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terça-feira, 31 de maio de 2016

Senso comum e conservadorismo: o PT e a desconstrução da consciência, por Mauro Iasi.

Senso comum e conservadorismo: o PT e a desconstrução da consciência

Um dos mitos da estratégia democrática popular é o acumulo de forças. A ideia geral é que por não haver condição de rupturas revolucionárias, nem correlação de forças por mudanças estruturais no sentido do socialismo, a democratização da sociedade e as reformas graduais iriam criando as bases políticas para o desenvolvimento gradual de uma consciência socialista de massa.
No 5o Encontro Nacional do PT em 1987, o problema é colocado da seguinte maneira: certos companheiros não distinguem entre as ações ligadas ao acumulo de forças daquelas voltadas diretamente à conquista do poder, não entendendo, segundo o juízo dos formuladores, a diferença entre o “momento atual, (…) em que as grandes massas da população ainda não se convenceram de que é preciso acabar com o domínio político da burguesia, e o momento em que a situação se inverte e se torna possível colocar na ordem do dia a conquista imediata do poder”.
O resultado desta incompreensão seria que os “pretensamente revolucionários” não seriam entendidos pela população e pelos trabalhadores contribuindo, assim, de fato para a “desorganização das lutas” ficando condenados a “pequenos grupos conscientes e vanguardistas”.
Bem, o centro deste argumento que contrapõe os pretensos revolucionários aos verdadeiros seria que estes últimos teriam a capacidade de dialogar com a consciência imediata das massas e dos trabalhadores criando a mediação necessária para elevá-la à compreensão da necessidade da conquista do poder.
Nada como uma década depois da outra para julgarmos as pretensões anunciadas. A prova da validade ou não de tal formulação deve ser buscada na seguinte pergunta: após dez anos de governo petista os trabalhadores estão hoje (considerando como ponto de referencia 1987 e o 5o Encontro do PT) mais organizados e se desenvolveu uma consciência de classe que coloca de forma mais evidente a necessidade de conquista do poder “acabando com o domínio político da burguesia”?
Comecemos pela expressão maior dessa estratégia e seu líder incontentável: Luis Inácio Lula da Silva. Como operário ele expressava no início de sua trajetória política os elementos evidentes do senso comum, nos termos gramscianos, ou de uma consciência reificada nos termos de Lukács. Em seu discurso de posse no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema em 1975, dizia que vivíamos em um momento “negro” para o destino dos indivíduos e da humanidade, porque tínhamos “de um lado” o homem “esmagado pelo Estado, escravizado pela ideologia marxista, tolhido nos seus mais comezinhos ideais de liberdade”, e de outro lado, tínhamos o homem “escravizado pelo poder econômico explorado por outros homens” (Discurso de Lula na posse do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema, 1975).
As mudanças na consciência dos trabalhadores não vêm da autodescoberta ou do esclarecimento, são o resultado de sua inserção na luta de classes. As lutas operárias do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 colocariam novos elementos à consciência deste operário em construção.
Em seu discurso na 1a Convenção Nacional do PT em 1981, Lula já diria: “O PT não poderá, jamais, representar os interesses do capital”.  Em outra parte do mesmo discurso o líder em formação afirmaria:
“Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já sabiam disso muito antes de terem sequer a ideia da necessidade de um partido (…). Os trabalhadores são os maiores explorados da sociedade atual. Por isso sentimos na própria carne e queremos, com todas as forças, uma sociedade (…) sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista”
(
Discurso de Lula na 1a Convenção Nacional do PT, 1981).
Os trabalhadores, no momento de fusão que os constituía em classe contra o capital, expressavam a difícil passagem da consciência reificada à consciência em si, apontando já neste momento os germes de uma consciência para si, ou seja, mais que a consciência de uma classe da ordem do capital, mas uma classe portadora da possibilidade de uma nova forma societária para além da sociedade burguesa.
As lutas operárias, assim como o retomar de um conjunto muito amplo de lutas sociais, tornaram possível um salto organizativo que resultou na formação de um partido e, depois, de uma central sindical, da mesma forma que se alastra pela sociedade a retomada de associações, movimentos sociais e lutas das mais diversas.
Façamos um corte e pulemos para uma entrevista em que Lula recebe o repórter do programa norte americano 60 minutes por ocasião do final de seu segundo mandato como presidente.
Nesta entrevista o repórter norte americano pergunta ao ex-presidente:
“Havia empresários, no Brasil e no exterior, muito preocupados com sua posse, que pensavam que era um socialista e que daria uma virada completamente à esquerda. Agora estas pessoas são seus maiores apoiadores. Como isso aconteceu?”
E Lula responde:
Veja, eu de vez em quando brinco que um torneiro mecânico com tendências socialistas se tornou presidente do Brasil para fazer o capitalismo funcionar.  Porque éramos uma sociedade capitalista sem capital. E se você olhar para os balanços dos bancos neste ano (final do segundo mandato de Lula) verá que nunca antes os Bancos ganharam tanto dinheiro no Brasil como eles ganharam no meu governo. E as grandes montadoras nunca venderam tantos carros como no meu governo. Mas os trabalhadores também fizeram dinheiro.
O repórter um tanto surpreso pergunta: “Como você consegui fazer isso?”. E Lula responde: “Eu descobri uma coisa fantástica. O sucesso do político é fazer o que é óbvio. É o que todo mundo sabe que precisa ser feito, mas que alguns insistem em fazer diferente”.
Notem bem, Lula expressava entre 1975 e 1987 o movimento da consciência de classe que passava de uma determinação da alienação à consciência de classe em si. Da mesma forma fica manifesto na consciência de sua liderança mais expressiva o caminho de volta à reificação.
O problema é que a consciência expressa na liderança é representativa do resultado político da estratégia por ele implementada no conjunto da classe e em sua consciência. Como a consciência em seu movimento é síntese de fatores subjetivos e objetivos, a ação política da classe conformada por uma estratégia incide diretamente sobre a classe e sua formação enquanto classe.
Em sua análise sobre a social-democracia, Adan Przeworski (Capitalismo e Social-democracia, São Paulo: Cia das Letras, 1989) afirma que:
“A classe molda o comportamento dos indivíduos tão-somente se os que são operários forem organizados politicamente como tal. Se os partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como “as massas”, o “povo”, “consumidores”, “contribuintes”, ou simplesmente “cidadãos”, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe.” (Przeworski, 1989:42).
O mito do acumulo de forças só se sustenta renovando-se ao infinito, isto é, nunca estamos prontos, nunca há a correlação de forças favorável, nunca o nível de consciência das massas e dos trabalhadores chega à necessidade da conquista do poder. O problema é que agindo desta forma criam-se as condições para que de fato nunca estejam dadas as condições.
No entanto, a questão é ainda mais séria. Os defensores do acumulo de forças acreditam piamente que os patamares de consciência não regridem, isto é, a consciência de classe desenvolvida nos anos oitenta e noventa ficaria ali no ponto onde chegou e iria se tornando massiva em consequência do andamento positivo das ditas reformas. Nesta leitura, se ainda não temos uma consciência revolucionária, que já coloca a necessidade da conquista do poder, teríamos a generalização gradual de uma consciência em si, digamos democrática, disposta a manter o patamar das conquistas e reagir quando estes estão ameaçados.
Não é o que verificamos. A consciência expressa na liderança revela que o conjunto da classe retoma um patamar que Sartre denominava de serialidade e ao qual corresponde a consciência reificada. Esta é a consciência da imediaticidade, da ultrageneralização, do preconceito, da perda do capacidade de vislumbrar, ainda que potencialmente,  a totalidade.
Presos a esta forma de consciência, os trabalhadores não agem como uma classe nos limites da ordem do capital em luta contra suas manifestações mais aparentes e, pior, eles a naturalizam e se comportam como agentes de sua reprodução e perpetuação desta ordem.
O senso comum reflete este movimento e é no cotidiano que ele se manifesta. Se podíamos falar de um senso comum progressista, ou tendencialmente de esquerda, no contexto de intensificação da luta de classes na crise da autocracia burguesa e no processo de democratização, hoje no quadro de uma democracia de cooptação consolidada temos um senso comum que tende a ser conservador e, por vezes, reacionário.
Permitam-se um exemplo caseiro, mas creio que significativo. Lincoln Secco escreveu um texto sobre a situação da Coréia do Norte em nosso blog (Kim Jong-un 17/04/2013). Um comentador simplesmente respondeu com um direto “vai morar lá”, mas deixemos este de lado. Destaco dois comentários mais substanciosos e que revelam uma forma de compreensão do mundo atual e seus dilemas:
“Olha, até pouco tempo tinha raiva dos EUA pela sua indústria cultural, sua arrogância, sua intromissão em assuntos de outras nações, etc. Entretanto, depois de conhecer o país e seu povo, mudei completamente minha concepção. Os caras são os “caras” porque trabalham duro, estudam bastante e são muito educados e politizados. O fazem mundo afora é conhecido na natureza como a lei do mais forte. Queria eu morar num país que dita as regras aos outros e ninguém tira farinha. Além disso, em pleno século XXI, os norte coreanos são tratados como um rebanho e não como cidadãos livres. Abaixo o apoio ao totalitarismo, como ocorre por lá!!!”
Um outro, mais duro, afirma:
“kkkkkkkkkkkkkkkkk . País sitiado? por quem? Paranoicos, malucos mesmo, todos eles, o “estadista mirim”, o “professor” que assina esta bobagem. Veja bem, a lição de história pode até ser boa, talvez o que o trai sejam as convicções políticas… o tempo passou e eles não perceberam… O Presidente dos Estados Unidos, já é Obama, viu pessoal…Ameaça do Ocidente? Para quem? Despertem deste “sono” louco, sejam felizes, ou não, mas, deixem de loucura! Vivemos num mundo diferente do das “cartilhas” que vocês estudam!!!”.
Não vou entrar no mérito, não guardo nenhuma simpatia pela forma política norte coreana, mas em seu núcleo central o texto do companheiro Lincoln, apenas afirma que existe um espaço de soberania dos Estados nacionais e que estes tem direito de se defender, o que o leva a constatação que não são eles que provocam e atacam, mas ao contrário, estão sendo provocados por “exercícios militares” que partem dos EUA. Como explicar tal reação?
Não vai aqui nenhuma consideração aos comentadores, eles tem direito de expressar sua opinião, concordemos ou não. Um blog tem de tudo e tais comentários o deixam ainda mais interessante. O que nos preocupa é que ele revela, e isto é uma virtude, um elemento do senso comum que indica uma preocupante guinada conservadora, mesmo em relação a valores mais elementares, e isso em um leitor de um blog de uma editora com uma linha claramente de esquerda em um pais que está há dez anos “acumulando forças”.
Podemos ver este fenômeno como um resquício ou uma exceção em um senso comum que tende a ser mais progressista. Infelizmente eu acredito que não. A forma do senso comum é resultado de toda a história da formação social, sua resultante cultural, a permanência das relações sociais de produção burguesas, mas também do processo político mais recente que como toda práxis pode superar ou reforçar o existente. No caso reforçou.
Lembrando ainda Przeworski, sabemos que a chamada organização das massas precisa ser compreendida de forma mais profunda. Não há uma relação direta entre organização e ação, é possível organizar para apassivar. Diz o autor:
“Os líderes tornam-se representantes. Massas representadas por lideres – eis o modo de organização da classe trabalhadora no seio das instituições capitalistas. Dessa maneira, a participação desmobiliza as massas” (Przeworski, 1989: 27).
É triste.

