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terça-feira, 30 de abril de 2019

O APOCALIPSE DE OLAVO, DIA 05


Monbiot: para pensar além do capitalismo, por George Monbiot


Avança, também em novos públicos, a noção de que o sistema atual precisa ser superado. Mas como fazê-lo, sem resvalar para um socialismo burocratizado e autoritário? Estão surgindo elementos para uma nova saída
Durante a maior parte da minha vida adulta lutei contra “o capitalismo corporativo”, o “capitalismo de consumo” e o “capitalismo clientelista”. Demorou um tempão até eu perceber que o problema não é o adjetivo, mas o substantivo. Enquanto algumas pessoas rejeitaram o capitalismo com prazer e sem demora, eu fiz isso devagar e relutantemente. Em parte porque não via alternativa clara: ao contrário de alguns anticapitalistas, nunca fui entusiasta do comunismo de Estado. Fui também inibido por causa de seu status religioso. Dizer no século 21 que “o capitalismo está fracassando” era como dizer “Deus está morto” no século 19: uma blasfêmia secular. Requer um grau de autoconfiança que eu não possuia.
Mas conforme fui ficando mais velho, reconheci duas coisas. Primeiro, que é o sistema, e não qualquer variante do sistema, que nos conduz inexoravelmente em direção ao desastre. Segundo, que não é necessário produzir uma alternativa definitiva para dizer que o capitalismo está falido. A declaração vale por si. Mas isso também exige de nós um esforço diferente, para desenvolver um novo sistema.
As falhas do capitalismo derivam de dois de seus elementos fundadores. O primeiro é o crescimento perpétuo. O crescimento econômico é resultado da busca de acumular capital e extrair lucro. Sem crescimento o capitalismo entra em colapso, mas o crescimento perpétuo num planeta finito leva inexoravelmente à calamidade ambiental.
Aqueles que defendem o capitalismo argumentam que, conforme o consumo muda de bens para serviços, o crescimento econômico pode ser dissociado do uso de recursos naturais. Semana passada um estudo publicado no jornal New Political Economy, de Jason Hickel e Giorgos Kallis, examinou essa premissa. Ele revela que, embora uma dissociação relativa tenha ocorrido no século XX (o consumo de recursos materiais cresceu, mas não tão rápido quanto o crescimento econômico), houve no século 
XXI uma reassociação: até aqui o crescimento do consumo de recursos igualou ou excedeu a taxa de crescimento econômico. A dissociação absoluta necessária para evitar a catástrofe ambiental (redução do uso de recursos materiais) nunca foi alcançada, e parece impossível enquanto o crescimento econômico continuar. O crescimento verde é uma ilusão.

