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segunda-feira, 9 de maio de 2016

O impeachment entre o espírito e a lei, por Ricardo Lodi Ribeiro.



Ricardo Lodi Ribeiro
No parecer do relator da Comissão Especial do Impeachment no Senado Federal, Senador Antonio Anastasia, aprovado por 15 x 5 votos, ficaram mais claras as teses jurídicas que fundamentam a caracterização como crime de responsabilidade as imputações atribuídas à Presidente Dilma Rousseff concernentes no atraso de pagamento das subvenções econômicas no âmbito do Plano Safra e na edição de seis decretos de abertura de créditos suplementares.   No entanto, tais teses não amparam tais alegações como a seguir será demonstrado.
Em relação ao atraso do pagamento das subvenções econômicas devidas pelo Governo Federal ao Banco do Brasil no âmbito do Plano Safra, em 2015, considerado pelos denunciantes como operação de crédito vedada pelo artigo 35 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ensejadora do crime de responsabilidade, o relatório sustenta que o conceito de operação de crédito do artigo 29, III, da LRF vai muito além do que há muito se conhece no direito privado, e do que possa ser revelado pelo sentido literal do aludido texto legal, englobando todas situações em que o Governo se torna devedor do banco público.   Ao contrário do que ocorre nas chamadas pedaladas fiscais, identificadas inapropriadamente como operação de crédito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) emrelação às contas do Governo de 2014, e que não são objeto do processo de impeachment, o inadimplemento de subvenções econômicas no âmbito do Plano Safra sequer constitui adiantamento de recursos que a União deva aos beneficiários de prestações públicas. 
Neste programa governamental a relação de crédito se dá entre o Banco do Brasil e o agricultor.  O Governo paga, de acordo com a Lei nº 8.427/92, uma subvenção econômica relativa à flexibilização dos juros praticada pelos bancos.  Ou seja, o BB empresta dinheiro para os agricultores com taxas beneficiadas e o Governo lhe paga a diferença entre a taxa de juros praticada e a taxa de mercado.  Ora, do eventual atraso no pagamento da subvenção econômica para o BB não nasce uma operação de crédito, e tampouco há qualquer antecipação de pagamento que a União devesse aos agricultores.  O que há é a prática de juros mais baixos do que os praticados pelo mercado financeiro, devendo o Governo uma subvenção ao banco em função dessa diferença.
Embora reconheça que tal interpretação não deriva da literalidade do texto, o parecer do relator defende que a aplicação do dispositivo ao caso decorre do espírito da lei, baseado na ideia de responsabilidade fiscal.
O que o parecer do Senador Anastasia denomina de espírito da lei, é revelado na interpretação jurídica pelo aspecto teleológico da norma, que nos revela a intenção reguladora do legislador.  De acordo com o raciocínio chancelado pela Comissão Especial, não se nega que o inadimplemento das subvenções econômicas está contemplado por  qualquer das expressões contidas na referida norma legal, que define operação de crédito como “compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”, sendo a ela equiparada pelo §1º do mesmo artigo “o  reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo ente da Federação.”
E nem poderia ser diferente, uma vez que o próprio texto não permitiria, sequer a fórceps, o enquadramento do inadimplemento das subvenções econômicas no aludido dispositivo legal.  Contudo, segundo o relator, a caracterização deste como operação de crédito derivaria da cláusula geral, “outras operações assemelhadas” que, segundo a tese de sua excelência, autorizaria, em nome do princípio da responsabilidade fiscal, que fossem atraídas para a disciplina da norma em exame qualquer forma de endividamento, presente ou futura, do Governo com os bancos públicos, decorrentes de quaisquer atos jurídicos sejam eles derivados da vontade, da lei ou decorrentes de atos ilícitos.