***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002).







Washington lança o seu ataque contra BRICS. A desestabilização do Brasil e Argentina, por Paul Craig Roberts.




Enviado por Cleber
Artigo de Paul Craig Roberts (para quem não conhece, conservador, escreve no Wall Street Journal e foi Secretário Assistente do Tesouro no governo Reagan)
Dr. Paul Craig Roberts
Tendo removido a presidente reformista da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, Washington agora se livra da presidente reformista do Brasil, Dilma Rousseff.
Washington usou um juiz federal para pedir a Argentina para sacrificar seu programa de reestruturação da dívida, a fim de pagar para os fundos abutre americanos o valor total de títulos argentinos que os fundos abutre tinham comprado por alguns tostões sobre o dólar.
Estes abutres foram chamados de “credores” que tinham feito “empréstimos”, independentemente do fato de que eles não eram credores e não tinha feito nenhum empréstimo. Eles eram oportunistas atrás de dinheiro fácil e foram usados por Washington para se livrar de um governo reformista.
O Presidente Kirchner resistiu e, por isso, ela teve que ir. Washington inventou uma história que Kirchner encobriu um suposto ataque a bomba iraniano em Buenos Aires em 1994. Esta fantasia implausível, para o qual não há nenhuma evidência de envolvimento iraniano, foi alimentado a um dos agentes de Washington no escritório do procurador do Estado, e um evento duvidoso de 22 anos atrás foi usado para tirar Cristina Kirchner do caminho do saque americano da Argentina.
No Brasil, Washington usou insinuações de corrupção para obter a cassação da presidente Dilma Rousseff pela Câmara. Evidências não são necessárias, apenas alegações. Não são muito diferentes de “armas nucleares iranianas”, “armas de destruição em massa”, de Saddam Hussein “uso de armas químicas,” de Assad ou, no caso de Dilma, meramente insinuações. O Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, Luís Almagro, observa que Rousseff “não foi acusada de nada.” As elites apoiadas pelos americanos estão simplesmente usando o impeachment para remover um presidente que eles não podem derrotar eleitoralmente.
Em suma, este é o movimento de Washington contra os BRICS. Washington está se movendo para colocar no poder político um partido de direita que Washington controle, a fim de encerrar as crescentes relações do Brasil com a China e a Rússia.
A grande ironia é que o projeto de impeachment foi presidido pelo presidente corrupto da câmara inferior, Eduardo Cunha, que recentemente descobriu-se ter escondido milhões de dólares em contas bancárias suíças secretas (talvez o seu pay-off de Washington) e que mentiu sob juramento quando negou ter contas bancárias estrangeiras. Você pode ler a história sórdida aqui:
Kirchner e “crimes” de Dilma são os seus esforços para que os governos da Argentina e do Brasil representam a Argentina e os povos brasileiros, em vez das elites e Wall Street. Em Washington estes são crimes graves, e Washington usa as elites para controlar os países da América do Sul. Sempre que os latino-americanos elegem um governo que os representa, Washington derruba o governo ou assassina o presidente.
Washington está perto fazer a Venezuela voltar para o controle da elite espanhola aliado com Washington.
Os presidentes do Equador e da Bolívia também são alvos. Uma das razões pelas quais Washington não permitirá que seu cãozinho britânico honre o asilo do Equador concedido a Julian Assange, é que Washington espera ter seu próprio agente de volta como presidente do Equador, em que o asilo de Assange será revogada.
Washington sempre bloqueou reformas na América Latina. Povos latino-americanos continuarão a ser servos americanos até que eles elejam governos por uma tal maioria que os governos possam exilar as elites traidores, fechar as embaixadas dos EUA, e expulsar todas as empresas americanas. Cada país latino-americano que tem uma presença americana não tem outro futuro além da servidão.

A cultura do estupro vem de séculos e precisa ser combatida, por Roberto Tardelli.




Roberto Tardelli
Tentar escrever é tentar superar o asco, a repugnância, o horror. Não pareceria ser possível que seres humanos fizessem o que fizeram, não pareceria possível que um homem pudesse se excitar sexualmente com uma mulher, na verdade, uma adolescente, que sangrava na vagina, onde a penetraria, ele e outros trinta. Trinta. Trinta. Trinta.
Um deles ou dois deles ou vários deles filmaram e postaram em rede social uma cena que exibia orgulho pela façanha sexual e pelo desprezo à vítima. Na foto, exibida pelos jornais, o homem estava de com a língua lascivamente para fora, mostrando a moça desfalecida e sangrando. Uma legenda dele para o que seria impublicável: “abri novo túnel para o rio.” O sarcasmo cruel marcava a absoluta e inteira alienação deles com a dor e o desespero da jovem, que perambulou, feito zumbi, por pelo menos três dias depois de estuprada por aquela turba.
Aprendi que os agressores sexuais – excetuados casos pontualíssimos – não são doentes mentais. Possuem profissão, são insuspeitos membros de clubes de serviço, educados, camaleônicos. Tão camaleônicos que a quase totalidade das agressões sexuais são praticadas por pessoas conhecidas da vítima, pessoas em quem ela confia. Quando se trata de criança, são pessoas em quem ela confia absolutamente, pais, avôs, irmãos, padrastos, aqueles que teriam o dever de protegê-la. Quando adulta, são pessoas em quem ela deposita confiança. São predadores que se disfarçam, que se movem silenciosamente.
Por essa razão, além de ser de uma atroz estupidez o julgamento pela roupa que estava usando, pela sensualidade que exibia, pelo ambiente masculino que frequentava, a revelar uma misoginia em estado bruto, é também uma demonstração absoluta de desconhecimento de como esses criminosos agem. Esteja como estiver, coberta da cabeça aos pés ou sensualmente vestida, a vítima jamais saberá que seu estuprador está ali à sua volta. Ele não avisa sobre o ataque, ele não demonstra sinais de que irá atacar, ele não ameaça previamente a vítima; muito pelo contrário, ele age como a dar a ela a sensação de que está em segurança, com o intuito de diminuir as defesas naturais de todos e todas nós.
Eu digo, sem qualquer receio de errar, que a vítima somente conhecerá seu estuprador quando estiver sob o domínio aterrorizante dele; antes disso, será impossível a ela saber, pela razão clara de que, caso soubesse, se afastaria, procuraria ajuda ou companhia mais segura ou o denunciaria. O agressor atrai a vítima para uma armadilha, da qual dificilmente ela escapará, seja pela supremacia física, seja pelo emprego de arma, seja pelo terror incutido, a vantagem é toda do agressor. Por mais óbvio que seja, é preciso dizer: o estuprador sabe quem vai atacar; a vítima não sabe que ela será atacada por aquele homem gentil e atencioso, que lhe prometeu uma carona, que lhe ofereceu uma taça de vinho. Julgar a vítima não é apenas um preconceito odioso, mas uma ignorância sem tamanho.
Nossa cultura da caça do homem à mulher vem de séculos. Câmara Cascudo, nosso maior folclorista, creio tenha sido ele, escreveu que a expressão “jogar a negra”, que utilizamos no jogo, por exemplo, tem uma origem perversa: vem dos tempos da escravidão, em que os senhores da fazenda, que ganhassem a terceira partida no baralho, tiram direito à “negra”, isto é, de manter relações sexuais com uma escrava que escolhesse. Em outras palavras, estuprá-la.
No Código Penal de 1940, que vige até hoje, retalhado, mas sobrevivo, trazia uma figura permissiva, a “presunção de inocência”, que pertencia a toda mulher com menos de catorze anos. Manter relações sexuais com uma menina de doze anos era crime de estupro, mesmo que ela consentisse. Uma meia-verdade, porque todos os juristas, todos sem exceção que tenha conhecido, diziam que essa presunção era relativa, admitindo prova em contrário. Isso significava dizer que a adolescente seria “julgada”: primeiro, era preciso estabelecer se ela era ou não era “inocente”, algo fácil de se derrubar, bastando ao agressor que trouxesse uns amigos do peito que jurassem ao juiz que ela era uma “vadiazinha precoce” (expressão que vi usada no processo). Se não fosse “inocente”o bastante, dentro dos padrões morais que lhe seriam exigidos, ter sido ela estuprada nada significaria.
Um outro crime havia, corrupção de menores. Esse, particularmente perverso, teoricamente punia aquele que, em suma, fizesse de uma adolescente um objeto de satisfação sexual. Tanto lá como aqui, tinha-se como verdade consensual que somente poderia ser vítima de corrupção a jovem que fosse “pura e casta”; se já fosse eventualmente pervertida e “iniciará nas coisas do sexo”, crime algum haveria. As aspas eu as faço em homenagem aos penalistas da época.
Não foi à toa que o Brasil entrou na rota do turismo sexual. A menina, menor de dezoito anos, que se prostituísse, já estava “corrompida”e, assim, não tinha proteção legal. Era apenas imoral manter relações sexuais com ela.
No Código Civil de 1916, a mulher que “desonrasse a casa paterna” era passível de deserdação por indignidade. Por desonra entendia-se uma vida sexual ativa, mesmo se fosse solteira ou desimpedida de casar-se. Aliás, se casada fosse, ela não poderia recusar-se a manter relações sexuais com seu marido, que poderia exigir, sim, que ela cumprisse o dever do “débito conjugal”. Diziam que o marido que constrangesse a esposa ao débito conjugal, agia em exercício regular de direito. Nojento?
O homem poderia devolver a esposas seus pais, caso descobrisse, na viagem de núpcias que ela não fosse virgem, como se houvesse uma espécie de vício redibitório. A virgindade era uma exigência social que colocava as mulheres sobre o fio da navalha do desejo. Chico Buarque imortalizou: “desse a moça um mau passo, quanto horror e desdém”. Ela era entregue pelo pai, virgem, a seu marido, homem a quem se permitia a experimentação sexual, tendo ela o dever de aceitar sempre as relações sexuais que ele lhe impusesse. Seu pai a conduzia ao lobo.
Para que se tenha uma ideia: o estupro não era um crime contra a pessoa (ainda não é), mas era um crime “contra os costumes”. Sim, contra a moral e os bons costumes, que era desafiada pela mulher sensual, pela mulher que se permitia a frequentar ambientes masculinos, enfim, a mulheres “que não se davam ao respeito”. Horrendo?
Essa cultura do estupro foi forjada ao longo do tempo. Curiosamente, sempre a pena destinada ao estupro foi alta e sempre se soube que tratamento espera ao condenado por estupro na cadeia. Todavia, um estupro a cada onze minutos se comete no Brasil. A pena alta e o tratamento barbarizante no cárcere não inibem o crime. Pode parecer um paradoxo, mas é uma dicotomia apenas aparente. O grande drama é que “aceitamos” o estupro e nos recusamos a entendê-lo como crime contra a pessoa, contra a integridade corporal, psicológica e emocional da pessoa.
Ainda “julgamos”a vítima e os posts relaxados pelos imbecis que responsabilizaram a jovem pela barbárie que sofreu são a prova disso. De outro lado, ensinar as mulheres a evitar o estupro, a prevenirem-se elas próprias de seu agressor, perdoem-me a franqueza, é inútil, a menos que queiramos espalhar uma sinistrose que impedirá o amor, a alegria, o contato físico, a paquera, o “ficar”.
É preciso que ensinemos nossos meninos, desde crianças, a respeitar a mulher, é preciso romper de vez o cerco machista e assegurar a igualdade de gênero, como direito público subjetivo das mulheres, é preciso não justificar os agressores, é preciso não perdoar os agressores, é preciso não tolerar os agressores, sob nenhuma hipótese, sob nenhum argumento.
É preciso que vomitemos quando um ator medíocre vai a um programa de televisão, entrevistado por outro medíocre e conte, orgulhoso, que “comeu” uma mãe de santo, estuprando-a e seja esse mesmo ator recebido pelo Ministro da Educação, a quem levou “sugestões”. Seria preciso que esse um fosse preso pelo estupro que confessou ou que fosse posto em absoluto ostracismo, que fosse ele o exemplo do mau caráter, do canalha, daquilo que nossos filhos jamais poderiam se tornar.
Minha vontade de ver esses trinta estupradores presos só é menor que meu desejo que essa moça consiga reerguer-se e levar sua vida, que encontre em alguém calor e conforto, acolhimento e cumplicidade, que o tempo a faça convencer-se que viver vale a pena é que o amor, bem, por mais difícil que lhe seja acreditar, ainda existe.
E pulsa.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Cultura do estupro e a máfia fraterna dos homens, por Maurício Ayer.

