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quinta-feira, 26 de maio de 2016

Tudo o que muda com os secundaristas, Peter Pál Pelbart.


160513-Estudantes

Eu quero saudar os secundaristas aqui presentes, professores, funcionários, pais de alunos, amigos e simpatizantes desse movimento glorioso. Agradeço a oportunidade de falar numa escola em que estudei por sete anos, numa época em que o ensino público gozava ainda de grande prestígio e credibilidade, estabelecimento esse que recentemente foi palco de um dos mais pioneiros e combativos momentos na eclosão do movimento.
A ocupação de mais de duzentas escolas no final do ano passado pelos secundaristas de São Paulo, em protesto contra um plano de reorganização da rede pública estadual pelo governo Alckmin, passará para a história como um dos gestos coletivos mais ousados na história recente do Brasil. Eu diria, sem titubear, que esse movimento destampou a imaginação política em nosso País. A coragem e a inteligência com que essa luta foi conduzida, a maneira democrática e autogestiva com que sustentou-se, as formas de mobilização e comunicação que aqui se inventaram, o modo em que soube suscitar diálogo e conexão com as diversas forças da sociedade civil, a maneira autonôma que demonstrou ao longo de todo o trajeto, merecem nossa mais viva admiração e aplauso. Entretanto, mais do que isso, constituíram para todos nós uma verdadeira aula de ética e de política. Se nossos políticos aprendessem um por cento do que aqui se ensinou, nosso País seria outro.
Como se dizia na época, enquanto as crianças se comportavam como verdadeiros políticos, os políticos conduziam-se como crianças. Há muito que meditar a respeito dessa inversão, e estamos longe de ter extraído dela as lições e consequencias que se impõem. Uma coisa é elogiar a maturidade, a responsabilidade, a organização interna, toda a prudência que não deu margem à vilania da mídia, que apenas buscava os sinais de baderna, orgia, drogas, para criminalizar o movimento. Embora essa cautela tenha sido eficaz, a meu ver não foi o mais importante. Vocês introduziram em paralelo ao teatro esgotado e degradado da representação institucional uma nova coreografia política, carreando uma atmosfera de grande frescor, um afeto coletivo inusitado, uma dinâmica de proliferação e contágio, uma maneira inédita de manifestar a potência multitudinária que prolongou o que de melhor houve em 2013, sem se deixarem capturar pelo que de pior ocorreu ali.
Independente do desfecho concreto do movimento, foi um momento em que a imaginação política se destravou. A imaginação política não é uma esfera sonhadora e desconectada da realidade, ao contrário, é precisamente a capacidade de se conectar com as forças reais que estão presentes numa situação dada, as forças do entorno, mas também as forças vossas. As ocupações desencadearam um processo imprevisível cujo caráter ao mesmo tempo disruptivo e instituinte deixou a todos estupefatos. Não cabe a mim fazer a análise do que ocorreu, e sim aos que protagonizaram o movimento e o expandiram, no corpo-a-corpo, no dia-a-dia, no embate físico, no antagonismo ético, na inteligência coletiva.
Mas posso dizer, desde fora, que vocês operaram um corte na continuidade do tempo político. Isto significa que a percepção social e a sensibilidade coletiva na cidade de São Paulo sofreu uma inflexão. É toda a dificuldade de uma ruptura: ela não pode ser lida apenas com as categorias disponíveis antes dela, categorias essas que a ruptura justamente está em vias de colocar em xeque. A melhor maneira de matar um “acontecimento” dessa ordem é reinseri-lo no encadeamento causal, reduzindo-o aos fatores diversos que o explicariam e o esgotam, ao invés de desdobrar aquilo que eles trazem embutido, ainda que de modo balbuciante ou embrionário, de novo, de inaugural, de fundante.