O problema é que o inadimplemento de uma obrigação ex-lege, como é o pagamento de subvenções econômicas no âmbito do Plano Safra, não pode ser enquadrado em qualquer dos sentidos possíveis oferecidos pela literalidade do texto legal, uma vez que todos os institutos jurídicos elencados pelo artigo 29 da LRF guardam traços comuns de semelhança, que delineiam o núcleo central de uma operação de crédito,  há muito revelada pelo Direito Privado como sendo um contrato em que o credor bens fungíveis (geralmente dinheiro) de seu patrimônio para o devedor, que se compromete a devolvê-lo, ou o seu equivalente da mesma espécie e quantidade, em determinado prazo.  Assim, a operação de crédito dá-se pela troca de uma prestação presente pela promessa de uma prestação futura, pressupondo a existência de um aspecto temporal e o elemento confiança. Quase sempre a celebração do contrato de operação de crédito envolve o pagamento de juros pelo devedor, o que, no entanto, não é elemento essencial do contrato. Aliás, a presença de juros em um contrato não o caracteriza como operação de crédito, uma vez que pode estar presente em qualquer relação contratual, especialmente quando destina-se a mensuram o inadimplemento no cumprimento da obrigação por uma das partes.
Note-se que esses elementos centrais estão presentes em todos os negócios jurídicos elencados pelo art. 29 e o seu §1º da LRF. Todos eles derivados da vontade, e não da lei.  Todos eles envolvendo a transferências de bens do credor para o devedor.  Todos eles prevendo a restituição de tais valores para o credor.  As formas jurídicas adotadas em cada um dos negócios jurídicos acima aludidos preservam esses elementos essenciais das operações de crédito e a sua previsão pela lei revela uma enumeração exemplificativa que não se desprende destes, sequer, no que se refere à cláusula geral “operações assemelhadas”, que não alcança, pois fora dos limites possíveis oferecidos pelo texto, outros negócios jurídicos que não se assemelhem, a partir dos seus elementos centrais, com os enumerados no texto.
Deste modo, o enquadramento do inadimplemento de subvenções econômicas no conceito de operação de crédito do art. 29, III, da LRF não deriva de um processo de interpretação da lei, mas de uma tentativa de sua integração analógica a partir do ao recurso ao chamado de princípio da responsabilidade fiscal.  Porém, tal iniciativa não é permitida em nosso ordenamento jurídico, uma vez que as normas proibitivas, como a que deriva da combinação do art. 29, III, com o art. 36, ambos da LRF, que veda a realização de operação de crédito entre a entidade pública e o banco por ela controlado, não comporta integração, uma vez que não oferece lacuna a ser colmatada. Deste modo, são vedadas apenas aquelas operações previstas na norma vedatória. Ainda que assim não fosse, a integração por analogia oferece a possibilidade de aplicação de uma norma jurídica a casos nela previstos a partir de uma relação de identidade valorativa entre as duas situações, o que evidentemente não se revela entre o contrato de operação de crédito e o inadimplemento de uma obrigação ex-lege, duas figuras que não guardam qualquer similitude.  Aliás, nosso ordenamento jurídico não prevê operações de crédito que não sejam derivadas da vontade, mas da lei.  A expressão operação envolve um conjunto de meios convencionais empregados para atingir a um resultado comercial ou financeiro, não englobando a obrigação decorrente da prática de um inadimplemento contratual ou decorrente de lei.
Em sentido contrário, alega o relator da Comissão Especial do Senado que a expressão operações assemelhadas garante a prevalência do conteúdo sobre a forma, fazendo com que a expressão operação de crédito seja aplicada a qualquer situação em que o ente público passe a ser financiado pelo banco público.  Esse raciocínio é bastante tortuoso porque a prevalência do conteúdo em detrimento da forma é doutrina aplicável aos casos de desarmonia entre os dois elementos, quando se admite o afastamento da forma para o atingimento da essência do negócio jurídico que originalmente já era subjacente a uma forma que com ela não se coadunava.  Por certo, tal raciocínio não pode ser aplicado ao Plano Safra que, desde 1992 vem produzindo os seus regulares efeitos para os agricultores, instituições financeiras e Governo, não havendo que se buscar em suas molduras legais outra natureza jurídica que não a de subvenção econômica, obrigação decorrente da lei, e não do contrato, e que jamais poderia ser transmutada para uma relação contratual de crédito.
Ao aceitar a tese de que operação de crédito é conceito tão amplo que abarca todas as relações jurídicas em que a administração pública venha, ainda que no futuro distante, se tornar devedora em face do inadimplemento de suas obrigações, seria reconhecer que o Estado não poderia sequer contratar com os seus bancos, diante da possibilidade, sempre presente, de quedar-se inadimplente, promovendo o surgimento de um financiamento, configurando um crime de responsabilidade, o que é tese que deve ser afastada por absurda.