160530-Estupro
De como não só o delegado, mas também os “homens de bem”, cândidos privilegiados, sustentam o sorriso de escárnio dos estupradores
Por Maurício Ayer
A República do Escárnio, como bem definiu o [Vladimir] Safatle ao tratar dos sitiadores do governo federal, está toda no sorriso de pop star do estuprador e divulgador do vídeo expondo a menina agredida ao sair de seu depoimento na delegacia.
A polícia diz ter dúvidas se foi estupro e não achou que a divulgação do vídeo de uma menina de 16 anos com a genitália sangrando dê ensejo a um flagrante. Não entendo de direito criminal, não sei quais são todos os crimes implicados neste ato, mas a polícia obviamente sabe. E deu plena sustentação ao sorriso escarnecedor deste indivíduo.
Mas é outra sustentação ao sorriso do estuprador que nós homens precisamos enfrentar. Ele só sorri e acena para as câmeras porque chegará em sua casa, em sua comunidade, em sua rua, e rirá junto com outros muitos homens. Imagino o que é viver numa comunidade dessas, onde os estupradores são tratados não apenas como pessoas normais, mas até como pop stars, gente que de repente ficou famosa porque  ousou ~ ir além do ~ ordinário ~, que seria estuprar, e ~ lacrou nas redes ~ mostrando e falando a escrotidão mais inacreditável. Que cara foda!


E o que o conceito de ~ cultura do estupro ~ mostra é que essa comunidade sitiada pelo crime é esta aqui, a minha comunidade. Eu vivo nessa comunidade que pratica cotidianamente o crime. Se alguém se sente à vontade de ser violento, verbal, física ou simbolicamente, ao meu lado é porque sou seu aliado, seu sorridente cúmplice. É porque fui eu mesmo violentado em minha humanidade, que preciso recuperar não só para os atos extremos mas para toda e qualquer violência. Se as pequenas violências não fossem toleradas e estimuladas, as grandes não seriam possíveis.
O único caminho que nos resta é o de agir ativamente pela destruição desse estado violento, do qual muitos de nós se aproveitam e do qual podemos ser cândidos beneficiários – das vantagens, dos melhores pagamentos, de ter mais voz nos espaços, de não ser o objeto direto e imediato da violência física.
Não se trata de ter vergonha de ser homem. É ter vergonha na cara. É ter o orgulho de ser homem que enfrenta o seu desafio histórico: o de desmantelar essa organização criminosa, essa máfia – fraterna – em que fomos metidos e que age em nós, por nós.

Democracia e Capitalismo, divórcio definitivo, por Ladislau Dowbor.

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Num livro que diz muito ao Brasil, Wolfgang Streeck expõe mecanismos que permitiram à aristocracia financeira controlar Estado e mídia. Saída: assumir a separação, pensar numa política livre do capital
Por Ladislau Dowbor | Imagem: Frida Kahlo, Última Ceia

RESENHA DO LIVRO:Buying Time – The delayed crisis of democratic capitalism, de Wolfgang Streeck – Verso, Londres, New Left Books, 2014 (original: Berlin, 2013)
Streeck traz na sua mensagem central a nossa evolução para um capitalismo sem democracia. Segundo ele, não vivemos o fim do sistema, mas o ocaso do capitalismo democrático. Por meio do endividamento do Estado e de outros mecanismos, gera-se um processo em que os governos, obrigam-se cada vez mais, a prestar contas ao “mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, o que conta, para a sobrevivência de um governo, já não é sua capacidade de responder aos interesses da população que o elegeu – e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses financeiros, sentem-se suficientemente satisfeitos para declará-lo “confiável”. De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro-resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política: (81)
Estado do cidadão
Estado do mercado
Nacional
Internacional
Cidadãos
Investidores
Direitos Civis
Direitos Contatuais
Eleitores
Credores
Eleições (periódicas)
Leilões (contínuos)
Opinião Pública
Taxas de Juros
Lealdade
“Confiança”
Serviços Públicos
Serviço da Dívida
Naturalmente, num dos casos, o Estado financia-se através dos impostos; no outro, do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80). A opinião pública preocupa-se com a qualidade do governo; mas para o que chamamos misteriosamente de “os mercados”, o que importa é a “avaliação de risco”, as probabilidades de este mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida. A opção de sobrevivência política pende cada vez mais para o segundo lado. “Ao tentar entender o funcionamento do estado democrático regido pela dívida (democratic debt state), ficamos logo surpresos que ninguém parece saber quão importante é o ‘estado do mercado’ (Marktvolk).”(82)
Esta interpretação casa de maneira impressionante com o caso brasileiro. Na famosa Carta de Junho, de 2002, o então candidato Lula comprometeu-se a “respeitar os contratos”. Estive na leitura deste documento. “Vou ler esta carta”, disse Lula ao colocar o óculos, “porque quero ser eleito presidente da República”. Ou seja, ia respeitar os interesses financeiros. Os avanços da sua gestão foram indiscutíveis ao promover os interesses do andar de baixo do país, gerando uma dinâmica impressionante de transformações. Mas os juros foram se acumulando, e quando Dilma, na fase final do primeiro mandato, passou a reduzir os juros da dívida pública, os juros para pessoas jurídicas e para pessoas físicas, buscando restabelecer o equilíbrio financeiro indispensável, começou a guerra total.
Os interesses financeiros viam-se eles mesmos intocáveis, e partiram para recuperar o poder. “Em relação ao seu Marktvolk, ou seja, aos mercados, “o governo precisa cuidar de ganhar e preservar a sua confiança, ao assegurar de maneira conscienciosa o serviço da dívida que lhes deve e ao fazer parecer seguro que pode fazê-lo e continuará a fazê-lo no futuro também.”(81) As impressionantes mamas da dívida pública devem ser mantidas, ou não haverá governo. Podemos ter democracia, conquanto esta democracia sirva dominantemente aos mercados. E quando, por esgotamento de recursos ou excessivo acúmulo de dívidas, é preciso escolher, ou o governo se dobra aos mercados, ou termina a experiência democrática de convívio entre os dois senhores.
Streeck tem em mente as dinâmicas europeias, mas é impressionante como o sistema se universalizou. Ao expor o que se exige dos governos para que mantenham a confiança dos mercados, e em consequência sobrevivam, o autor traça um excelente resumo do que hoje vivemos. “Os cortes de despesas propostos afetarão essencialmente pessoas cuja baixa renda torna-as mais dependentes de serviços públicos. O emprego será reduzido ainda mais, e os salários no setor público serão espremidos, o que será acompanhado de novas ondas de privatização, bem como de diferenças salariais mais amplas. O acesso aos serviços públicos universais – por exemplo, nos setores de saúde e de educação – será crescentemente diferenciado dependendo da capacidade de compra das diferentes clientelas. No conjunto, o corte de gastos e a redução dos níveis de atividade governamental reforçarão o mercado como principal mecanismo de distribuição de oportunidades na vida, estendendo e complementando o programa neoliberal de desmantelamento do estado de bem-estar.”(119)
As resistências tornam-se difíceis, em particular pela própria globalização, que gera instituições “isoladas da pressão eleitoral”: “As políticas domésticas tornam-se mediadas e neutralizadas ao se trancar os estados-nação em acordos supranacionais e regimes regulatórios que limitam a sua soberania”.(115) Por mais que seja voltado essencialmente para as dinâmicas da Europa, o estudo de Streeck mostra claramente a que ponto avançamos na globalização, e a que ponto se estendeu a visão chapa-branca do poder financeiro. Ela impõe ao mundo, e com raras exceções em qualquer país, o mesmo esquema: o estado transforma-se no sistema contemporâneo de captura dos recursos da sociedade, desviando nossos impostos por meio do sistema público.
Convencer governos de que é mais simples aumentar a dívida do que enfrentar a guerra contra o aumento dos impostos é relativamente fácil. “Os cidadãos passam a esperar cada vez menos do estado, e portanto se veem obrigados a desembolsar cada vez mais por serviços privados, tornando-se mais relutantes em pagar impostos.” (124) O processo de exploração dos trabalhadores, para gerar a mais-valia que conhecemos, não desapareceu, e continua válido nas empresas. Mas a mais-valia financeira, captada por meio de mecanismos da dívida, simplificou a tarefa dos grupos dominantes de sempre. Com isto, é o próprio governo que elegemos que passa a transferir para “os mercados” o dinheiro dos nossos impostos. Esta “terceirização” da extração da mais valia, em que o sistema financeiro utiliza a máquina do estado, coloca os governos em conflito direto com a sua missão constitucional de responder à vontade cidadã manifestada pelo voto. Mas se não o fazem, o que podem pesar meros 54 milhões de votos?
O que sobra da democracia? O poder dominante dos gigantes corporativos é exercido por pessoas não submetidas a voto. Os políticos são eleitos, cada vez mais, com o dinheiro das mesmas corporações. Os grupos de mídia já pertencem, com frequência, às corporações; mas de toda forma dependem vitalmente da publicidade que estas contratam. O judiciário é cada vez mais privatizado, com a expansão do sistema dos settlements (acordos) judiciais que colocam as corporações ao abrigo da lei: e os juízes não são eleitos. A democracia realmente existente constitui hoje uma chama frágil que sobrevive neste ambiente de maneira cada vez mais precária. Não se trata apenas de resgatar a política econômica – trata-se de resgatar a própria democracia.
Os desafios são claros: se este sistema “não pode mais sequer produzir a ilusão de crescimento com equidade, chegará o tempo em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de se separar…A alternativa ao capitalismo sem democracia é democracia sem capitalismo, ou pelo menos sem o capitalismo que conhecemos” (173), escreve Streeck. Hoje, prossegue ele, “democratização deveria significar construir instituições por meio das quais os mercados possam ser trazidos de volta para o controle da sociedade: mercados de trabalho que deixam espaço para a vida social, mercados de produtos que não destroem a natureza, mercados de crédito que não geram promessas insustentáveis em massa. Mas antes que algo deste tipo possa realmente entrar na agenda, no mínimo serão necessários anos de mobilização política, e a continuidade da ruptura da ordem social que hoje se aprofunda diante dos nossos olhos”.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Na “guerra de quarta geração”, o inimigo somos nós, por Ignácio Ramonet.