Um sistema baseado no crescimento perpétuo não pode funcionar sem periferias e externalidades. Precisa sempre haver uma zona de extração – da qual os materiais são retirados sem pagamento integral – e uma zona de descarte, onde os custos são despejados na forma de detritos e poluição. Como a escala de atividade econômica aumenta até o capitalismo afetar tudo, da atmosfera ao solo oceânico mais profundo, o planeta inteiro torna-se uma zona de sacrifício: todos habitamos a periferia da máquina-de-fazer-lucros.
Isso nos conduz em direção à catástrofe, numa escala tal que a maioria das pessoas não consegue imaginar. O colapso que ameaça os sistemas que dão suporte à vida é de longe maior que a guerra, a fome, a peste ou a crise econômica, já que provavelmente incorporará todos os quatro. As sociedades podem se recuperar desses eventos apocalípticos, mas não das perdas de solo, de uma biosfera abundante e de um clima habitável.
O segundo elemento definidor é o pressuposto bizarro de que uma pessoa está autorizada a ter, da riqueza natural do mundo, uma parte tão grande quanto seu dinheiro pode comprar. Esse sequestro dos bens comuns causa outros três deslocamentos. Primeiro, disputa pelo controle exclusivo de bens não reproduzíveis — o que implica violência ou supressão jurídica dos direitos de outras pessoas. Segundo, falta de solidariedade pelas pessoas, numa economia baseada na pilhagem, no espaço assim como no tempo. Terceiro, tradução do poder econômico em poder político, pois o controle sobre recursos essenciais leva ao controle sobre as relações sociais que o cercam.
No New York Times de 19/4, o Nobel de economia Joseph Stiglitz quis fazer uma distinção entre capitalismo bom, que chamou de “criação de riquezas”, e capitalismo mau, que chamou de “saque de riquezas” (ou rentismo). Entendo sua distinção. Mas, do ponto de vista do meio ambiente, criação de riquezas é saque de riquezas. Crescimento econômico, ligado intrinsecamente ao progressivo uso de recursos materiais, significa sequestrar riqueza natural, tanto dos sistemas vivos quanto das gerações futuras.
Apontar para tais problemas é atrair uma enxurrada de acusações, muitas das quais baseadas nesta premissa: o capitalismo resgatou centenas de milhões de pessoas da pobreza – e agora você quer empobrecê-las novamente. É verdade que o capitalismo, e o crescimento econômico que produz, melhoraram radicalmente a prosperidade de um grande número de pessoas, ao mesmo tempo em que destruíram a prosperidade de muitos outros: aqueles cuja terra, mão-de-obra e recursos foram sequestrados para abastecer o crescimento em outros lugares. Grande parte da fortuna das nações ricas foi – e é – construída sobre escravidão e expropriação colonial.
Assim como o carvão, o capitalismo trouxe muitos benefícios, Mas, como o carvão, ele agora causa mais mal do que bem. Assim como descobrimos meios melhores e menos prejudiciais de gerar energia que o carvão, precisamos descobrir meios de gerar bem-estar humano melhores e menos prejudiciais que o capitalismo.
Não tem volta: a alternativa ao capitalismo não é nem o feudalismo nem o comunismo de Estado. O comunismo soviético tinha mais em comum com o capitalismo do que os defensores de qualquer desses sistemas ousariam admitir. Ambos os foram (ou são) obcecados com a geração de crescimento econômico. Ambos estão dispostos a infligir níveis surpreendentes de destruição na busca deste e de outros fins. Ambos prometiam um futuro em que trabalharíamos apenas algumas horas por semana mas exigem, ao contrário, um trabalho brutal e sem fim. Ambos são desumanizadores. Ambos são absolutistas, e insistem que o seu, e apenas o seu, é o único Deus verdadeiro.
Como seria um sistema melhor? Não tenho uma resposta acabada, e não acredito que alguma pessoa a tenha. Mas penso ver um esboço rudimentar emergindo. Parte dele é proporcionado pela civilização ecológica proposta por Jeremy Lent, um dos maiores pensadores da nossa era. Outros elementos vêm da economia da rosquinha de Kate Raworth e do pensamento ambiental de Naomi Klein, Amitav GhoshAngaangaq AngakkorsuaqRaj Patel e Bill McKibben. Parte da resposta está na noção de “suficiência privada, luxo público”. Outra parte surge da criação de um novo conceito de justiça, baseado neste simples princípio: toda geração, em todo lugar, terá direitos iguais ao usufruto da riqueza natural.
Acredito que nossa tarefa seja identificar as melhores propostas de vários pensadores diferentes e articulá-las numa alternativa coerente. Como nenhum sistema econômico é apenas um sistema econômico, mas penetra em todos os aspectos de nossa vida, precisamos de muitas mentes, de várias disciplinas – econômicas, ambientais, políticas, culturais, sociais e logísticas – trabalhando colaborativamente para criar uma maneira melhor de nos organizar, que atenda às nossas necessidades sem destruir nossa casa.
Nossa escolha se resume a isso. Acabar com a vida, para permitir que o capitalismo continue, ou acabar com o capitalismo para permitir que a vida continue?

Esquerda e direita, conceitos superados? (1), por Valdei L. Araujo


O projeto da transformação social está sendo pressionado pelo “atualismo” — a noção de que todas as mudanças se fazem dentro do sistema e o mundo se divide em “atualizados” e “obsoletos”. Por que a esquerda está perdendo este debate?
Por Mateus H. F. Pereira e Valdei L. Araújo | Imagem: Paul Klonowski
“o desafio não está em superar 
os conceitos de esquerda ou de direita, 
mas sim de atualizar os conceitos 
de esquerda e de direita, exatamente 
para que as pessoas consigam 
estabelecer as diferenças.” 
(Eliane Brum, dez, 2018) 

