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sábado, 14 de maio de 2016

A tragédia ética da política, por Christian Ingo Lenz Dunker.

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A história do pensamento sobre a ética pode ser dividida em duas grandes tradições. De um lado estão aqueles que defendem que a essência da ética reside no que move o ato. Ainda que sua ação seja contrária à moral instituída e estranha aos costumes ou ao habitus, ela pode ser ética porque ambiciona praticar uma lei que ainda não foi toda escrita. Por exemplo, quando Antígona desafia Creonte, o tirano de Tebas, porque quer dar a seu irmão Polinice um enterro digno, ela vai contra as leis e as regras da cidade, mas no fundo ela está com a razão ética porque seus motivos são mais universais do que os de Creonte, focado que está no respeito a tratos particulares. Antígona defende o princípio de que todos merecemos um enterro digno, ainda que tenhamos traído um pacto estabelecido, neste caso a alternância de poder entre os filhos de Édipo. É neste sentido que a psicanálise afirma que o desejo humano é trágico por excelência, pois ele nos leva a cometer atos que podem levar ao pior do ponto de vista do bem-estar e da moral, mas que ainda assim estão investidos de valor e merecem reconhecimento.
A segunda concepção ética afirmará que as intenções são um péssimo critério. Primeiro porque podemos enganar os outros quanto às nossas verdadeiras intenções. Por exemplo, podemos fazê-los acreditar que estamos rezando piedosamente quando, por dentro, estamos amaldiçoando o Todo Poderoso. Mas pior, podemos enganar a nós mesmos, confundindo razões, motivos e causas, criando pretextos e racionalizações que justificam as piores imoralidades cometidas contra os outros e contra nós mesmos. Qualquer ato que se apresente como altruísta facilmente pode ser reconduzido a uma cadeia subterrânea de interesses egoístas. Em nossa cultura do espetáculo há especialistas na arte do simulacro de pureza moral. Portanto, um critério ético muito mais seguro do que as intenções são as consequências de nossos atos. Os efeitos objetivos de nossos comportamentos, seu valor agregado, individual ou coletivo, determinam a eticidade do ato. Neste caso, a ética não cria um fragmento ainda não escrito de legitimidade, mas apenas resguarda que nenhuma transgressão foi realizada. Voltando ao caso de Antígona. O fato de que ela foi enterrada, junto com seu irmão Polinice, por ordem de Creonte, garante que a lei foi cumprida e que a ética pessoal e particular da família foi derrotada pela lei pública e universal do Estado. A justiça prevaleceu sobre a liberdade e o módico preço a pagar é reduzir a ética a moral. Com isso ficamos indefesos diante do fato de que alguém pode ser profundamente indigno, corrupto e imoral, e ainda assim permanecer dentro da lei. Ora, reduzir a ética à moral e à mera obediência das leis é o mesmo que reduzir a política ao direito. É trocar nossa capacidade de produzir novos mundos pelo dever de conservar os antigos mundos.
Também a psicanálise se implanta nesta tradição ao afirmar que a ética envolve não apenas certa relação com o próprio desejo, mas também com o Real. Neste caso não vamos nos perguntar apenas pela relação entre ética e direito, mas sobre a precedência da política sobre a moral, entendendo que é a política que cria as leis. Elas não nos são dadas pelos deuses. Por isso a política é o campo do Real, entendido como antagonismo social, assim como a ética é o campo do desejo, entendido como antagonismo individual.
O que une os dois problemas, e o que separa a ética das intenções e a ética das consequências é a mesma coisa, ou seja, a lei que une nosso desejo (possível ou contingente) ao Real (impossível ou necessário). Chegamos assim ao difícil problema da hierarquização da lei. Como suas múltiplas e diversas incidências podem operar em um mesmo mundo que é simultaneamente jurídico e ético, político e moral? Como escolher qual lei está em questão em cada caso? Da constituição ao regulamento do condomínio, das regras do jogo democrático aos ritos do Supremo Tribunal Federal, das leis de Newton sobre a gravitação até a lei teológica do juízo final, como invocar a lei sem convocar ao mesmo tempo nossas intenções e a consequências de nossos atos?
Pensar eticamente é respeitar que a contradição entre as formas da lei nunca está totalmente definida. Viver com esta indecidibilidade é o que se chama democracia, o poder pela palavra. O contrário disso é imaginar que o poder e a autoridade não dependem mais da palavra praticada, mas de quem são seus autores e atores: suas famílias, seus títulos de nobreza terrena ou celestial, seu caráter ou disposição de alma, seus amigos ou interesses particulares.
