sexuais são praticadas por pessoas conhecidas da vítima, pessoas em quem ela confia. Quando se trata de criança, são pessoas em quem ela confia absolutamente, pais, avôs, irmãos, padrastos, aqueles que teriam o dever de protegê-la. Quando adulta, são pessoas em quem ela deposita confiança. São predadores que se disfarçam, que se movem silenciosamente.
Por essa razão, além de ser de uma atroz estupidez o julgamento pela roupa que estava usando, pela sensualidade que exibia, pelo ambiente masculino que frequentava, a revelar uma misoginia em estado bruto, é também uma demonstração absoluta de desconhecimento de como esses criminosos agem. Esteja como estiver, coberta da cabeça aos pés ou sensualmente vestida, a vítima jamais saberá que seu estuprador está ali à sua volta. Ele não avisa sobre o ataque, ele não demonstra sinais de que irá atacar, ele não ameaça previamente a vítima; muito pelo contrário, ele age como a dar a ela a sensação de que está em segurança, com o intuito de diminuir as defesas naturais de todos e todas nós.
Eu digo, sem qualquer receio de errar, que a vítima somente conhecerá seu estuprador quando estiver sob o domínio aterrorizante dele; antes disso, será impossível a ela saber, pela razão clara de que, caso soubesse, se afastaria, procuraria ajuda ou companhia mais segura ou o denunciaria. O agressor atrai a vítima para uma armadilha, da qual dificilmente ela escapará, seja pela supremacia física, seja pelo emprego de arma, seja pelo terror incutido, a vantagem é toda do agressor. Por mais óbvio que seja, é preciso dizer: o estuprador sabe quem vai atacar; a vítima não sabe que ela será atacada por aquele homem gentil e atencioso, que lhe prometeu uma carona, que lhe ofereceu uma taça de vinho. Julgar a vítima não é apenas um preconceito odioso, mas uma ignorância sem tamanho.
Nossa cultura da caça do homem à mulher vem de séculos. Câmara Cascudo, nosso maior folclorista, creio tenha sido ele, escreveu que a expressão “jogar a negra”, que utilizamos no jogo, por exemplo, tem uma origem perversa: vem dos tempos da escravidão, em que os senhores da fazenda, que ganhassem a terceira partida no baralho, tiram direito à “negra”, isto é, de manter relações sexuais com uma escrava que escolhesse. Em outras palavras, estuprá-la.
No Código Penal de 1940, que vige até hoje, retalhado, mas sobrevivo, trazia uma figura permissiva, a “presunção de inocência”, que pertencia a toda mulher com menos de catorze anos. Manter relações sexuais com uma menina de doze anos era crime de estupro, mesmo que ela consentisse. Uma meia-verdade, porque todos os juristas, todos sem exceção que tenha conhecido, diziam que essa presunção era relativa, admitindo prova em contrário. Isso significava dizer que a adolescente seria “julgada”: primeiro, era preciso estabelecer se ela era ou não era “inocente”, algo fácil de se derrubar, bastando ao agressor que trouxesse uns amigos do peito que jurassem ao juiz que ela era uma “vadiazinha precoce” (expressão que vi usada no processo). Se não fosse “inocente”o bastante, dentro dos padrões morais que lhe seriam exigidos, ter sido ela estuprada nada significaria.
Um outro crime havia, corrupção de menores. Esse, particularmente perverso, teoricamente punia aquele que, em suma, fizesse de uma adolescente um objeto de satisfação sexual. Tanto lá como aqui, tinha-se como verdade consensual que somente poderia ser vítima de corrupção a jovem que fosse “pura e casta”; se já fosse eventualmente pervertida e “iniciará nas coisas do sexo”, crime algum haveria. As aspas eu as faço em homenagem aos penalistas da época.
Não foi à toa que o Brasil entrou na rota do turismo sexual. A menina, menor de dezoito anos, que se prostituísse, já estava “corrompida”e, assim, não tinha proteção legal. Era apenas imoral manter relações sexuais com ela.
No Código Civil de 1916, a mulher que “desonrasse a casa paterna” era passível de deserdação por indignidade. Por desonra entendia-se uma vida sexual ativa, mesmo se fosse solteira ou desimpedida de casar-se. Aliás, se casada fosse, ela não poderia recusar-se a manter relações sexuais com seu marido, que poderia exigir, sim, que ela cumprisse o dever do “débito conjugal”. Diziam que o marido que constrangesse a esposa ao débito conjugal, agia em exercício regular de direito. Nojento?
O homem poderia devolver a esposas seus pais, caso descobrisse, na viagem de núpcias que ela não fosse virgem, como se houvesse uma espécie de vício redibitório. A virgindade era uma exigência social que colocava as mulheres sobre o fio da navalha do desejo. Chico Buarque imortalizou: “desse a moça um mau passo, quanto horror e desdém”. Ela era entregue pelo pai, virgem, a seu marido, homem a quem se permitia a experimentação sexual, tendo ela o dever de aceitar sempre as relações sexuais que ele lhe impusesse. Seu pai a conduzia ao lobo.
Para que se tenha uma ideia: o estupro não era um crime contra a pessoa (ainda não é), mas era um crime “contra os costumes”. Sim, contra a moral e os bons costumes, que era desafiada pela mulher sensual, pela mulher que se permitia a frequentar ambientes masculinos, enfim, a mulheres “que não se davam ao respeito”. Horrendo?
Essa cultura do estupro foi forjada ao longo do tempo. Curiosamente, sempre a pena destinada ao estupro foi alta e sempre se soube que tratamento espera ao condenado por estupro na cadeia. Todavia, um estupro a cada onze minutos se comete no Brasil. A pena alta e o tratamento barbarizante no cárcere não inibem o crime. Pode parecer um paradoxo, mas é uma dicotomia apenas aparente. O grande drama é que “aceitamos” o estupro e nos recusamos a entendê-lo como crime contra a pessoa, contra a integridade corporal, psicológica e emocional da pessoa.
Ainda “julgamos”a vítima e os posts relaxados pelos imbecis que responsabilizaram a jovem pela barbárie que sofreu são a prova disso. De outro lado, ensinar as mulheres a evitar o estupro, a prevenirem-se elas próprias de seu agressor, perdoem-me a franqueza, é inútil, a menos que queiramos espalhar uma sinistrose que impedirá o amor, a alegria, o contato físico, a paquera, o “ficar”.
É preciso que ensinemos nossos meninos, desde crianças, a respeitar a mulher, é preciso romper de vez o cerco machista e assegurar a igualdade de gênero, como direito público subjetivo das mulheres, é preciso não justificar os agressores, é preciso não perdoar os agressores, é preciso não tolerar os agressores, sob nenhuma hipótese, sob nenhum argumento.
É preciso que vomitemos quando um ator medíocre vai a um programa de televisão, entrevistado por outro medíocre e conte, orgulhoso, que “comeu” uma mãe de santo, estuprando-a e seja esse mesmo ator recebido pelo Ministro da Educação, a quem levou “sugestões”. Seria preciso que esse um fosse preso pelo estupro que confessou ou que fosse posto em absoluto ostracismo, que fosse ele o exemplo do mau caráter, do canalha, daquilo que nossos filhos jamais poderiam se tornar.
Minha vontade de ver esses trinta estupradores presos só é menor que meu desejo que essa moça consiga reerguer-se e levar sua vida, que encontre em alguém calor e conforto, acolhimento e cumplicidade, que o tempo a faça convencer-se que viver vale a pena é que o amor, bem, por mais difícil que lhe seja acreditar, ainda existe.
E pulsa.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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