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quinta-feira, 5 de maio de 2016

O Mito da Meritocracia, por Emilio Matos.

Blog GGN        
Pensei em produzir um texto sobre o tema da meritocracia, mas me deparei com o artigo abaixo, que além de conter a maior parte das idéias que gostaria de transmitir, apresenta ainda uma outra variedade de ângulos e perspectivas sobre o assunto com um embasamento bibliográfico tão vasto que decidi apenas traduzí-lo e compartilhar com os leitores do blog.


A minha opinião é de que o texto do Renato Souza sobre o assunto, que despertou tanto interesse desde a semana passada, identificou corretamente a ideologia do mérito extensamente disseminada em nossa sociedade, mas não foi tão certeiro ao concluir que há um problema com a idéia da meritocracia em si. O texto abaixo elabora mais sobre o problema com a ideologia meritocrática e defende que o problema é causado por um hiato entre como as pessoas pensam que a sociedade funciona e como ela realmente funciona no que se refere à distribuição de resultados econômicos com respeito ao mérito individual.


Acho que em vez de combatermos os princípios meritocráticos, como concluiu o texto postado nesse espaço na semana passada, deveríamos combater sim a idéia de que nossa sociedade já é meritocrática em um alto grau, porque isso leva realmente a dificuldades de se obter apoio para políticas de diminuição de desigualdade muito necessárias no Brasil. Os princípios meritocráticos podem ser utilizados para se defender políticas nesse sentido, uma vez desmontado o hiato cognitivo mencionado anteriormente. O texto abaixo provê uma quantidade muito boa de argumentos e idéias que podem ser utilizados nesse bom combate.


O original pode ser encontrado em http://www.ncsociology.org/sociationtoday/v21/merit.htm. O contexto é o dos Estados Unidos, mas acredito que possa ser transportado para o contexto brasileiro sem grandes alterações. Desde agora peço desculpas pelos problemas de tradução.






O Mito da Meritocracia
Stephen J. McNamee
Robert K. Miller, Jr.
University of North Carolina at Wilmington






De acordo com a ideologia do American Dream, a América é a terra das oportunidades ilimitadas em que os indivíduos podem ir tão longe quanto os próprios méritos possam levar. De acordo com essa ideologia, tira-se do sistema o que se coloca nele. Ir em frente é ostensivamente baseado no mérito individual, que é geralmente visto como uma combinação de fatores que incluem habilidades inatas, trabalho duro, atitude correta e alto caráter moral e integridade. Os americanos não apenas tendem a pensar que o sistema deveria funcionar assim, mas a maioria dos americanos também pensa que é assim que o sistema realmente funciona (Huber and Form 1973, Kluegel and Smith 1986, Ladd 1994).


Em nosso livro The Meritocracy Myth (Rowman & Littlefield, 2004), nós questionamos a validade dessas afirmações comumente sustentadas, propondo que há um hiato entre o modo como as pessoas pensam que o sistema funciona e o modo como o sistema realmente funciona. Nós nos referimos a esse hiato como “o mito da meritocracia”, ou o mito de que o sistema distribui recursos – especialmente riqueza e renda – de acordo com os méritos dos indivíduos. Nós questionamos essa asserção de duas maneiras. Primeiramente, nós sugerimos que apesar de o mérito realmente ter influência em quem fica com o quê, o impacto do mérito nos resultados econômicos é largamente superestimado pela ideologia do American Dream. Em segundo lugar, nós identificamos uma variedade de fatores não meritocráticos que suprimem, neutralizam ou até negam os efeitos do mérito e criam barreiras à mobilidade individual. Nós sumarizamos esses argumentos abaixo. Primeiramente, entretanto, nós forneceremos uma visão geral sobre o que está em jogo.