Por outro lado, o relator, a despeito de não identificar qualquer ato da Presidente da República que pudesse, no âmbito do Plano Safra, ser caracterizado como operação de crédito, procura extrair a responsabilidade presidencial do dever de zelo compatível ao de direção superior da Administração Pública Federal, nos termos do art. 84, II, da Constituição Federal, confundindo a supervisão geral que o Chefe do Poder Executivo tem sobre os seus subordinados, a quem pode delegar atribuições que não lhe sejam exclusivas, com a atribuição originária de competência legal a outra autoridade, cujo o feixe de atribuições concentra as atividades inquinadas pelos denunciantes de atentatórias à Constituição.   Na verdade, sendo as competências para a gestão financeira das subvenções econômicas do Plano Safra atribuídas diretamente pela lei ao Ministro da Fazenda, e não ao Presidente da República, a conduta descrita no relatório jamais poderia ter sido atribuída à Chefe de Estado.
Vale destacar que, embora o Plano Safra exista desde 1992, o TCU nunca considerou que o inadimplemento da União no pagamento de subvenções econômicas ao Banco do Brasil se caracterizasse como operação de crédito.  Ao contrário, chegou inclusive negar a natureza jurídica creditícia ao saldo devedor do Governo nas contas de suprimento com bancos públicos. Alegam os defensores do impeachment que a jurisprudência do TCU dominante até 2014 não pode ser aplicada ao caso em questão em razão ao montante e ao período de atraso dos pagamentos verificados.
Naturalmente que tal argumento não pode ser aceito em razão da impossibilidade de se modificar a natureza de uma relação jurídica em virtude dos montantes envolvidos.  Seria tão disparatado quanto negar a aplicação da jurisprudência de décadas do Supremo Tribunal Federal,no sentido de não constituir crime de estelionato a emissão de cheque pré-datado sem fundos a um caso concreto, em razão do alto valor do cheque. Deste modo, o atraso no pagamento de uma subvenção econômica jamais poderia autorizar a sua mutação em operação de crédito em razão do seu alto valor e do tempo decorrido entre o vencimento e a liquidação da dívida.
Em relação à edição de seis decretos de abertura de créditos suplementares em 2015, a alegação do relator de que a medida constituiria violação do artigo 4º da LOA/15, que determina a compatibilidade dos atos com a meta primária, parte do pressuposto que o atingimento dessas metas está relacionado não só à execução financeira, mas também à programação orçamentária.  Ou seja, de que a existência de insuficiência das receitas para satisfazer as despesas conforme aferido pelo relatório bimestral de receitas e despesas previsto no art. 9º da LRF teria o condão de impedir a abertura de créditos suplementares, independentemente da compatibilidade material de cada um destes com o atingimento da meta.
Tal construção, além ilegal, por ignorar que o art. 4º,§ 1º da LRF, que estabelece que as metas fiscais contidas na LDO são anuais, não se apoia em qualquer outro dispositivo,uma vez que a única consequência que o art.9º da LRF estabelece para a insuficiência apurada pelos relatórios bimestrais das receitas necessárias a suportar as despesas é o contingenciamento do empenho dos gastos discricionárias, não produzindo qualquer efeito em relação à previsão orçamentária, conforme indicado pela denominação da seção IV desta última lei, onde se insere o referido dispositivo legal:”Da Execução Orçamentária e do Cumprimento de Metas”.  Na verdade, o raciocínio parte da confusão entre a gestão financeira, relativa à execução dos gastos, submetidos à meta fiscal, e cujo instrumento de atuação do Governo são os decretos de contingenciamento, como a abertura de créditos suplementares que, por si só, não envolve a autorização para o aumento das despesas e nem compromete o atingimento da meta primária. A rigor, mesmo em face da abertura de créditos suplementares, se os relatórios bimestrais não apontam a suficiência de receitas para fazer frente às despesas do período, há o contingenciamento das despesas discricionárias, não havendo que se falar em comprometimento da meta primária.  Assim, é abertura de créditos discricionários, por não alterar os limites de contingenciamento, não influencia no atingimento da meta primária, objetivo vinculado à execução financeira e não à programação orçamentária.