“Hoje, os cidadãos do mundo somos vigiados e, portanto, controlados. A internet revolucionou totalmente os campos da informação e da vigilância, que agora é onipresente e imaterial. Disso beneficiam-se as cinco megaempresas privadas que dominam a rede: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Elas se enriquecem com a exploração de nossos dados pessoais, que transferem continuamente à NSA, a mais secreta e potente das agências norte-americanas de informação.
Em “O Império da vigilância”, Ramonet descreve a aliança sem precedentes entre o Estado, o aparato militar de segurança e as grandes indústrias da internet, que deram origem a este imperio de vigilância. Noam Chomsky e Julian Assange completam a tese com suas opiniões”
A seguir, um fragmento do quarto capítulo:
Uma guerra da quarta geração
Todas as lei do tipo Patriot Act, que pisoteiam o direito ao anonimato e a vida privada de milhões de pessoas, e que foram qualificadas como “liberticidas” por inúmeras organizações de defesa pelo direitos humanos, são consequência de uma nova doutrina militar: da “guerra permanente e sem limites”. Para as autoridades norte-americanas em primeiro lugar, mas também, e pouco a pouco, para os governos de outros países como França e Espanha, o peso da ameaça de terroristas e de movimentos insurgentes não estatais, camuflados entre a população urbana, obriga a alcançar um nível mais sofisticado de informação mediante tecnologias de ponta. “Em nossa luta contra o terrorismo – declarou, por exemplo, o presidente Obama – necessitamos dispor de todos os instrumentos eficazes.”
Segundo está doutrina, a guerra assimétrica contemporânea, sobretudo contra o fenômeno jihadista (tanto da Al Qaeda como, mais recentemente, o Estado Islâmico), contra suas “células dormentes”, e, sobretudo, contra figura do “lobo solitário”, reforça drasticamente o uso permanente de técnicas militarizadas de vigilância na vida cotidiana.
Efetivamente, como explica o geógrafo britânico Stephen Graham, esta “guerra da quarta geração” desenvolve-se cada vez mais em espaços urbanos: terminais de transporte, estádios, teatros, supermercados, oficinas, edifícios, shoppings, corredores do metrô, suburbios industriais, aeroportos… “Deste modo, a cidade encontra-se no centro das preocupações das autoridades responsáveis pelas ações militares e de segurança, uma vez que é o espaço onde os poderes ocidentais são vulneráveis como campo de batalha na luta contra os inimigos do Ocidente.”
Insetos voadores robotizados
A obra de Ramonet, em edição argentina
A resposta das autoridades, em consequência, tem consistido em multiplicar as estrategias de vigilância e controle recorrendo a novas ferramentas de espionagem, em grande parte acionadas a distância: perfil dos indivíduos, vigilância dos lugares, comprovação dos comportamentos etc.; empregando todas as tecnologias de perseguição disponíveis: vídeo, scanner biométrico, satélites, drones, câmeras infravermelhas, e outras técnicas de captação de dados: pegadas digitais, leitura de íris, comparação de DNA, reconhecimento de voz, do rosto e do peso, medição da temperatura via laser, análises comparadas do odor e da forma de andar, insetos voadores robotizados (ou “dronizados”) que penetram o interior dos edifícios para observar o inimigo e seu armamento…
Tudo isto supõe uma autêntica invasão da vida privada dos cidadãos por uma serie de detetores, geralmente invisíveis e conectados, com capacidade para esquadrinhar todos os atos e gestos. Chris Anderson, antigo redator-chefe da revista e e fundador do 3Drobotics, uma empresa de fabricação de robôs, acredita que esta tendência continuará e se acelerará. Prevê que, num futuro próximo, com a proliferação de drones, “haverá milhões de câmeras voando acima de nossas cabeças”. Estes drones se basearão nos padrões de vida: se uma pessoa apresenta “características de vida” semelhantes “visualmente” às de uma pessoal considerada “perigosa”, ela será marcada e eliminada. Nunca se conhecerá seu nome; a identidade importa menos que a eliminação física de alguém que se parece com um “terrorista”. Caminhamos assim para um mundo semelhante ao que imaginou, em 1987, o romancista britânico Arthur C. Clarke em seu relato de ficção 2061: Odisseia três. A ação desenvolve-se na “era da transparência”, num mundo onde a paz e a ordem estão garantidas por uma permanente vigilância universal mediante enxames de satélites.
Sociedades de controle
As autoridades nos dizem: “Haverá menos privacidade e menos respeito pela vida particular, mas haverá mais segurança”. Mas em nome desse imperativo instala-se, de maneira furtiva, um regime de segurança que podemos classificar como “sociedade de controle”. Em seu livro “Vigiar e Punir”, o filósofo Michel Foucault explica como o “Panótico” (“o olho que tudo vê”) (6) é um dispositivo arquitetônico que cria uma “sensação de onisciência invisível” e permite que os guardas vigiem sem serem vistos dentro da prisão. Atualmente, o princípio do “panótico” é aplicado a toda sociedade.
Na prisão, os detidos expostos permanentemente à mirada oculta dos “vigilantes”, vivem com o temor de serem flagrados cometendo alguma falta. Isso os leva a se autodisciplinarem… Podemos deduzir que o princípio organizador de uma sociedade disciplinária é o seguinte: estabelecendo-se uma vigilância ininterrupta, as pessoas acabam por modificar seus comportamentos. Como afirma Glenn Greenwald, “as experiências históricas demonstram que a simples existência de um sistema de vigilância em grande escala, seja qual for a maneira pela qual é utilizada, é o suficiente para reprimir dissidentes. Uma sociedade consciente de estar permanentemente vigiada torna-se, por consequência, mais dócil e amedrontada”.
Hoje em dia, o sistema panótico foi reforçado com uma particular novidade em relação às sociedades de controle anteriores, que confinavam as pessoas consideradas antissociais, marginais, rebeldes ou inimigas em lugares de privação fechada: prisões, reformatórios, manicômios, asilos, campos de concentração, etc. Nossas sociedades de controle modernas oferecem uma aparente liberdade a todos os suspeitos (ou seja, a todos cidadãos), enquanto os mantêm sob permanente vigilância eletrônica. A contenção digital sucedeu a contenção física.
O Google sabe tudo sobre você
Às vezes, essa vigilância constante também acontece com a ajuda de dedos-duros tecnológicos que adquirimos “livremente”: computadores, telefones celulares, tablets, bilhetes eletrônicos para transportes públicos, cartões de crédito inteligentes, cartões de fidelidade, aparelhos GPS, etc. Por exemplo, o portal Yahoo!, que cerca de 800 milhões de pessoas consultam regular e constantemente, captura uma média de 2.500 rotinas de cada um de seus usuários por mês.
Já o Google, cujo número de usuários é maior que 1 bilhão, dispõe de um impressionante número de sensores para espionar o comportamento de cada usuário (8): o buscador Google Search, por exemplo, permite saber onde o internauta se encontra, o que ele busca e em que momento. O navegador Google Chrome, um mega-dedo-duro, envia diretamente para a Alphabet (a empresa matriz do Google) tudo o que o usuário faz quando navega na internet. O Google Analytics elabora estatísticas muito precisas sobre a navegação dos usuários na rede. O Google Plus recolhe informações complementárias e as mescla. O Gmail analisa a correspondência trocada – o que revela muito sobre o remetente e seus contatos. O serviço DNS (Sistema de Nome de Domínio) do Google analisa os sites visitados. O YouTube, o serviço de vídeos mais visitados do mundo, que também pertence a Google – e portanto, à Alphabet – registra tudo o que fazemos em seu interior. O Google Maps identifica o lugar em que nos encontramos, para onde vamos, quando e por qual itinerário… AdWords sabe o que queremos vender ou promover.
E desde o momento em que ligamos um smartphone que opera com Android, o Google sabe imediatamente onde estamos e o que estamos fazendo. Ninguém nos obriga a utilizar o Google, mas quando o fazemos, eles sabem tudo sobre nós. E, segundo Julian Assange, imediatamente informa as autoridades dos Estados Unidos….
Em outras ocasiões, os que espionam e rastreiam nossos movimentos são sistemas dissimulados ou camuflados, semelhantes aos radares nas avenidas, os drones ou as câmeras de vigilância (também chamadas de “videoproteção”). Esse tipo de câmera tem se proliferado tanto que, por exemplo, no Reino Unido – onde existem mais de 4 milhões dela, uma para 15 habitantes – um pedestre pode ser filmado em Londres até 300 vezes ao dia. E as câmeras de última geração, com a Gigapan, de altíssima definição (mais de um bilhão de pixels) permitem obter, com apenas uma fotografia e através de um poderoso zoom que entra na própria fotografia – a ficha biométrica do rosto de cada uma das milhares de pessoas presentes em um estádio, um comício ou uma manifestação política.
Apesar de existirem sérios estudos, que já demonstraram a fraca eficiência da videovigilância em matéria de segurança, esta técnica segue sendo ratificada pelos grandes meios de comunicação. Uma parte da opinião pública acaba por aceitar a restrição de suas próprias liberdades: 63% dos franceses declaram estar dispostos a uma “limitação das liberdades individuais na internet, por conta da luta contra o terrorismo”.
O que demonstra haver, ainda, muita margem de submissão a ser explorada pelos que nos vigiam….
Uma nova concepção de identidade parece emergir. Muitas pessoas não veem nenhum inconveniente em responder a pesquisas da rede sobre sua intimidade e seus gostos em matéria de leituras, moda, cinema, gastronomia, sexualidade, viagens, etc. Agrada-lhes que a internet as conheça melhor, para que possa receber ofertas personalizadas, adaptadas a seu perfil…
Sociedades exibicionistas
É preciso reconhecer que muitas pessoas zombam da proteção da vida privada e reivindicam, ao contrário, o direito a mostrar e exibir sua intimidade. Isso pode surpreender, mas quem reflete sobre o tema percebe: um conjunto de sinais e sintomas anunciava, há algum tempo, a inevitável chegada deste tipo de comportamento, que mescla voyeurismo e exibicionismo, vigilância e submissão.
Sua matriz distante encontra-se, talvez, num célebre filme de Alfred Hitchcock, A Janeela Indiscreta (“Rear Window”, 1954), em que um repórter gráfico (James Stewart), onvalescente em sua casa, com uma perna engessada, observa por ócio o comportamento de seus vizinhos de frente. Num diálogo como François Truffaut, Hitchcock explicava: “Si, o personagem era um voyeur, mas não somos todos voyeurs? Truffaut admitia: “Todos somos voyeurs, mesmo que seja quando vemos um filme intimista”, Então, Hitchcok observava: “Aposto que se alguém vê, do outro lado da rua, uma mulher que se despe antes de dormir ou simplesmente um homem que está arrumando sua casa, nove em cada pessoas não poderão deixar de olhar. Poderiam virar-se para outro lado e dizer: ‘Isso não é comigo’, poderiam fechar as persianas… Mas não o farão! Continuarão olhando”