Nosso momento atual bem poderia ser lido segundo a equação de Antígona. De um lado há uma série de argumentos que nos lembram Creonte. Operando dentro do “manejo das leis”, dos “ritos e formas” das “regras e práticas”, uma série de “elementos sabidamente suspeitos”, incriminados direta ou indiretamente, levam a cabo, com as piores intenções, o emparedamento de uma presidente. Consideremos aqui o problema da intransparência das intenções. Não podemos saber as verdadeiras intenções dos movimentos sociais que saíram às ruas, assim como da imprensa que cobriu os acontecimentos, nem mesmo do juiz Moro que desceu aos infernos para limpar as Estrabarias de Áugias.
Inversa é a posição de Dilma. Discute-se se há responsabilidade ou não nas pedaladas, se ela sabia ou não de Pasadena, se ela acobertou o não o sistema de corrupção na Petrobrás. Mas quanto às intenções dos atos não há muita dúvida: pagamento de gastos do governo que todos nós reputamos justos e bons. Suas consequências não são boas. Eles geram inflação e desequilíbrio fiscal. Mas isso não muda as intenções institucionais das pedaladas e práticas assemelhadas que aparentemente são parte dos costumes institucionais em vários Estados brasileiros. Ou seja, ela saiu da lei, ainda que por bons motivos. Inversamente, seus inimigos querem puni-la com lei, ainda que por maus motivos.
Para os consequencialistas a retórica é outra. O que menos importa são seus motivos ou razões, se ela expressava anseios populares ou democráticos, se ela tinha um plano liberal ou neoliberal. Importa que sua gerência operacional não funcionou. Nós empobrecemos. O país está economicamente em colapso e socialmente em estado de insegurança. Temos então os melhores motivos para destituí-la, porque tudo aquilo que não está rendendo como deveria, deve ser substituído. Como qualquer outro trabalhador que não faz seu serviço direito, deve ser trocado. Seu governo é um desastre. Mas quanto tempo devemos esperar para afastar o próximo desastrado? Que exista uma lei que atende pela alcunha de “eleições e democracia”, isso exprime apenas uma intenção de nossos antepassados, uma indicação genérica do que devemos buscar em nosso desejo, não o que devemos praticar com nossos atos. Se ela não respeitou suas promessas, como Polinice não respeitou seu acordo com Etéocles, ela deve ser punida. Não é golpe nem vingança, pois as intenções estão afastadas, mas apenas uma troca de técnico em um time que não está ganhando.
Percebe-se quão fraco é o argumento dos consequencialistas se lhes retiramos o seu complemento obsceno. O direito pode afastar um presidente, mas a economia não. É preciso imputar-lhe a acusação de corrupta, mau caráter, condenando-a e a sua família (seus associados partidários) em nome de uma família melhor e maior: a nossa. Aqui a pergunta que se levanta contra os consequencialistas é: que consequência terá uma destituição processada desta maneira? Se pelo menos 30% das pessoas percebe esta reunião de intenções e efeitos como um golpe, não estará nosso futuro tragicamente comprometido?
Neste ponto, nossa leitura da tragédia de Antígona sofre uma reviravolta. Lembremos que é possível que Creonte tenha condenado Polinice não apenas porque este desrespeitou o pacto entre os irmãos, como diz a lei, mas porque ele se beneficiaria com o afastamento dos dois, tornando-se, ele mesmo, o Rei de Tebas. Assim, ele e sua família (afinal, Antígona é noiva de seu filho Heron) se perpetuariam no poder afastando os filhos de Édipo da linhagem real. Quando ele condena Antígona à morte, seu filho Heron se mata. Em função disso, sua esposa, que não era nem bela nem recatada, mãe do filho perdido, o acompanha. A solidão é o destino dos que suspendem a democracia. Ao fim e ao cabo, não se tratava da vitória do princípio do Estado sobre o princípio da família, mas da punição trágica, imposta pelos deuses, contra aqueles que em vez de buscar o universal contraditório entre atos e desejos, reduzem a política ao direito e a ética á moral.
É por isso que na mitologia grega Têmis, a deusa da justiça, foi criada lado a lado com Nêmesis, a deusa da vingança. Quem as formou foram as três Moiras ou Parcas que regem nosso destino, antes que as tragédias nos transformassem em heróis de nosso próprio futuro. Lembremos que Cloto distende os fios de com os quais tecemos nosso desejo, mas também as intrigas. Lembremos que Laquesis nos dá a contingência que cria o novo, mas também o momento oportuno do aproveitador. Lembremos ainda que é Átropos quem corta nosso destino ao meio.
Lembremos. Temer e Nemer foram criados pelas mesmas madrastas da tragédia ética de nossa política.
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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