Existe uma variedade de maneiras através das quais se podem retratar as desiguais distribuições de renda e riqueza na América. Renda se refere ao quanto uma pessoa ganha por mês e riqueza se refere ao patrimônio. Embora os americanos tendam a pensar sobre a renda em termos de salários, há na verdade duas fontes de renda. Adicionalmente à renda proveniente de salários, também existem fontes de renda não relacionadas a empregos, como ganhos de capital, dividendos, pagamentos de juros e algumas formas de assistência governamental. Em alguns casos, essas fontes de renda são relacionadas a empregos prévios mas não necessariamente atuais, como pensões e pagamentos de previdência social. Riqueza não se refere a recebimentos periódicos de recursos, mas a ativos sob posse de alguém, como casas, carros, pertences pessoais, negócios, imóveis não residenciais, ações e títulos de dívida e outros ativos financeiros. Estes ativos podem ser divididos entre aqueles que tendem a depreciar em valor (carros e a maioria dos pertences pessoais) e aqueles cujo valor tende a apreciar (negócios, imóveis, ações). Em geral, quanto mais patrimônio se tem, mais provável é que a riqueza seja proveniente de fontes de propriedade que tendam a apreciar em valor. O patrimônio líquido se refere à diferença entre os ativos e os passivos. A Tabela 1 mostra a distribuição de renda e a Tabela 2 mostra a distribuição de patrimônio líquido.


Tabela 1. Distribuição da Renda Familiar Total, 2002
Grupo                                              Porcentagem da Renda Total
20% de maior renda                                   49,7%
Segundo quinto                                           23,3%
Terceiro quinto                                             14,8%
Quarto quinto                                                8,8%
20% de menor renda                                  3,5%
5% de maior renda                                     21,7%
Fonte: DeNavas-Walt et al. 2003




Tabela 2. Distribuição de Patrimônio Líquido Familiar Total, 2001
Grupo                                             Porcentagem do Patrimônio Total
99-100 percentil                                             32,7%
95-99 percentil                                               25,0%
90-95 percentil                                               12,1%
50-90 percentil                                               27,1%
0-50 percentil                                                  2,8%
Fonte Kennickell, 2003


Essas tabelas mostram que as distribuições de renda e especialmente patrimônio são altamente assimétricas. As famílias americanas que compõem o grupo dos 20% de mais alta renda, por exemplo, recebem uma grande parte do total de renda disponível (49,7%) enquanto os 20% de renda mais baixa recebem uma parte muito menor da renda disponível (3,5%). Os 5% superiores recebem sozinhos 21,7% do toda a renda disponível. A distribuição de riqueza medida pelo patrimônio liquido é até mais assimétrica. O 1% mais rico responde por aproximadamente um terço de todo o patrimônio enquanto os 50% mais pobres respondem por apenas 2,8% de todo o patrimônio. Em outras palavras, as distribuições americanas de renda e riqueza são “pesadas para cima” (Wolff 2002) e representam um nível de desigualdade econômica que é o maior entre os países industrializados do mundo.


Essas distribuições são relevantes para o mito da meritocracia de algumas maneiras. Primeiro, apesar da extensamente disseminada percepção de que a América seja uma sociedade de “classe média”, a maior parte do dinheiro é altamente concentrada no topo do sistema. Segundo, muitos dos argumentos que sugerem que o “mérito” está por trás da distribuição de renda e riqueza também sustentam que o mérito segue uma distribuição normal na população. Isto é, o formato da distribuição lembra uma curva em forma de sino com um pequeno número de pessoas incompetentes na extremidade mais baixa, uma maioria de pessoas de habilidades medianas no meio e um pequeno número de pessoas extremamente talentosas na extremidade superior. A distribuição de resultados econômicos, entretanto, apresenta um excesso de assimetria em relação a qualquer distribuição razoável de mérito. Algo que apresente uma distribuição normal não pode ser a causa direta e proporcional de algo com uma distribuição tão assimétrica. Tem de haver mais nessa história.


Sobre ser feito da coisa certa
Quando fatores associados com “mérito” individual são relacionados a renda e riqueza, resulta que esses fatores são frequentemente não tão individuais ou influentes quanto muitos presumem. A maioria dos especialistas aponta, por exemplo, que “inteligência”, assim como medida por testes de QI, é parcialmente um reflexo de capacidades intelectuais inerentes e parcialmente um reflexo de influências ambientais. É a combinação da capacidade e experiência que determina “inteligência”. Mesmo levando em conta esse fator ambiental, resultados de QI respondem por cerca de 10% da variância em diferenças de renda entre indivíduos (Fisher et al. 1996). Sendo a riqueza menos ligada a realizações que a renda, a influência da inteligência sobre a riqueza é muito menor. Outros alegados talentos inatos não podem ser separados da experiência, dado que qualquer talento necessita ser concretizado na prática para ser reconhecido e nomeado como tal (Chambliss 1989). Não há maneira de se determinar de maneira segura, por exemplo, quantos potenciais violinistas de talento internacional existem na população em geral mas que nunca tenham tocado em um violino. Tais “talentos” não emergem espontaneamente mas precisam ser identificados e cultivados.