Tudo o que muda com os secundaristas, Peter Pál Pelbart.


160513-Estudantes

Eu quero saudar os secundaristas aqui presentes, professores, funcionários, pais de alunos, amigos e simpatizantes desse movimento glorioso. Agradeço a oportunidade de falar numa escola em que estudei por sete anos, numa época em que o ensino público gozava ainda de grande prestígio e credibilidade, estabelecimento esse que recentemente foi palco de um dos mais pioneiros e combativos momentos na eclosão do movimento.
A ocupação de mais de duzentas escolas no final do ano passado pelos secundaristas de São Paulo, em protesto contra um plano de reorganização da rede pública estadual pelo governo Alckmin, passará para a história como um dos gestos coletivos mais ousados na história recente do Brasil. Eu diria, sem titubear, que esse movimento destampou a imaginação política em nosso País. A coragem e a inteligência com que essa luta foi conduzida, a maneira democrática e autogestiva com que sustentou-se, as formas de mobilização e comunicação que aqui se inventaram, o modo em que soube suscitar diálogo e conexão com as diversas forças da sociedade civil, a maneira autonôma que demonstrou ao longo de todo o trajeto, merecem nossa mais viva admiração e aplauso. Entretanto, mais do que isso, constituíram para todos nós uma verdadeira aula de ética e de política. Se nossos políticos aprendessem um por cento do que aqui se ensinou, nosso País seria outro.
Como se dizia na época, enquanto as crianças se comportavam como verdadeiros políticos, os políticos conduziam-se como crianças. Há muito que meditar a respeito dessa inversão, e estamos longe de ter extraído dela as lições e consequencias que se impõem. Uma coisa é elogiar a maturidade, a responsabilidade, a organização interna, toda a prudência que não deu margem à vilania da mídia, que apenas buscava os sinais de baderna, orgia, drogas, para criminalizar o movimento. Embora essa cautela tenha sido eficaz, a meu ver não foi o mais importante. Vocês introduziram em paralelo ao teatro esgotado e degradado da representação institucional uma nova coreografia política, carreando uma atmosfera de grande frescor, um afeto coletivo inusitado, uma dinâmica de proliferação e contágio, uma maneira inédita de manifestar a potência multitudinária que prolongou o que de melhor houve em 2013, sem se deixarem capturar pelo que de pior ocorreu ali.
Independente do desfecho concreto do movimento, foi um momento em que a imaginação política se destravou. A imaginação política não é uma esfera sonhadora e desconectada da realidade, ao contrário, é precisamente a capacidade de se conectar com as forças reais que estão presentes numa situação dada, as forças do entorno, mas também as forças vossas. As ocupações desencadearam um processo imprevisível cujo caráter ao mesmo tempo disruptivo e instituinte deixou a todos estupefatos. Não cabe a mim fazer a análise do que ocorreu, e sim aos que protagonizaram o movimento e o expandiram, no corpo-a-corpo, no dia-a-dia, no embate físico, no antagonismo ético, na inteligência coletiva.
Mas posso dizer, desde fora, que vocês operaram um corte na continuidade do tempo político. Isto significa que a percepção social e a sensibilidade coletiva na cidade de São Paulo sofreu uma inflexão. É toda a dificuldade de uma ruptura: ela não pode ser lida apenas com as categorias disponíveis antes dela, categorias essas que a ruptura justamente está em vias de colocar em xeque. A melhor maneira de matar um “acontecimento” dessa ordem é reinseri-lo no encadeamento causal, reduzindo-o aos fatores diversos que o explicariam e o esgotam, ao invés de desdobrar aquilo que eles trazem embutido, ainda que de modo balbuciante ou embrionário, de novo, de inaugural, de fundante.
Pelbart: “Em meio a reivindicações muito concretas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica” – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa”
Aos olhos de nossos gestores políticos, a resistência dos secudaristas não passava de uma reação passageira, de um estorvo a ser rapidamente removido, uma insanidade juvenil. Mas de repente, inverteu-se a equação – insanidade era o que apareceu aos olhos de todos, da prepotência surda do secretário de Educação à barbárie fascista da polícia militar, protegida pelo Secretário de Segurança, e que se abateu sobre o corpo das crianças e jovens de maneira intolerável, fora ou dentro das escolas.
Eu queria insistir nesse aspecto tão importante, a meu ver – um acontecimento como o do ano passado, com seu cortejo de arbítrio, violência, abuso, mas também de mobilização, iniciativa, afirmação, representou um corte abrupto na percepção social sobre o ensino, a escola, a polícia, o Estado, o poder, o desejo. Essa ruptura, essa reviravolta e o seu efeito significam o seguinte: o que até então era a trivialidade cotidiana, de repente torna-se intolerável. Por exemplo, se até então parecia natural que quem decidia sobre os equipamentos escolares eram os gestores, nos seus gabinetes, subitamente isso aparece como uma aberração intolerável. Com isso, todo um conjunto de coisas torna-se intolerável. A mercantilização da educação, as relações de poder vigentes dentro da escola, a disciplina panóptica, os modos desgastados de ensino, aprendizado, avaliação, até mesmo o objetivo da escola… Ao mesmo tempo, em contrapartida, o que até ontem parecia inimaginável (os alunos poderem ocupar e gerir os espaços que lhes são destinados, não apenas para reivindicar seus direitos, aprofundá-los, ampliá-los, mas também para experimentar a força de um movimento coletivo, autogestivo, suas possibilidades inúmeras e inusitadas) torna-se não só possível, mas desejável.
De pronto, já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável se desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora, a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!).
Um acontecimento no sentido forte da palavra, como o que foi produzido no bojo desse movimento, divide o tempo em antes e depois. Não dá mais para voltar atrás – algo de irreversível se deslocou no corpo, no afeto, na imaginação, na compreensão dos estudantes, mas também dos seus pais, dos professores, das suas famílias, na comunidade, na cidade. E o que aconteceu torna-se uma espécie de farol, de incandescência, de marca indelével, de referência incontornável – já não é possível fingir que nada aconteceu, que se pode passar por cima disso, que se pode voltar para a mesma subserviência ou apatia ou passividade de antes. É que foi muito forte o que se viveu, foi muito intenso, foi muito vital, foi mais do que uma experiência, foi uma experimentação coletiva, micropolítica e macropolítica, que abriu um campo de possíveis, e por conseguinte pode ser retomada a qualquer momento, e pode ser prolongada, ampliada, transposta, tal como de fato vai contagiando outros Estados do Brasil, de forma variada.
Godard dizia que as crianças são prisioneiros políticos. Nada mais verdadeiro. Não digo apenas na mão das famílias, das escolas, dos psicólogos, dos psiquiatras, dos pedagogos, da mídia, do mercado, dos jogos eletrônicos destinados a eles etc… É justo nos momentos em que a prisão revela sua arbitrariedade, e sua legitimidade é posta em causa, é justamente aí que aparece sua força e fragilidade, seu peso e sua vulnerabilidade, e fica evidente que grande parte de sua eficácia repousa sobre o medo e a intimidação. O mesmo se pode dizer dos secundaristas: no momento em que percebem que estão à mercê das instâncias várias do Estado incumbidas de decidir do seu destino com uma simples canetada, é justo quando percebem o quanto esse poder desmesurado pretende decidir sobre sua vida a mais cotidiana, é então que tudo se revira, pois é quando deixam de estar à mercê porque sentem o intolerável da situação, e não podem fazer diferente senão ir para o enfrentamento, para a resistência ativa e passiva, para as ruas, furando com grande ousadia o bloqueio midiático, o bloqueio militar, o bloqueio jurídico, o bloqueio do medo ou da intimidação.
Talvez possamos dizer todos o mesmo, hoje, nesse momento gravíssimo que atravessamos de ascenção de um fascismo pavoroso, talvez sejamos todos prisioneiros políticos em meio a um estado de exceção onde o maior conluio entre canalhas de toda espécie esteja virando a mesa da democracia dita representativa. Mais do que nunca, a lição que vocês deixaram é de importância capital. Pois é preciso ir muito além das categorias ainda manipuláveis pelo discurso político, ou mesmo mensuráveis pelos planejadores e economistas, e redesenhar o campo das possibilidades de vida. Ousemos a pergunta: e se essa operação de destampe da imaginação política se estendesse à sociedade como um todo? Se por vezes temos a impressão que todos almejam o mesmo, dinheiro, conforto, segurança, ascenção social, prestígio, prazer, felicidade, há momentos em que fica claro que esta é uma miragem enganosa, disseminada pela cultura midiática e publicitária, por um suposto consenso capitalista que camufla formas de vida em luta, não apenas classes em luta, com todas as segmentações e heranças malditas, escravistas, racistas, elitistas, etc., mas também conflitos entre modos de existência que colidem, formas de vida distintas em embate flagrante, anseios plurais.
É fácil constatar que modelos de vida majoritários, por exemplo a da classe média tomada como padrão, propagada como um imperativo político, econômico e cultural, de consumo desenfreado, e que se impôs ao planeta inteiro – dizima cotidianamente modos de vida “menores”, minoritários, não apenas mais frágeis, precários, vulneráveis, mas também mais hesitantes, dissidentes, ora tradicionais como o dos quilombolas ou indígenas ora, ao contrário, ainda nascentes, tateantes, ou mesmo experimentais, como os que vocês ensaiaram.
Não é fácil recusar a predominância de um certo modo de vida genérico, bem como o modo de valorização que está na sua base – por exemplo, essa teologia da prosperidade, que não é exclusividade das igrejas pentecostais, e que vai se infiltrando por toda parte. Como escovar essa hegemonia a contrapelo, revelando as múltiplas formas que resistem, se reinventam ou mesmo se vão forjando à revelia e à contracorrente da hegemonia de um sistema de mercado, modulado por mecanismos de controle e monitoramento eficazes e sutilmente ou nada sutilmente despóticos?
Isso se agrava muito no contexto atual, frente a esse golpe parlamentar-financeiro-midiático-jurídico-policial-religioso, onde vem à tona todo nosso arcaismo escravista aliado à mais perigosa manipulação da fé, que vai de par com interesses econômicos precisos e uma máscara de legalismo e modernidade autoglorificada.. Sim, vivemos num momento especialmente cruel, em que o caráter mais flexível, anônimo, ondulante de alguns mecanismos de poder econômico e político não consegue esconder a brutalidade mais retrógrada da qual ele depende, e com a qual ele se conjuga violentamente, imputando a violência, como sempre, aos que contestam essa aliança espúria, criminalizando os que a recusam com veemência.
Então, toda a questão é como alargar o campo da política, ou pensar a dimensão política das formas de vida, e da sensibilidade que lhes corresponde, ou para formulá-lo de maneira ainda mais precisa: como pensar a própria política à luz dessa questão das formas de vida que lhe antecede? Talvez Foucault continue tendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Pois nosso tempo inventou modalidades de servidão inauditas. E o que os secundaristas nos ensinaram é que também as formas de resistência se reinventam. A horizontalidade e a ausência de centro ou comando nas ocupações e nas manifestações dramatizaram uma outra geografia da conflitualidade. É difícil nomear uma tal mudança, e sobretudo transformá-la em pauta concreta. Como traduzir em propostas as novas maneiras de exercer a potência, de fazer valer o desejo, de expressar a libido coletiva, de driblar as hierarquias, de fazer circular o discurso sem ficar à mercê da lógica da representação, de redesenhar a escola, de fazer ruptura, dissenso?
Em todo caso, tudo indica que a ocupação das escolas não visava e não visa exclusivamente a elevação do nível de ensino, o respeito aos espaços de aprendizado, às modalidades de consulta e decisão, para não dizer gestão, sem falar das coisas mais elementares como a garanta da merenda, mas de algum modo, nessa experimentação vieram à tona muitas outras coisas. Se os protestos tangenciaram uma recusa da representação (ninguém nos representa, ninguém pode falar em nosso nome, nem sequer alguém de nós que pretendesse ser nosso representante), talvez também expressaram certa distância em relação às formas de vida que se tem imposto brutalmente nas últimas décadas, no nosso contexto bem como no planeta como um todo, e que atravessam a escola, fatalmente: produtivismo desenfreado aliado a uma precarização generalizada, mobilização da existência em vista de finalidades cujo sentido escapa a todos, capitalização de todas as esferas da existência — em suma, um niilismo biopolítico que não pode ter como revide senão justamente a vida multitudinária posta em cena, nas escola, nas ruas, nas praças, na Assembléia Legislativa, na autarquia estadual que administra as Escolas Técnicas de São Paulo, etc.
Em meio a reivindicações muito concretas, pontuais, precisas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa à medida em que se conecta com outros. Falamos de um desejo coletivo, onde se tem imenso prazer em ocupar coletivamente um espaço antes policiado, em ir à rua juntos, em sentir a pulsação multitudinária, em cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos, e apreeender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada, com a certeza de que a escola deveria ser o coração de uma sociedade, e não seu apêndice agonizante, assim como em 2013 alguns sustentaram que o transporte em São Paulo deveria ser um bem comum, assim como na Turquia os jovens consideraram que o verde da praça Taksim em Istambul era comum, assim como o deveria ser a água, a terra, a internet, as informações, os códigos, os saberes, a cidade, de modo que toda espécie de privatização e enclosure na sua versão atual constitui um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum. Tornar cada vez mais comum o que é comum – outrora alguns chamaram isso de comunismo. Um comunismo do desejo. A expressão soa hoje como um atentado ao pudor. Mas é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo – a vida (em) comum, a inteligência comum.
Talvez uma outra subjetividade política e coletiva estivesse se experimentando, nesse movimento e em outros, como o do Parque Augusta e muitos outros, para o qual carecemos de categorias e parâmetros. Mais insurreta, mais anônima, mais múltipla, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, mas também com uma capacidade de organização horizontal, sem que isso garanta nada.
É difícil medir tais movimentos sem usar a régua da contabilidade de mercearia ou do jogo de futebol. “Quanto lucramos”, “no que deu”, “quais forças favoreceu”, “no final quem venceu”? perguntarão. Não se trata de menosprezar a avaliação das forças em jogo, sobretudo num País como o nosso, em que uma vasta aliança conservadora distribui as cartas e leva o jogo há séculos, independente dos regimes que se sucedem ou do que dizem as urnas. Ou seja, não se trata de confiar no deus-dará, mas ao contrário, aguçar a capacidade de discriminar as linhas de força do presente, fortalecer aquelas direções que garantam a preservação dessa abertura, e distinguir no meio da correnteza o que é redemoinho e o que é pororoca, quais direções são constituintes, quais apenas repisam o instituído, quais comportam riscos de retrocesso.
Nisso tudo, não se deve subestimar a inteligência cartográfica e a potência psicopolítica dos secundaristas. Eu diria, para retomar uma fórmula conhecida, que uma das definições de ética é a de estar à altura do que nos acontece. Creio que o movimento dos secundaristas esteve plenamente à altura do que lhes aconteceu, do acontecimento que lhes foi dado experimentar, inventando dispositivos concretos que permitiram sustentá-lo, intensificá-lo e expandir-se. Só posso desejar que essa conversa seja parte dessa movência, mesmo nas condições muito adversas do presente, que não tendem a arrefecer.

