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segunda-feira, 9 de maio de 2016

Da arte de sujar o que se lava à jato, por Vladimir Safatle.





Vladimir Safatle, na Folha de S.Paulo
Um dos principais predicados da justiça é a simetria. Justo é tratar de maneira simétrica, aplicar a mesma medida a todos aqueles que serão julgados.
Na ausência de simetria, a aplicação da justiça se transforma em mera expressão de jogo de poder, pois a justiça é injusta quando trata de maneira justa apenas uma parte dos envolvidos.
Vale lembrar desses princípios elementares de filosofia moral para compreender a indignação que tomou parte da população brasileira com os últimos desdobramentos da Operação Lava Jato.
É inegável a importância da operação no desvelamento do esquema incestuoso de relação entre empresariado e governo construído como alicerce da Nova República.
Ela mostra claramente o que é o capitalismo brasileiro: um oligopólio composto por megaempresas que não operam a partir da lógica da concorrência, mas da corrupção contínua e generalizada do Estado como condição normal de funcionamento.
Desde o seu início, a Lava Jato deixou claro como estávamos falando de um funcionamento que envolvia toda (deixe-me repetir, toda) a classe política brasileira. O assalto à Petrobras não era traço distintivo deste governo, mas já vinha desde o governo FHC.
Os beneficiários de doações ilegais das empreiteiras não eram apenas membros do governo. Aécio Neves estava lá em mais de uma delação, seu sucessor no governo de Minas, Antonio Anastasia, foi imediatamente citado logo na primeira leva da operação.
Repetia-se assim um roteiro que vimos no caso do mensalão, quando o governo Lula havia se beneficiado de um esquema de corrupção em operação no governo FHC e liderado pelo ex-presidente de seu partido, o sr. Eduardo Azeredo. Lembrar disto não é retirar a responsabilidade dos últimos governos federais.
Não há solidariedade possível com governos, como os dois últimos, que usaram sistematicamente da corrupção do Estado e cujos maiores operadores mostram marcas de enriquecimento ilícito.
Mas não haverá mundo pior do que aquele no qual alguns são punidos pela corrupção enquanto outros podem corromper impunemente.
Até agora, é para este mundo que a Operação Lava Jato está a apontar. É isso que dá, para muitos, a impressão de que tudo se passa como se a operação fosse peça de uma briga de gângsteres para saber quem vai conduzir os negócios de sempre.
De fato, o tucanato é uma espécie de Houdini da política brasileira: consegue sempre escapar ileso de todo caso de corrupção e da culpabilização de suas ações escandalosas.
José Dirceu está hoje na cadeia devido ao mensalão; o que é justo. Mas pergunte-se onde está Eduardo Azeredo. Solto ou na cadeia?
As contas da campanha de Dilma estão sendo julgadas, o que é justo. E as contas de Aécio?
Lula está sendo investigado por sinais de relações incestuosas com megaempreiteiras, o que é justo. Contrariamente ao que dizem alguns, é assim que se trata um ex-presidente.
Em sua defesa na semana passada, Lula não escondeu o apreço que tem por tais empreiteiras corruptas. Ele escolheu seu caminho.
Mas e FHC, como ele é tratado? Há semanas atrás, o país descobriu estarrecido que, enquanto presidente, Fernando Henrique Cardoso mantinha relações de profunda dependência com uma megaempresa por ela ter dado um jeito de sumir com sua amante, pagando-lhe salários fictícios e livrando-o assim de um possível escândalo que poderia abalar sua carreira. Isso não se trata de “problema pessoal” nem é fato ligado à sua vida privada.
Em qualquer país do mundo, algo dessa natureza seria um escândalo intolerável por mostrar o grau de fragilização do exercício da presidência e de submissão que alguns políticos estão dispostos a produzir.
O fato mostraria o tipo de relação espúria e incestuosa que setores da imprensa têm com o poder. Mas no Brasil, sendo o senhor em questão um tucano, o caso inacreditavelmente não teve maiores consequências.
Assimetrias como essas são a razão primeira do grau explosivo de tensão a que chegamos atualmente no Brasil.
Tivesse a Justiça operado de maneira justa com todos e tivessem setores da imprensa atuado de maneira implacável com todos, teríamos a segurança de não haver interesses inconfessáveis por trás de ações espetaculares como as vistas semana passada.
Mas a assimetria produz uma insegurança profunda a respeito das intenções em jogo, o que é um convite à desagregação completa dos pactos no interior da combalida democracia brasileira


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