Pelbart: “Em meio a reivindicações muito concretas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica” – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa”
Aos olhos de nossos gestores políticos, a resistência dos secudaristas não passava de uma reação passageira, de um estorvo a ser rapidamente removido, uma insanidade juvenil. Mas de repente, inverteu-se a equação – insanidade era o que apareceu aos olhos de todos, da prepotência surda do secretário de Educação à barbárie fascista da polícia militar, protegida pelo Secretário de Segurança, e que se abateu sobre o corpo das crianças e jovens de maneira intolerável, fora ou dentro das escolas.
Eu queria insistir nesse aspecto tão importante, a meu ver – um acontecimento como o do ano passado, com seu cortejo de arbítrio, violência, abuso, mas também de mobilização, iniciativa, afirmação, representou um corte abrupto na percepção social sobre o ensino, a escola, a polícia, o Estado, o poder, o desejo. Essa ruptura, essa reviravolta e o seu efeito significam o seguinte: o que até então era a trivialidade cotidiana, de repente torna-se intolerável. Por exemplo, se até então parecia natural que quem decidia sobre os equipamentos escolares eram os gestores, nos seus gabinetes, subitamente isso aparece como uma aberração intolerável. Com isso, todo um conjunto de coisas torna-se intolerável. A mercantilização da educação, as relações de poder vigentes dentro da escola, a disciplina panóptica, os modos desgastados de ensino, aprendizado, avaliação, até mesmo o objetivo da escola… Ao mesmo tempo, em contrapartida, o que até ontem parecia inimaginável (os alunos poderem ocupar e gerir os espaços que lhes são destinados, não apenas para reivindicar seus direitos, aprofundá-los, ampliá-los, mas também para experimentar a força de um movimento coletivo, autogestivo, suas possibilidades inúmeras e inusitadas) torna-se não só possível, mas desejável.
De pronto, já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável se desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora, a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!).
Um acontecimento no sentido forte da palavra, como o que foi produzido no bojo desse movimento, divide o tempo em antes e depois. Não dá mais para voltar atrás – algo de irreversível se deslocou no corpo, no afeto, na imaginação, na compreensão dos estudantes, mas também dos seus pais, dos professores, das suas famílias, na comunidade, na cidade. E o que aconteceu torna-se uma espécie de farol, de incandescência, de marca indelével, de referência incontornável – já não é possível fingir que nada aconteceu, que se pode passar por cima disso, que se pode voltar para a mesma subserviência ou apatia ou passividade de antes. É que foi muito forte o que se viveu, foi muito intenso, foi muito vital, foi mais do que uma experiência, foi uma experimentação coletiva, micropolítica e macropolítica, que abriu um campo de possíveis, e por conseguinte pode ser retomada a qualquer momento, e pode ser prolongada, ampliada, transposta, tal como de fato vai contagiando outros Estados do Brasil, de forma variada.
Godard dizia que as crianças são prisioneiros políticos. Nada mais verdadeiro. Não digo apenas na mão das famílias, das escolas, dos psicólogos, dos psiquiatras, dos pedagogos, da mídia, do mercado, dos jogos eletrônicos destinados a eles etc… É justo nos momentos em que a prisão revela sua arbitrariedade, e sua legitimidade é posta em causa, é justamente aí que aparece sua força e fragilidade, seu peso e sua vulnerabilidade, e fica evidente que grande parte de sua eficácia repousa sobre o medo e a intimidação. O mesmo se pode dizer dos secundaristas: no momento em que percebem que estão à mercê das instâncias várias do Estado incumbidas de decidir do seu destino com uma simples canetada, é justo quando percebem o quanto esse poder desmesurado pretende decidir sobre sua vida a mais cotidiana, é então que tudo se revira, pois é quando deixam de estar à mercê porque sentem o intolerável da situação, e não podem fazer diferente senão ir para o enfrentamento, para a resistência ativa e passiva, para as ruas, furando com grande ousadia o bloqueio midiático, o bloqueio militar, o bloqueio jurídico, o bloqueio do medo ou da intimidação.