Aplicar os talentos é também necessário. Trabalhar duro é frequentemente visto nesse contexto como parte da fórmula do mérito. Cabeças balançam em concordância toda vez que trabalho duro é mencionado em conjunção com sucesso econômico. Raramente essa hipótese é questionada. Mas o quê exatamente queremos dizer com trabalho duro? Isso significa o número de horas investidas no esforço de se atingir um objetivo? Significa a quantidade de energia ou puro esforço físico investidos na execução de tarefas? Nenhuma dessas medidas de trabalho duro está diretamente associada com sucesso econômico. De fato, aqueles que trabalham mais horas e realizam mais esforço (ao menos fisicamente) são frequentemente os mais pobremente pagos na sociedade. Por contraste, o dinheiro realmente grosso na América não vem do trabalho, mas da propriedade, que não requer expediente ou esforço, seja físico ou mental. Resumindo, trabalhar duro não é por si só diretamente relacionado à quantidade de renda e riqueza que os indivíduos possuem.


E sobre atitudes? Novamente, a história aqui é controversa. Primeiro, não é claro qual combinação particular de atitudes, aparências ou mentalidades são associadas com sucesso econômico. O tipo de mentalidade que seria uma vantagem em um campo pode ser uma desvantagem em outro campo. Um conjunto de diferente de “atitudes certas”, por exemplo, pode ser mais associado a ser um artista bem sucedido que ser um contador bem sucedido. Segundo, a direção da influência não é sempre clara. Isso é, certas atitudes são a causa do sucesso ou o efeito dele?


Um exemplo da dificuldade em se discernir o impacto e direção dessas influências está refletido no debate da “cultura da pobreza”. De acordo com o argumento da cultura da pobreza, as pessoas são pobres por causa de desvios de valores ou valores patológicos que são passados de geração em geração, criando um “ciclo vicioso de pobreza”. De acordo com essa perspectiva, pessoas pobres são vistas como anti-trabalho, anti-família, anti-escola, e anti-sucesso. Evidência recente relatada nessa publicação (Wynn, 2003) e em outros lugares (Barnes, Gould; 1999, Wilson, 1996), entretanto, indica que pessoas pobres aparentemente valorizam trabalho, família, escola e realizações tanto quanto outros americanos. Em vez de ter valores “desviados” ou “patológicos”, a evidência sugere que pessoas pobres ajustam suas ambições de acordo com avaliações realistas de suas mais limitadas oportunidades de vida.


Um exemplo de um tal ajuste é a suposta orientação ao presente dos pobres. De acordo com a teoria da cultura da pobreza, pessoas pobres são orientadas ao presente e são incapazes de postergar recompensas. A orientação ao presente pode encorajar jovens adultos a largar a escolar para entrar em empregos mal pagos em vez de prosseguir os estudos a fim de aumentar o ganho futuro potencial. Entretanto, a orientação ao presente dos pobres pode ser um efeito da pobreza em vez de ser uma causa. Isso é, se você é desesperadoramente pobre, você pode ser forçado a ser orientado ao presente. Se você não sabe de onde vem a sua próxima refeição, você não tem escolha a não ser se focar nas necessidades imediatas primeiramente e acima de tudo. Por contraste, os ricos e a classe média podem ser mais orientadas ao futuro uma vez que suas necessidades imediatas são asseguradas. Similarmente, os pobres podem registrar ambições mais modestas que os mais afluentes, não por causa de falta de motivação, mas por causa de uma avaliação realista de suas possibilidades. Nesse sentido, as diferenças observadas de comportamento entre pobres e ricos são mais provavelmente um reflexo de circunstâncias de vida fundamentalmente diferentes que de atitudes ou valores fundamentalmente diferentes.