Deste modo, nos termos em que os dispositivos análogos ao art. 4º da LOA/15, que nos últimos anos sempre tem estado presentes na lei de orçamento, sempre foram interpretados pelas consultorias jurídicas dos três poderes da República e pelo Tribunal de Contas da União, tal condição estabelecida pela lei de orçamento para a abertura de créditos suplementares por decreto não se traduz em impedimento para a sua efetivação enquanto a meta primária não for cumprida pela integralidade do Governo Federal à luz dos relatórios bimestrais, que não possuem esse papel, mas da necessidade de verificação se a abertura de cada um desses créditos agride ou não a obtenção da aludida meta.
Em outra construção juridicamente inadequada, o parecer aprovado pela Comissão Especial do Senado afirma que o superávit financeiro do ano anterior sempre tem o efeito negativo sobre a meta primária quando aplicável em despesa primária.  Ou seja, na visão do relator, toda a receita decorrente de superávit financeiro deve ser reservada a minorar o déficit primário.  Na verdade, a tese enfrenta dois problemas insuperáveis.  O primeiro decorre do fato da interpretação, que não tem qualquer lastro legal, apoiar-se na confusão entre a gestão financeira e a autorização orçamentária.  Ao contrário do que afirmado no relatório, a abertura de crédito suplementar não altera em nada a meta primária pois não se traduz em autorização para a efetivação do gasto, cujo o instrumento de controle não é o orçamento, mas o decreto de contingenciamento. Em segundo lugar por desconsiderar que quase sempre, no caso dos seis decretos em 99% das situações, a receita decorrente de superávit financeiro e do excesso de arrecadação tem vinculação à despesa específica, seja em função de lei ou de convênios, não podendo ser gasta em outras finalidades conforme determinado no parágrafo único do art. 8º da LRF.  Logo, é proibida a utilização desses recursos para a composição do superávit primário, como parece sugerir o parecer, por destinação se traduziria em violação das finalidades legais desses recursos que foram objeto de superávit financeiro e de excesso de arrecadação.  Por isso, a utilização desses dois instrumentos necessários à abertura de créditos suplementes não leva ao aumento dos gastos do Governo Federal como um todo, o que constitui a preocupação da meta primária, mas ao aumento da qualidade do gasto público por afetá-lo às finalidades das fontes que autorizaram a criação de suas receitas.
Por outro lado, ainda que, como pretende o relatório, a abertura de crédito estivesse condicionada, não à sua compatibilidade material com a obtenção da meta primária, mas à circunstância temporal de queno momento em que o decreto vem ao mundo jurídico exista plena adequação de todo o Governo à meta primária, vale destacar que o art. 4º da LOA/15 prevê uma condição futura e incerta, desrespeito à meta, cujo ocorrência afastaria a eficácia dos decretos de abertura do crédito suplementar.  Ou seja, uma condição resolutória cujo implemento só seria possível verificar ao final do ano, haja visto o caráter anual não só do orçamento, mas da própria meta, nos termos do art. 4º, §1º, da LRF.  Tendo a meta sido modificada pela Lei nº 13.199/15, oriunda do PLN nº 5/15, o seu atingimento em 31/12/15, configurou a ausência de implemento da condição resolutória que afastaria a validade dos decretos.  Com isso, estes são confirmados pelo Congresso Nacional.
Naturalmente não pode o Congresso Nacional, que convalidou os decretos de abertura de créditos suplementares por lei, a partir de transparente discussão parlamentar sobre a necessidade de tal norma para a validação dos atos presidenciais, poucos meses depois, venha a considerar que tais condutas podem fundamentar crime de responsabilidade por falta de autorização legal.
Cumpre destacar que a produção de efeitos da lei que altera a meta em relação a todo o exercício financeiro é matéria que já foi objeto de apreciação pelo TCU, em relação ao julgamento das contas do Presidente da República em 2009.  Naquela oportunidade, a Corte de Contas entendeu os limites de contingenciamento do exercício poderiam se referir à meta que fora objeto de alteração por lei, mesmo que os decretos de contingenciamento já adequados à nova meta tenham sido editados no período entre o encaminhamento do projeto de lei para o Congresso e a sua aprovação.