Talvez possamos dizer todos o mesmo, hoje, nesse momento gravíssimo que atravessamos de ascenção de um fascismo pavoroso, talvez sejamos todos prisioneiros políticos em meio a um estado de exceção onde o maior conluio entre canalhas de toda espécie esteja virando a mesa da democracia dita representativa. Mais do que nunca, a lição que vocês deixaram é de importância capital. Pois é preciso ir muito além das categorias ainda manipuláveis pelo discurso político, ou mesmo mensuráveis pelos planejadores e economistas, e redesenhar o campo das possibilidades de vida. Ousemos a pergunta: e se essa operação de destampe da imaginação política se estendesse à sociedade como um todo? Se por vezes temos a impressão que todos almejam o mesmo, dinheiro, conforto, segurança, ascenção social, prestígio, prazer, felicidade, há momentos em que fica claro que esta é uma miragem enganosa, disseminada pela cultura midiática e publicitária, por um suposto consenso capitalista que camufla formas de vida em luta, não apenas classes em luta, com todas as segmentações e heranças malditas, escravistas, racistas, elitistas, etc., mas também conflitos entre modos de existência que colidem, formas de vida distintas em embate flagrante, anseios plurais.
É fácil constatar que modelos de vida majoritários, por exemplo a da classe média tomada como padrão, propagada como um imperativo político, econômico e cultural, de consumo desenfreado, e que se impôs ao planeta inteiro – dizima cotidianamente modos de vida “menores”, minoritários, não apenas mais frágeis, precários, vulneráveis, mas também mais hesitantes, dissidentes, ora tradicionais como o dos quilombolas ou indígenas ora, ao contrário, ainda nascentes, tateantes, ou mesmo experimentais, como os que vocês ensaiaram.
Não é fácil recusar a predominância de um certo modo de vida genérico, bem como o modo de valorização que está na sua base – por exemplo, essa teologia da prosperidade, que não é exclusividade das igrejas pentecostais, e que vai se infiltrando por toda parte. Como escovar essa hegemonia a contrapelo, revelando as múltiplas formas que resistem, se reinventam ou mesmo se vão forjando à revelia e à contracorrente da hegemonia de um sistema de mercado, modulado por mecanismos de controle e monitoramento eficazes e sutilmente ou nada sutilmente despóticos?
Isso se agrava muito no contexto atual, frente a esse golpe parlamentar-financeiro-midiático-jurídico-policial-religioso, onde vem à tona todo nosso arcaismo escravista aliado à mais perigosa manipulação da fé, que vai de par com interesses econômicos precisos e uma máscara de legalismo e modernidade autoglorificada.. Sim, vivemos num momento especialmente cruel, em que o caráter mais flexível, anônimo, ondulante de alguns mecanismos de poder econômico e político não consegue esconder a brutalidade mais retrógrada da qual ele depende, e com a qual ele se conjuga violentamente, imputando a violência, como sempre, aos que contestam essa aliança espúria, criminalizando os que a recusam com veemência.
Então, toda a questão é como alargar o campo da política, ou pensar a dimensão política das formas de vida, e da sensibilidade que lhes corresponde, ou para formulá-lo de maneira ainda mais precisa: como pensar a própria política à luz dessa questão das formas de vida que lhe antecede? Talvez Foucault continue tendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Pois nosso tempo inventou modalidades de servidão inauditas. E o que os secundaristas nos ensinaram é que também as formas de resistência se reinventam. A horizontalidade e a ausência de centro ou comando nas ocupações e nas manifestações dramatizaram uma outra geografia da conflitualidade. É difícil nomear uma tal mudança, e sobretudo transformá-la em pauta concreta. Como traduzir em propostas as novas maneiras de exercer a potência, de fazer valer o desejo, de expressar a libido coletiva, de driblar as hierarquias, de fazer circular o discurso sem ficar à mercê da lógica da representação, de redesenhar a escola, de fazer ruptura, dissenso?