Finalmente, nós questionamos a idéia de que caráter moral e integridade são contribuidores importantes para o sucesso econômico. Embora “honestidade pode ser a melhor política” em termos de como uma pessoa deve se conduzir em suas relações com outros, há pouca evidência de que os bem sucedidos economicamente sejam mais honestos que os menos bem sucedidos. A recente sequência de alegados escândalos de ética corporativa em corporações como Enron, WorldCom, Arthur Andersen, Adelphia, Bristol-Myers Squibb, Duke Energy, Global Crossing, Xerox e as recentes alegações de falhas de conduta na vasta indústria de fundos mútuos revelam como executivos corporativos frequentemente se enriquecem através de meios menos que honestos. Crimes de colarinho branco na forma de negociações com informação privilegiada, embelezamento contábil, sonegação, fraude securitária e afins é dificilmente evidência de honestidade e virtude em prática. E também não o é a extensa e por vezes altamente lucrativa assim chamada economia “irregular” ou “por baixo dos panos” – muito dela relacionada ao vício na forma de tráfico de drogas, jogos, pornografia. Claramente, riqueza por si só não é um reflexo de superioridade moral. Para ir em frente na América, sem dúvida ajuda ser brilhante, arguto, trabalhar duro, e ter a combinação certa de atitudes que maximizam o sucesso dentro dos campos de empreendimento. Jogar dentro das regras, entretanto, provavelmente suprime prospectos de sucesso econômico dado que aqueles que jogam dentro das regras têm possibilidades mais restritas de atingir riqueza e renda que aqueles que escolhem ignorar as regras.


Barreiras não meritocráticas à mobilidade
Há uma variedade de forças que tendem a suprimir, neutralizar ou até mesmo negar os efeitos do mérito. Nós podemos coletivamente nos referir a essas forças como “gravidade social”. Essas forças tendem a manter as pessoas nos lugares que elas já ocupam, não importando a extensão de seu mérito individual.


A primeira e mais importante dentre essas forças não meritocráticas é o efeito da herança, em termos gerais definido como os efeitos da colocação inicial de classe ao nascer sobre as oportunidades futuras de vida. Herança é não só o conjunto de bens que são transferidos após a morte dos pais. Herança se refere em uma definição mais geral aos pontos de partida desiguais na corrida. A corrida é como uma corrida de revezamento em que nós herdamos a posição inicial de nossos pais. Por algum tempo, nós corremos ao lado de nossos pais enquanto o bastão é passado, a então nós partimos por nossa conta. Nessa corrida de revezamento, aqueles nascidos em grande riqueza começam muito à frente daqueles nascidos de pais pobres, que têm um grande déficit a cobrir para empatar a corrida. Realmente, de todos os fatores que possamos considerer, onde nós começamos na vida tem o maior efeito sobre onde nós vamos terminar. Na corrida, os efeitos de herança vêm primeiro e mérito em segundo, não o contrário.


A herança provê numerosas e cumulativas vantagens não meritocráticas que ficam disponíveis em variados níveis para todos os que nascem em ao menos alguma relativa vantagem, excluindo apenas aqueles na base do sistema. Incluídas entre as vantagens não meritocráticas estão o alto padrão de vida desde o nascimento, doações como dinheiro e propriedade doadas por pais a seus filhos em momentos críticos do curso de vida (indo para a universidade, ao se casar, comprando uma casa, ao ter filhos, ao começar um negócio), prevenções à mobilidade para baixo (redes de segurança familiar que impedem filhos a naufragarem em épocas de crise, azar ou coleta de resultado de fracassos pessoais), acesso a oportunidades educacionais e outras oportunidades de adquirir mérito pessoal ou ter seu mérito pessoal identificado e cultivado, melhores tratamentos de saúde e consequentemente vidas melhores e mais extensas (o que aumenta o poder de remuneração e a habilidade de acumular bens durante o ciclo de vida).