Prometendo modernizar lei, terceirização no México consagrou precarização, por Vanessa Martina Silva.






Um banco inteiro operando sem nenhum funcionário. Foi desta maneira que o espanhol Bancomer (Banco do Comércio) levou a terceirização às últimas consequências em sua operação no México na década passada. Contra práticas semelhantes, o país realizou, em 2012, uma reforma da Lei Federal do Trabalho, regulamentando no país a “subcontratação”, nome pelo qual a terceirização é conhecido. Por outro lado, na avaliação da especialista em direitos trabalhistas mexicanos e professora da UAM-X (Universidade Autônoma Metropolitana campus Xochimilco) Graciela Bensúsan, a lei “aumentou a oferta de empregos precários”.
De acordo com dados oficiais, 16% da população economicamente ativa no México (8,32 milhões de pessoas) trabalham neste esquema de subcontratação precarizada. O número representa quase o dobro do que era verificado em 2004, quando, antes da reforma na legislação trabalhista, apenas 8,6% adotavam o regime. Além disso, 60% dos trabalhadores do país têm emprego informal, sem carteira assinada.
Para Bensúsan, no entanto, é difícil avaliar o impacto real da legislação porque o “México é um país onde as leis trabalhistas não são cumpridas. O fato de fazer uma reforma não implica de nenhum modo que haja mecanismo para o cumprimento e melhoria da prática trabalhista no país”.
Bancomer
O caso do Bancomer é o mais emblemático com relação à precarização no país. Em 2006, o banco criou uma operadora para a qual transferiu a totalidade de seus funcionários, passando a funcionar como se não tivesse funcionário algum.
Desta forma, se eximiu das responsabilidades trabalhistas com os funcionários e do pagamento das “utilidades” — bônus similar à PLR (Participação nos Lucros e Resultados) brasileira. A partir do “sucesso” obtido pela instituição, diversos outros bancos e empresas, como o Walmart, passaram a adotar a prática.
Apenas em 2012, após um trabalhador demitido ter acionado a empresa na Justiça, o Bancomer teve que reconhecer que era o patrão. O funcionário, então, obteve na Justiça a integralidade de seus direitos trabalhistas, e o caso criou jurisprudência.
Ambiguidade da lei
As mudanças foram feitas para evitar que episódios semelhantes ocorressem, já que a lei define que nenhuma empresa pode transferir todos os funcionários a uma contratista. Mas, “a lei não é específica: posso transferir todas as atividades e ficar só com trabalhador? O texto não responde isso”, aponta Bensúsan.
“Esta lei é própria de um regime autoritário, onde se deixa as coisas muito ambíguas, dando margem a interpretações discricionárias. Ou seja, não tem quem possa fazer com que ela seja cumprida”, aponta a professora, lembrando que no México as instituições sindicais não têm força e vivem contexto de “debilidade”.
Realidade
Apesar de criticar a precarização do mundo do trabalho, a pesquisadora considera que a terceirização é uma realidade em todo o mundo. “Não se pode deter esse fenômeno com nenhuma lei”, opina.
Em sua visão, deixar de regulamentar não vai, por si só, defender o direito dos trabalhadores diretos. “Penso que o problema fundamental está em fortalecer os sindicatos e as estruturas setoriais dos sindicatos”, ressalta.
Neste sentido, Bensúsan disse lamentar que o Brasil não tenha avançado mais no fortalecimento dos sindicatos durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff. “Creio que isso é fundamental para frear esse sentido perverso da terceirização, que fragmenta o espaço de trabalho de tal forma que é muito difícil a sindicalização”, afirma a especialista.
Sindicalização
Mesmo considerando irreversível, Bensúsan considera que a terceirização tem impacto menor em países como o Uruguai, que negocia salários “por meio de sindicatos que representam todos os trabalhadores do setor”. No país sul-americano, os conselhos nacionais de salário “evitam os efeitos perversos da terceirização para reduzir custos trabalhistas”, aponta Bensúsan.
No México, onde apenas 8.8% da população economicamente ativa  é sindicalizada, a reforma na lei não alterou em nada as regras da sindicalização, mas em um cenário de deterioração da qualidade do emprego e no qual a rotatividade trabalhista aumenta a dispersão dos trabalhadores, “é mais difícil organizar o trabalhador”.
Na prática, a precarização do trabalho atinge principalmente os setores para vulneráveis da sociedade, como mulheres, jovens, indígenas e camponeses, conclui Bensúsan.