Em todo caso, tudo indica que a ocupação das escolas não visava e não visa exclusivamente a elevação do nível de ensino, o respeito aos espaços de aprendizado, às modalidades de consulta e decisão, para não dizer gestão, sem falar das coisas mais elementares como a garanta da merenda, mas de algum modo, nessa experimentação vieram à tona muitas outras coisas. Se os protestos tangenciaram uma recusa da representação (ninguém nos representa, ninguém pode falar em nosso nome, nem sequer alguém de nós que pretendesse ser nosso representante), talvez também expressaram certa distância em relação às formas de vida que se tem imposto brutalmente nas últimas décadas, no nosso contexto bem como no planeta como um todo, e que atravessam a escola, fatalmente: produtivismo desenfreado aliado a uma precarização generalizada, mobilização da existência em vista de finalidades cujo sentido escapa a todos, capitalização de todas as esferas da existência — em suma, um niilismo biopolítico que não pode ter como revide senão justamente a vida multitudinária posta em cena, nas escola, nas ruas, nas praças, na Assembléia Legislativa, na autarquia estadual que administra as Escolas Técnicas de São Paulo, etc.
Em meio a reivindicações muito concretas, pontuais, precisas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa à medida em que se conecta com outros. Falamos de um desejo coletivo, onde se tem imenso prazer em ocupar coletivamente um espaço antes policiado, em ir à rua juntos, em sentir a pulsação multitudinária, em cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos, e apreeender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada, com a certeza de que a escola deveria ser o coração de uma sociedade, e não seu apêndice agonizante, assim como em 2013 alguns sustentaram que o transporte em São Paulo deveria ser um bem comum, assim como na Turquia os jovens consideraram que o verde da praça Taksim em Istambul era comum, assim como o deveria ser a água, a terra, a internet, as informações, os códigos, os saberes, a cidade, de modo que toda espécie de privatização e enclosure na sua versão atual constitui um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum. Tornar cada vez mais comum o que é comum – outrora alguns chamaram isso de comunismo. Um comunismo do desejo. A expressão soa hoje como um atentado ao pudor. Mas é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo – a vida (em) comum, a inteligência comum.
Talvez uma outra subjetividade política e coletiva estivesse se experimentando, nesse movimento e em outros, como o do Parque Augusta e muitos outros, para o qual carecemos de categorias e parâmetros. Mais insurreta, mais anônima, mais múltipla, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, mas também com uma capacidade de organização horizontal, sem que isso garanta nada.
É difícil medir tais movimentos sem usar a régua da contabilidade de mercearia ou do jogo de futebol. “Quanto lucramos”, “no que deu”, “quais forças favoreceu”, “no final quem venceu”? perguntarão. Não se trata de menosprezar a avaliação das forças em jogo, sobretudo num País como o nosso, em que uma vasta aliança conservadora distribui as cartas e leva o jogo há séculos, independente dos regimes que se sucedem ou do que dizem as urnas. Ou seja, não se trata de confiar no deus-dará, mas ao contrário, aguçar a capacidade de discriminar as linhas de força do presente, fortalecer aquelas direções que garantam a preservação dessa abertura, e distinguir no meio da correnteza o que é redemoinho e o que é pororoca, quais direções são constituintes, quais apenas repisam o instituído, quais comportam riscos de retrocesso.
Nisso tudo, não se deve subestimar a inteligência cartográfica e a potência psicopolítica dos secundaristas. Eu diria, para retomar uma fórmula conhecida, que uma das definições de ética é a de estar à altura do que nos acontece. Creio que o movimento dos secundaristas esteve plenamente à altura do que lhes aconteceu, do acontecimento que lhes foi dado experimentar, inventando dispositivos concretos que permitiram sustentá-lo, intensificá-lo e expandir-se. Só posso desejar que essa conversa seja parte dessa movência, mesmo nas condições muito adversas do presente, que não tendem a arrefecer.

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