Outra vantagem da herança é o acesso a altamente poderosas formas de capital social e cultural. Capital social são os “recursos sociais” de alguém e se refere essencialmente ao valor daqueles que a pessoa conhece. Capital cultural são os recursos culturais de alguém e se refere essencialmente ao valor social daquilo que a pessoa conhece. Todo mundo tem amigos, mas aqueles nascidos em privilégio têm amigos em altos postos com recursos e poder. Todo mundo possui cultura – corpos de conhecimento e informação necessárias para se navegar através do espaço social. Aceitação complete aos mais altos círculos sociais, entretanto, requer conhecimento de modos de vida de um grupo particular, um tipo de savoir faire que inclui comportamento e maneiras associados às altas classes. Aqueles nascidos nesses altos círculos são treinados desde as primeiras idades nos modos culturais do grupo, o que permite a eles trafegar confortavelmente por esses círculos e a se encaixar. Estranhos que aspirem a se tornar parte desses círculos de alto poder devem aprender esses modos culturais de vida estando de fora de uma maneira muito mais difícil que continuamente carrega o risco de se ser exposto como um impostor ou pretensioso.


Ao lado dos efeitos da herança, a pura e simples falta de sorte pode suprimir os efeitos do mérito. A má sorte pode assumir várias formas mas duas formas muito comuns são perder um emprego em que se era muito bom ou passer muitos anos se preparando para um trabalho para o qual a demanda nunca se materializou ou declinou. Ao olhar para empregos e oportunidades, os americanos tendem a se focar no lado da oferta do mercado de trabalho, isto é, no conjunto de pessoas disponíveis como força de trabalho. Muito menos atenção é dada ao lado da demanda, ou o número e tipos de empregos disponíveis. É possível e muito comum que muitos indivíduos muito meritosos simplesmente não tenham para onde ir. Ao longo dos últimos vinte anos, o crescimento dos empregos na América tem ocorrido desproporcionalmente no setor de serviços mal remunerados da economia. Ao mesmo tempo, mais e mais americanos estão conseguindo mais educação, especialmente educação superior. Simplesmente posto, essas tendências estão indo em direções opostas: a economia não está produzindo tantos empregos altamente qualificados quanto a sociedade está produzindo pessoal qualificado para preenchê-los. (Collins 1979, Livingstone 1998).


Em adição ao número e tipos de empregos disponíveis, as localizações dos empregos tanto geograficamente quanto dentro dos diferentes setores da economia também representam fatores não meritocráticos na procura por empregos. Por exemplo, um faxineiro que trabalhe em uma grande corporação em Nova Iorque pode ser pago muito melhor para fazer essencialmente a mesma coisa que um faxineiro que trabalhe para uma pequena família em uma pequena cidade no Mississipi. Esses efeitos são independents das demandas pelos empregos ou das qualificações ou mérito dos indivíduos. Diferenças nos benefícios e salaries entre tais empregos são frequentemente substanciais e podem significar a diferença entre a pobreza e a existência segura.


Se a pobreza fosse devida exclusivamente a diferenças individuais, nós esperaríamos taxas de pobreza aleatoriamente distribuídas por todo o país. Historicamente, entretanto, taxas de pobreza têm variado por região, com o Sul tendo taxas particularmente altas. Essas diferenças têm sido reduzidas nas décadas mais recentes com o Nordeste e Meio-Oeste no assim chamado “cinturão da ferrugem” tendo experimentado fechamento de fábricas e desindustrialização enquanto o Sul e Sudoeste no chamado “cinturão do Sol” têm experimentado maior diversidade econômica e desenvolvimento. Apesar dessas tendências, pesquisas recentemente relatadas nessa publicação (Wimberley and Morris, 2003) mostram que as taxas de pobreza nos Estados Unidos continuam a variar por região e localização dentro das regiões sugerindo que a geografia é ainda um fator de maior importância na distribuição de oportunidades econômicas.