Da Farsa do Impeachment ao Golpe Parlamentar, por Ricardo Lodi Ribeiro.

 
A articulação que levou à aprovação pela Câmara dos Deputados, no dia 17 de abril de 2016, da autorização para o processamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff reproduziu um arco de alianças de certos setores conservadores políticos, empresariais midiáticos e de classe média, sempre dispostos a resistir aos mínimos avanços sociais.  Tal aliança, engendrada em 1954, culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, o que adiou em dez anos a ascensão dos anseios golpistas.  A história repetiu-se como tragédia, em 1964, com a deposição do presidente João Goulart pelo golpe civil-militar, abrindo o caminho para a introdução de uma ditadura militar que durou 21 anos e ceifou a vida, a esperança e a liberdade de milhares de brasileiros.  Dando razão à Karl Marx, na obra O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, a história, que da primeira vez reproduziu-se como tragédia, volta a repetir-se como farsa em 2016, consagrada no espetáculo de horrores que se viu na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a abertura do processo contra Dilma, em que não faltou a ode aos torturadores e à ditadura militar.
Porém, ao contrário do que desejam o Deputado Jair Bolsonaro e os seus seguidores, os golpes não são mais como nos anos da Guerra Fria. É preciso dar uma roupagem jurídica a eles, como ocorreu, em 2012, no Paraguai, onde se derrubou o presidente Fernando Lugo por ato do Congresso, e em 2009 em Honduras, onde o presidente Manuel Zelaya foi deposto por ordem da Suprema Corte.  Assim, nos golpes pós-modernos, os militares são substituídos por outros atores institucionais nesse arco de alianças conservadoras.
No atual caso brasileiro, embora não esteja presente a rapidez com que forma intentadas as ações no Paraguai e Honduras, o que se deve ao apoio que o mandato da presidente Dilma Rousseff ainda encontra em importantes segmentos sociais, revelam-se grande semelhança com os precedentes latino-americanos pela mitificação do simulacro jurídico utilizado para modificação dos anseios populares revelados pelas urnas, no afã de viabilizar a imposição de uma agenda política derrotada pelos eleitores.
Por aqui, o pretexto jurídico utilizado para dar um ar de civilidade ao desejo político inconfessável, diante da inexistência de comprovação de qualquer ato de favorecimento pessoal da presidente da república nesse cenário de corrupção endêmica que não poupa qualquer dos grandes partidos nacionais, foi, a partir das brechas oferecidas pelo ordenamento jurídico nacional, a adoção de bruscas alterações na forma de interpretar as normas orçamentárias, a fim de caracterizar condutas, até então aceitas pela corte de contas e referendadas pelo parlamento, como crime de responsabilidade.
Já nos manifestamos mais detidamente nesta coluna, nos artigos de janeiro e março, no sentido de que as condutas adotadas pelo governo Dilma não constituem crime de responsabilidade e já vinham sendo praticadas em outros exercícios financeiros por este e por outros governos, com a aprovação do TCU e do Congresso Nacional.
Porém, não é demais destacar que o processo de impeachment só apura condutas praticadas no atual mandato da presidente da república, em razão de decisão da presidência da Câmara dos Deputados, da Comissão Especial e do Supremo Tribunal Federal ao fundamentar a denegação do mandado de segurança nº 34.130, impetrado pela chefe de Estado contra a inserção no processo de dados estranhos à decisão que recebeu a denúncia, a partir do reconhecimento pela Corte da desnecessidade de provimento jurisdicional diante da evidente restrição do objeto do impeachment às pedaladas fiscais e à abertura dos créditos suplementares por decreto.
Em relação às pedaladas fiscais, que, como já demonstramos nos referidos artigos desta coluna, não se confundem com operações financeiras vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cumpre considerar que, no caso do único contrato imputado em 2015, relativo ao Projeto Safra, a sua regulação compete ao Conselho Monetário Nacional, ficando a execução a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Banco do Brasil.  Aqui, a presidente da república, de acordo com as normas do legais do Projeto, não possui qualquer atribuição. Nesse caso, se a norma que prevê o crime de responsabilidade atribuído pelos autores da denúncia ao caso em questão tipifica, no art. 10. 6 da Lei nº 1.079/50, a conduta de ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal, é de se perquirir: que atos praticados pela presidente da república são imputados como criminosos?  Ou que atuação desta configura a conduta descrita no art. 11.3, de contrair empréstimo sem autorização legal, que foi utilizada no parecer do relator da Comissão Especial da Câmara para considerar esta atuação como crime de responsabilidade?  Nenhuma é a única resposta legalmente admitida pelo regramento do Projeto Safra.  No caso em questão, a gestão dos contratos não está na competência presidencial, o que a impede de promover ou determinar a abertura de operação de crédito. Até em razão disso, os denunciantes ou o relator não foram capazes de apontar qualquer ato de abertura de crédito à presidente, já que a prática deste não é a ela legalmente atribuída, sendo conduta estranha ao exercício das suas funções, o que, por si só, inviabiliza a responsabilização da Chefe de Estado, nos termos do art. 86, §4º da Constituição Federal.
Considere-se ainda que a utilização para pagamento de subvenções públicas dos saldos das contas de suprimentos mantidas pela União com bancos públicos era prática que estava de acordo com a jurisprudência pacífica do Tribunal de Contas da União (TCU), sendo verificada desde 2001.  Alegam os defensores do impeachment que as pedaladas fiscais do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso teriam sido anteriores à promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que vedou a realização de operações de crédito entre os bancos públicos e a entidade federativa que os controlam.  Todavia, tal informação não procede, uma vez que esta norma entrou em vigor em 05 de maio de 2000, sendo as pedaladas tucanas do passado a ela posteriores.  Sem falar nas que ocorreram em anos posteriores que também foram avalizadas pelo TCU e pelo Congresso Nacional.
É de ser registrar que o argumento acima não é utilizado para estabelecer em que governo começaram as pedaladas, o que é juridicamente irrelevante, ou ainda para justificar um erro em outro, mas tão somente para revelar que, até o ano de 2015, essa conduta era livremente utilizada na gestão orçamentária da União e dos Estados, até que a decisão do TCU, que recomendou ao Congresso Nacional a rejeição das contas do Governo Federal em 2014, dissesse, de forma inédita e modificadora dos seus entendimentos anteriores, que tais práticas eram ilegais, levando o Governo a abandoná-las.  Também não impressiona o argumento de que, a partir de 2014, tais práticas foram realizadas em volumes mais expressivos, dada a visão então dominante de que tal procedimento era compatível com as normas orçamentárias vigentes no país e a necessidade exigida pela crise que então se instalava em nossa economia.
No que se refere à abertura de créditos suplementares por decreto, não se pode considerar que seja medida violadora da lei orçamentária, uma vez que o art. 4º da LOA/15 a autoriza sob a condição de cumprimento da meta de superávit primário, o que, em virtude do princípio da anualidade orçamentária, só pode ser verificado no final do exercício, quando a meta primária já havia sido alterada pelo Congresso Nacional e atendida pelo governo.
Restou evidenciado ao longo do processo na Comissão Especial que os relatórios bimestrais de acompanhamento de receitas e despesas não têm o condão de estabelecer, como quis a denúncia, a conclusão de que a meta primária teria deixado de ser cumprida, mas, tão somente de vedar a realização de despesas discricionárias.  Tendo sido a meta primária alterada com a aprovação do PLC nº05/15, não há que se falar em descumprimento do artigo 4º da LOA/15, pois a condição nele prevista, cujo implemento poderia retirar a validade dos decretos que abriram créditos suplementares, jamais foi realizada.  Por outro lado, qualquer vício que porventura existisse na conduta presidencial teria sido sanado pela aprovação do referido projeto de lei pelo Congresso Nacional.  Assim, não faz sentido que este considere criminosa uma conduta que foi por ele referendada.
Ademais, não se pode confundir a gestão financeira, relativa à execução dos gastos, submetidos à meta fiscal, e cujo instrumento de atuação do Governo são os decretos de contingenciamento, como a abertura de créditos suplementares que, por si só, não envolve a autorização para o aumento das despesas e nem compromete o atingimento da meta primária.
Por fim, cumpre ressaltar que a abertura de créditos suplementares por decreto, em desobediência à meta, também é procedimento que vem sendo adotado pela União e pelos Estados desde 2001, nunca tendo sido objeto de censura ou restrição pelo Tribunal de Contas da União e pelo Congresso Nacional, devendo a virada jurisprudencial adotada em 2015 ter efeitos prospectivos, não atingindo a fatos ocorridos antes da mudança do critério jurídico adotado pelos órgãos de controle externo.
Deste modo, a redução da meta fiscal do superávit primário no final do exercício de 2015 foi aprovada pelo Congresso Nacional a despeito de procedimento idêntico adotado em 2014 ter fundamentado a proposta de rejeição das contas do exercício anterior pelo TCU. Nesse sentido, o Congresso Nacional convalidou o procedimento adotado pela presidente da república.  Seria admissível que o mesmo Congresso que vinha acolhendo uma prática reiteradamente observada pela Administração passe a, retroativamente, considerá-la como crime de responsabilidade? A resposta só pode ser negativa, salvo se os parlamentares se considerassem coautores dele.
É claro que se pode pretender mudar o entendimento em relação a posicionamentos anteriormente esposados. Os Tribunais costumam fazê-lo, mas sempre resguardando os efeitos passados em relação à mudança na interpretação da lei, sob pena de restar violada a segurança jurídica. No caso concreto, é forçoso reconhecer que mudar as regras para o passado para cassar o mandato presidencial, não afronta apenas a segurança jurídica, mas a própria democracia, não tendo respaldo no ordenamento jurídico.
Deste modo, não havendo a caracterização do crime de responsabilidade nas condutas imputadas à presidente da república pelos denunciantes, a autorização para abertura de processo de impeachment por outras razões não encontra amparo constitucional, constituindo uma grande farsa.