Como fundamento para justificar a aplicação retroativa da decisão em sentido contrário do TCU, em outubro de 2015, em relação aos decretos editados em julho e agosto do mesmo ano, o relatório procura afastar a aplicação do precedente do TCU de 2009 sobre a situação recente sob o argumento de que o que a Corte de Contas julgou naquela época não era a possibilidade de abertura de crédito suplementar entre a data do encaminhamento do projeto de lei que muda a meta primária e a sua aprovação pelo Congresso Nacional, mas a possibilidade de as regras de contingenciamento refletirem a nova meta proposta, durante a tramitação do projeto de lei a ela relativo.  O argumento não procede, uma vez que a relevância do referido precedente do TCU está na possibilidade da aprovação legal de uma nova meta poder ser aplicada em relação a condicionamentos que a ela subordinam-se durante o tempo que a proposta tramitou no Parlamento. Aliás, se a nova meta retroage para modificar os limites de contingenciamento, fenômeno diretamente relacionado com o atingimento do resultado primário, com muito mais razão é aplicável retroativamente em relação à autorização para abertura de crédito suplementar, que não se refere diretamenteà obtenção de superávit primário.
A segurança jurídica não admite que o TCU, que em 2009 decidiu que a lei que modifica a meta aplica-se em relação a todo o exercício, inclusive no que tange aos atos originados antes da sua aprovação, e em outubro de 2015 modifique o seu entendimento para atingir a situações ocorridas em julho e agosto do mesmo ano.  Mais grave ainda é considerar a possibilidade de caracterizar como criminosa a conduta adotada de acordo com o entendimento jurisprudencial que prevalecia ao tempo de sua prática e que foi referendada pelo próprio Parlamento.
Como se vê, os argumentos apresentados no relatório aprovado pela Comissão Especial do impeachment não possuem fundamento jurídico, nada mais representando do que uma tentativa de criminalizar a gestão da política fiscal em momento de crise, a partir da adoção de novas e inadequadas formas de interpretar os institutos de direito financeiro de modo a, artificialmente, gerar condutas que, em tese, pudessem ser caracterizadas como crime de responsabilidade, em graves violações ao devido processo legal, à segurança jurídica, e à previsibilidade das condutas reprovadas pelo ordenamento.
Assim, a busca do espírito da lei não é implementada pelos recursos que o Direito oferece, mas por uma visão subjetiva do intérprete a respeito da ideia de responsabilidade fiscal que entroniza o equilíbrio orçamentário sobre todos os outros interesses do Estado, inclusive sobre o pagamento de despesas obrigatórias e vinculadas a finalidades específicas.  Em outras palavras, em nome da garantia do pagamento dos encargos da dívida pública em favor dos rentistas, admite-se o inadimplemento do pagamento de salários, de prestações sociais, de compromissos assumidos com fornecedores, procurando limitar pelo Direito as escolhas trágicas de momentos difíceis em favor dos rentistas, criminalizando outras opções mais adequadas aos interesses da população e às opções manifestadas pelo poder soberano do povo. 
Em outro giro, é preocupante verificar que que em nome da previsibilidade do planejamento orçamentário, se adote a possibilidade da criminalização de condutas que não eram previstas como crime no momento em que foram praticadas.  Fica patente que o motivo pelo qual o pedido de impeachment vai avançando no Congresso Nacional em nada se relaciona com as condutas que são formalmente atribuídas à Presidente Dilma, em uma completa fragilização do regime presidencialista e da vontade democraticamente manifestada pelo povo, soberano detentor de todo o poder.
  Porém, como nos ensinou Ronald Dworkin, os direitos devem ser levados a sério, o que, nesse caso, se faz ainda muito mais necessário quando estamos diante da segurança jurídica, da democracia e das garantias constitucionais, elementos pilares do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988, que pôs fim um longo período discricionário quando os direitos não eram levados a sério, como agora parece sugerir o parecer aprovado pela Comissão Especial.
* Ricardo Lodi Ribeiro é Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ

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