A educação é outro fator largamente visto como responsável pelo lugar alcançado pelas pessoas dentro do sistema. O papel da educação na América, entretanto, não é tão simples quanto geralmente assumido. Em uma mão, aqueles com mais educação, em média, têm maior renda e riqueza. A educação é então frequentemente vista como o meio primário de mobilidade social para cima. Nesse context, a educação é largamente percebida como uma instituição-chave que seleciona e ordena indivíduos de acordo com mérito individual. Notas, créditos, diplomas, títulos e certificados são claramente “merecidos”, não comprados ou apropriados. Mas, tanto quanto demonstrado por pesquisas, oportunidades educacionais não são igualitariamente distribuídas pela população (Bowles e Gintis 1976, 2002, Bordieu e Passeron 1990, Aschaffenburg e Maas 1997, Kozol, 1991, Sacks, 2003, Ballantine 2001). Crianças de classe alta tendem a conseguir educação de classe alta (em escolas preparatórias de elite e universidades de primeira linha), crianças de classe média tendem a ter educação de classe média (escolas públicas e universidades públicas) e crianças pobres tendem a ter educação pobre (escolas que têm altas taxas de desistência e usualmente sem educação superior). Se manter na escolar claramente depende da condição econômica da família e não é simplesmente uma causa independente dessa situação econômica. A qualidade das escolas e a qualidade das oportunidades educacionais varia de acordo com o lugar que a pessoa vive, e esse lugar depende dos recursos econômicos da família. A maioria das escolas públicas, por exemplo, são suportadas por impostos sobre propriedade locais. A base de taxação é maior em comunidades mais ricas e proporcionalmente mais baixa em áreas mais pobres. Essas discrepâncias dão margem à perpétua procura dos pais por comunidades e vizinhanças que tenham reputação de “boas escolas”, dado que os pais querem prover cada possível vantagem que possam a seus filhos. À medida que os pais sejam bem sucedidos em passer tais vantagens, o alcance educacional é primariamente reflexo da renda familiar. Em suma, é importante reconhecer que a realização individual ocorre dentro de um context de oportunidades educacionais desiguais.


Ao lado da educação, o emprego independente é popularmente percebido como uma rota de maior importância para a mobilidade social para cima. Oportunidades a ir em frente na base do emprego independente ou da criação do próprio negócio têm declinado de forma aguda. Nos tempos coloniais, cerca de três quartos da população americana não escrava eram pequenos fazendeiros. Hoje, apenas sete porcento da força de trabalho tem emprego independente (U.S. Census Bureau 2002). A fazenda familiar, em particular, está em vias de extinção. À medida que o emprego próprio declinou, o tamanho e a dominância das corporações cresceu. Isso deixa muito poucas oportunidades para os indivíduos que se fizeram a si próprios para entrarem em mercados existentes ou estabelecer novos. A América testemunhou o rápido declínio das lojas familiars, restaurants e lojas de varejo e a concomitante ascensão de Wal-Marts, Holiday Inns e McDonalds. Com muito mais americanos trabalhando para outros americanos em uma configuração crescentemente burocratizada, os prospectos de rápido enriquecimento declinaram.


Em adição ao declínio do próprio emprego, a manufatura também experimentou uma drástica redução da força de trabalho à medida que a produção crescentemente se mudou para outros países em um esforço para reduzir custos. Essa é uma tendência significativa dado que os Estados Unidos se tornaram uma potência mundial baseada em sua força industrial, que suportou uma grande e relativamente próspera classe média trabalhadora. Alguns empregos, como programador de computadores, estão também se mudando para outros países em números crescentes. Todas essas tendências estão ocorrendo independentemente do mérito dos indivíduos mas mesmo assim causam um profundo impacto sobre as oportunidades individuais.


A mais óbvia e vastamente reconhecida barreira não meritocrática para as realizações individuais é a discriminação. Discriminação não apenas suprime o mérito, mas é a antítese do mérito. Discriminações de cor de pele e sexo têm sido as mais pervasivas formas de discriminação na América. As boas notícias são de que tais discriminações estão em declínio. As más notícias são que essas formas de discriminação estão menores mas não acabaram. Além da continuada discriminação, há ainda fatores inerciais da discriminação passada que criam desvantagem no presente. O debate que divide opiniões sobre ações afirmativas na América salienta a continuada discordância sobre o peso e importância desses efeitos residuais e qual a melhor maneira de endereçá-los.


A maioria dos americanos concorda que discriminação por cor de pele e sexo é errada e que um campo de jogo justo deve ser estabelecido. Na verdade, é frequentemente assumido que nós teríamos uma verdadeira igualdade de oportunidades na América se essas formas de discriminação fossem eliminadas. Essa posição é ingénue, entretanto, porque deixa de perceber efeitos de outros fatores não meritocráticos identificados aqui (especialmente herança). Mesmo se as discriminações pela cor de pele e sexo fossem eliminadas, nós ainda não teríamos um jogo justo. Esta posição também deixa de perceber outras formas de discriminação que, ainda que menos pervasivas na América, ainda suprimem ou neutralizam os efeitos do mérito: discriminação com base na orientação sexual, religião, idade, aparência física, e origem (discriminação contra sulistas). Que essas formas de discriminação afetem menos pessoas que as de cor de pele e sexo serve de pouco conforto para aqueles que as sofrem. Para eles, a taxa de discriminação efetiva é de 100%.