A farsa se revela com grande intensidade pelo caráter público das negociações em andamento há meses entre políticos amplamente citados em denúncias de corrupção para fazer do vice-presidente, abertamente engajado nas articulações do impeachment, o titular do cargo maior do país.  Muito se cogita sobre a expectativa de diversos congressistas de que a conspiração desague no abafamento do clamor público e do ímpeto nas investigações em andamento sobre atos de corrupção praticados por uma grande parte da classe política nacional.
Não se nega que muitos manifestantes favoráveis ao impeachment e ainda algumas autoridades que participam das investigações com elevado espírito público, acreditem honestamente que vão derrubar todos os envolvidos em atos de improbidade, passando o país a limpo.  Ocorre que isso não está no script da aliança conservadora que, desde a apuração das eleições, tenta derrubar Dilma, e que alicerça todo o movimento contestatório do seu mandato, o que levou à paralização do país.  Afinal, como amplamente destacado pela imprensa internacional, quem aprovou o impeachment na Câmara, não foram as ruas, hoje divididas, mas políticos seriamente envolvidos com atividades ilícitas.
É que, com todo o respeito, a questão do impeachment em nada se relaciona com a corrupção, quesito em que governo e oposição travam uma batalha acirrada ver quem está mais sujo. Aliás, a presidente Dilma, contra quem não há qualquer inquérito ou processo em andamento, se sai bem melhor do que seus principais algozes, a julgar pela delação premiada do Senador Delcídio Amaral, que revelou que a presidente da república teria afastado os elos de improbidade que os ligavam à Furnas e à Petrobras, despertando a ira de muitos deles.
Por essa e por outras, não pode ser levada a sério a motivação ética de um pedido de impeachment processado nos termos e pelos atores atuais.  A despeito de ser mais do que desejável a apuração profunda, serena e respeitadora das garantias constitucionais em relação a todas as teias promíscuas que ligam o mercado aos agentes públicos, é forçoso reconhecer que, hoje, o que distingue governo e oposição não é questão de índole moral, mas política. Com a fragilização do quadro econômico, as elites que mantinham uma aliança estratégica precária com o lulismo decidiram que não mais precisavam dela e passaram a investir em um projeto próprio de poder. Assim, Dilma e Lula não lhes servem mais.
Por outro lado, um elemento apoteótico da farsa, é aprovação do pedido de impeachment por condutas orçamentárias por uma Câmara dos Deputados presidida por Eduardo Cunha, réu em um processo cuja denúncia foi recebida pelo STF, por unanimidade, acusado de atos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por seu envolvimento em desvios na Petrobras.   Ademais, a casa legislativa é hoje composta por centenas de deputados acusados de irregularidades no trato da coisa pública, que fundamentaram os seus votos pelas razões mais bizarras, todas elas diversas das condutas orçamentárias imputadas à presidente.
É evidente que para o sucesso da farsa, vale misturar todos os assuntos para promover o juízo final de índole política de Dilma, como o que se viu na aprovação da abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, pouco importando a comprovação da prática de crime de responsabilidade por ela ou a adoção das mesmas condutas orçamentárias por vários governantes brasileiros, incluindo o seu sucessor constitucional.
Em outro giro, aos poucos revelam-se informações advindas da empresa Odebrecht de que a Lava Jato poderá atingir a quase todos os partidos do Congresso Nacional e ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, além de outras instituições brasileiras. Com isso, a aliança conservadora corre para aprovar o impeachment da presidente Dilma Rousseff com base nas pedaladas fiscais, ainda que sem motivo jurídico para tanto, como já ficou claro para a sociedade brasileira.
Deste modo, parece assistir razão ao Governador do Maranhão, Flavio Dino, quando sustentou que a única forma da Operação Lava Jato continuar, no sentido de fazer uma limpeza geral é, por incrível que pareça, barrar o golpe parlamentar da oposição que consiste em aprovar impeachment pelas pedaladas fiscais. Nesse cenário, o sistema político viciado livrar-se-ia de Dilma para deixar tudo como está.
Agora, com as investigações chegando a setores muito poderosos fora das hostes petistas, a Operação Lava Jato vive sua prova de fogo. Precisa demonstrar que os seus objetivos não são político-partidários em um ambiente parlamentar em que já se defende abertamente a anistia para Eduardo Cunha.
Por outro lado, as intenções da articulação para o fortalecimento da solução de preservação do poder dos sucessores constitucionais da presidente da república ficam mais claras com a estratégia para que o TSE desmembre a apuração das irregularidades da campanha eleitoral de 2014, de modo a preservar o vice-presidente de uma eventual impugnação da chapa, assim como foi feito em relação ao arquivamento dos pedidos de impeachment de Michel Temer pelos mesmos atos imputados à Dilma Rousseff.
Deste modo, a farsa do impeachment se consolida em golpe parlamentar com a consagração do governo sem voto para deleite do 1% do alto da pirâmide social que não precisará mais fazer concessões aos segmentos populares que, em certa medida, eram atendidos pelas políticas públicas petistas. Como se revela no documento do PMDB, Uma Ponte para o Futuro, em que exsurgem alguns pontos centrais de um eventual Governo Temer, sacrifícios serão impostos à população, como a desvinculação das receitas orçamentárias para saúde e educação, o aumento do superávit primário, ainda que em detrimento de despesas com pessoal e sociais e a flexibilização dos direitos trabalhistas.  É forçoso reconhecer que nenhum candidato que se submeteu ao escrutínio popular teve a coragem de assumir tais bandeiras, especialmente na chapa vencedora.  Mas como o governo advindo do golpe parlamentar não precisa de votos, outros setores sociais são destinatários de suas intenções e palavras.
Como se vê, o processo de impeachment não trata de ética ou moralidade, mas só de disputa política. Porém, no presidencialismo, o uso do processo de impeachment para retirar um governo impopular é abrir uma caixa de Pandora que ameaça à democracia, máxime quando se lança mão de expedientes que fragilizam as garantias constitucionais do cidadão e ao devido processo legal.
Vale destacar que há muita gente com formação jurídica sólida dizendo que impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição.  Outros igualmente ilustrados afirmam que de golpe não se trata, pois, a medida foi aprovada pela Câmara dos Deputados, onde restaram assegurados o contraditório e a ampla defesa. Porém, embora seja um processo marcado com certo cunho político, já que a cargo das casas legislativas, a sua previsão constitucional não legitima a aplicação do instituto fora dos casos previstos como crime de responsabilidade, o que exige uma apreciação que não pode se dar fora das balizas do Direito. Se a maioria qualificada do parlamento o aprova fora desses casos, é golpe sim.
Por outro lado, já superamos os tempos em que a legitimidade da atuação estatal repousava exclusivamente no respeito à competência para a prática do ato e na observância da aplicação formal dos princípios processuais, independentemente dos aspectos materiais da medida.
No entanto, no Estado Democrático de Direito, conquistado a duras penas em nosso país, a juridicidade não se resume à ideia de legalidade formal, se traduzindo, como destaca o constitucionalista alemão Otto Bachof, no fruto da simbiose entre a soberania popular e a tutela dos direitos fundamentais.  Com o pluralismo jurídico das fontes normativas que caracteriza nossos tempos, e a consequente crise do positivismo formalista, baseado no monismo jurídico fundado na soberania estatal e na norma fundamental, o conceito de juridicidade vai substituindo o de legalidade, que, por sua vez, ultrapassa o aspecto meramente formal para se submeter aos parâmetros materiais mais amplos da razoabilidade.
No caso em questão, fica claro que, apesar de ter sido estabelecida pela instituição constitucionalmente competente, a decisão da Câmara dos Deputados que aprovou o pedido de abertura do processo de impeachment não guarda qualquer gota de juridicidade que ultrapasse a alegoria meramente formal encobridora de suas reais finalidades, uma vez que não promoveu a mais singela apreciação sobre a subsunção aos dispositivos legais que tratam de crime de responsabilidade das chamadas pedaladas fiscais e da abertura de créditos suplementares por decreto.  Evidenciou-se que a quase totalidade dos parlamentares sequer chegou a compreender a questão em discussão.  E também que isso pouco era relevante para eles.  Era preciso suprimir o mandato da presidente da república por qualquer razão, e foram apresentadas as mais variadas, ainda em flagrante desvio de finalidade, como destacado pelas fundamentações reveladas expressamente pelos próprios parlamentares, cuja argumentação não passou nem perto das questões orçamentárias em discussão, que serviram de mero pretexto mal engendrado para a abertura do processo, mas que depois foram solenemente abandonadas pelos deputados.
Porém, aprovar o impeachment por outro motivo que não os apontados no relatório da Comissão Especial e na petição dos juristas aprovada pela presidência da Câmara dos Deputados, significa a consagração da possibilidade de afastamento do presidente da república independentemente da existência de crime de responsabilidade, a partir de uma decisão do parlamento de chamar para si com exclusividade a definição sobre o futuro da nação, suprimindo as atribuições do titular de outro Poder, em violação à separação de poderes e à vontade do eleitor, o que evidentemente não é agasalhado pela Constituição.
Ao abandonar a apreciação sobre os supostos crimes de responsabilidade na aprovação do processo de impeachment, a Câmara dos Deputados arvorou-se em detentora de um papel que a Constituição Federal não lhe conferiu para mudar o governo da República.  Trata-se de uma intervenção política que se traduz em golpe parlamentar.
A imprensa internacional, em sua quase totalidade, não teve a dificuldade por aqui encontrada de designar como golpe, o acolhimento do processo de impeachment de Dilma Rousseff, por conta das pedaladas fiscais, comandado por um Presidente da Câmara que é réu em ação penal por corrupção, a partir da ideia de que a aceitação do pedido de impeachment pela Câmara dos Deputados por razões orçamentárias mal justificadas foi um golpe dirigido a beneficiar vários investigados por corrupção em nosso país.
Cabe agora ao povo, titular do poder soberano, mobilizar-se para que os mesmos vícios não sejam perpetrados pelo Senado Federal, a fim de que, como diria Chico Buarque, a nossa Pátria-mãe tão distraída finalmente possa perceber que vem sendo subtraída por tenebrosas transações.