Algumas dessas formas de discriminação não são bem reconhecidas ou geralmente percebidas. “Aparencismo”, por exemplo, é uma forma sutil de discriminação em que pessoas atraentes recebem numerosas vantagens não meritocráticas sobre pessoas menos atraentes (mais atenção, mais ajuda, mais reconhecimento e crédito por realizações, mais avaliação positive de performance) (Etcoff 1999). Essas vantagens não meritocráticas têm efeitos profundos e independentes sobre as oportunidades de vida e mérito individual.


E agora?
Em “O Mito da Meritocracia” nós não sugerimos que o mérito seja um mito. Em vez disso, nós sustentamos que é um mito a meritocracia como a idéia de que os recursos da sociedade são distribuídos exclusivamente ou primariamente com base no mérito individual. Ela é um mito por causa dos efeitos combinados de fatores não meritocráticos como herança, vantagens sociais e culturais, oportunidades educacionais desiguais, sorte e a estrutura flutuante das oportunidades de emprego, declínio do emprego por conta própria, discriminação em todas as suas formas. Se a meritocracia é um mito, como podemos fazer com que o sistema opere em maior conformidade com os princípios meritocráticos endossados tão generalizadamente pelos americanos?


Nós sugerimos quatro maneiras pelas quais a sociedade americana poderia ser transformada em uma sociedade mais genuinamente meritocrática:


1. A discriminação em todas as suas formas deveria ser reduzida ou eliminada.


2. Os ricos deveriam ser encorajados a redistribuir partes maiores de sua riqueza acumulada através de filantropia de maneira a prover mais oportunidades para os menos privilegiados.


3. O sistema de impostos deveria ser reprojetado de modo a se tornar genuinamente progressive de maneira a diminuir a distância entre aqueles no topo e aqueles na base do sistema.


4. Mais recursos do governo deveriam ser alocados para prover acesso mais igualitário a serviços críticos como educação e saúde.


Todas essas medidas reduziriam de maneira geral a extensão da desigualdade na sociedade e ao mesmo tempo permitiriam o mérito a ter um maior efeito sobre os resultados econômicos. Uma mudança tão fundamental na distribuição dos recursos sociais e oportunidades, entretanto, é radicada no pressuposto de que esses objetivos sejam largamente vistos como desejáveis e politicamente factíveis.


É geralmente reconhecido que uma meritocracia pura é provavelmente impossível de se atingir. O que é menos geralmente reconhecido é que um tal sistema talvez não seja inteiramente desejável. Os limites e perigos de um sistema que opere puramente em bases meritocráticas foram dramaticamente ilustrados em “A Ascensão da Meritocracia” (1961), um romance do sociólogo britânico Michael Young. Young teve a visão de uma sociedade na qual aqueles no topo do sistema governavam autocraticamente com um senso de predestinação enquanto aqueles na base do sistema eram incapazes de se proteger contra os abusos impostos a eles pela elite meritocrática acima. Em vez de uma sociedade justa e iluminada, a meritocracia se tornou cruel e impiedosa.


Uma possível vantagem de uma sociedade não meritocrática é que em qualquer ponto do tempo haveria, por quaisquer combinações de razões, ao menos alguns no topo do sistema que seriam menos capazes e competentes que ao menos alguns na base do mesmo. Tais discrepâncias deveriam suscitar humildade para aqueles no topo e esperança e dignidade para aqueles na base. Mas isso pode acontecer apenas se for extensamente reconhecido que herança, sorte e uma variedade de outras circunstâncias além do controle dos indivíduos são importantes ao afetar onde alguém acaba chegando no sistema. Enquanto a meritocracia pode ser não apenas impossível mas também não desejável, nós sustentamos que o mito da meritocracia é em si próprio danoso porque ao não levar em conta as causas mais importantes da desigualdade, ele leva à desavisada exaltação dos ricos e condenação dos pobres. Nós podemos sempre ter ricos e pobres entre nós, mas precisamos não exaltar os primeiros e não condenar os últimos.

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