As questões que motivaram a escrita deste texto nasceram uma semana antes do segundo turno das eleições que elegeria Bolsonaro presidente do Brasil, em 2018, e enquanto lançávamos o nosso livro Atualismo 1.0, em Mariana, Minas Gerais. Não imaginávamos que, logo em janeiro de 2019, a tragédia-crime da Samarco, ocorrida em Mariana, fosse se repetir, em Brumadinho, também em Minas Gerais, e não por falta de alertas, pois eles têm sido persistentes e há tempos. Depois do primeiro turno da eleição, sabíamos, sim, que havia possibilidades concretas do pesadelo daquela eleição se concretizar. Diante desses fatos, naquelas semanas, só queríamos falar sobre “o coiso”, “o bozo”, “o inominável”: #elenão!
Nossa hipótese é que a vitória de Bolsonaro – e de outros representantes internacionais da direita e da extrema-direita – se deve, dentre outras coisas, ao fato de que a centro-direita, a direita e a extrema-direita estão construindo espaços comuns de diálogos, de disputas e de negociações entre seus perfis de obsoletos e de atualizados, em especial, no que tange a certas dimensões atualistas. E, nessa direção, outra hipótese complementar é que a esquerda contemporânea ter maior dificuldade em produzir essa convergência.
No livro Atualismo 1.0, demonstramos que o conceito de atualização (update) é relativamente recente, tendo se desenvolvido em paralelo à cultura digital, a partir de meados da década de 1960. O que chamamos atualismo é o crescimento vertiginoso de certa acepção da possibilidade humana de se relacionar com o tempo histórico como atualização. Em algum momento de nossa história recente, a ideia de modernização, que guardava em si as promessas emancipadoras das utopias modernas, acumuladas desde o século XIX, vai sendo substituída pela sensação de que o progresso só pode ser entendido como atualização incremental e automática do status atual das sociedades capitalistas. De algum modo, pretendemos pensar se o sujeito histórico, bem como as promessas de emancipação e de redenção a ele associadas estão sendo substituídas, em especial, por dois estados possíveis desse mundo presente, a saber: sujeito atualizado ou sujeito obsoleto.
Livro dos autores está esgotado. Segunda edição ficará pronta no início de maio
Temos consciência de que essas afirmações, ambiciosas em certo sentido, são apostas que precisam ser conferidas. Por isso, a parte mais relevante desse ensaio é a decisão de escutar algumas pessoas, mesmo sabendo que a escuta aqui não deva ser entendida de modo ingênuo enquanto um gesto neutro ou imparcial, toda escuta é já um diálogo e envolve decisões e posições de parte a parte. Aqui fizemos um recorte nas diversas conversas e entrevistas que já realizamos, pois o objetivo é desenvolver hipóteses e especulações iniciais. O leitor não encontrará um espelho do real, mas fotografias que retratam os fotografados, os fotógrafos e as câmeras utilizadas para fotografar.
Trata-se de construir tipologias. Para isso, vamos nos concentrar apenas em alguns relatos de moradores e turistas de uma ilha localizada no Nordeste do Brasil, bem como de nossa experiência, ao longo do primeiro mês do governo Bolsonaro. Os nomes e as ocupações de algumas pessoas foram alterados para evitar identificação. Essa escolha é uma apropriação inspirada em uma série a que assistimos em janeiro, cujo início sempre começa com a seguinte sentença: “Esta é uma história verdadeira, os acontecimentos retratados aconteceram […]. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Em respeito aos mortos, todo o resto foi relatado exatamente como ocorreu” (Fargo – Netflix).
As pessoas foram escolhidas não pela sua suposta representatividade, mas a partir da perspectiva benjaminiana de que nada do que passou pode ser perdido para a história e, sendo assim, cada percepção tem um valor em si. Além disso, e para construirmos a nossa tipologia, as escolhas e seleções foram feitas a partir do jogo necessário entre teoria e empiria. Outra fonte utilizada foram os diversos memes que circularam em grupos de Whatsapp durante esse período. É importante ressaltar que, nesse momento da pesquisa, e como homens, um branco e o outro pardo, que se reconhecem como obsoletos de esquerda, não foi um processo sem sofrimento deixar, mesmo que parcialmente, “nossa bolha”. De todo modo, enfatizamos que obsoletos e atualizados, esquerda e direita, não podem ser reduzidos a sinais positivos e negativos, a despeito das preferências e posições dos autores. Acreditamos, nesse momento da pesquisa, que pode haver um potencial emancipador tanto no situação existencial atualizada e obsoleta que, de resto, não são homogêneas.
Foi em Porto Alegre e em São Paulo, em 2018, conversando com alguns motoristas de aplicativo, que tivemos a certeza de que valeria a pena investir nessa investigação. Escutar e conversar com esses motoristas, eleitores do Bolsonaro, mostrou-nos o quanto a esquerda diminuiu ou perdeu a sua capacidade de dialogar com o que alguns autores têm chamado de precariado.
Isto é: foram os motoristas de aplicativo, dessas cidades, inicialmente, que confirmaram que as nossas hipóteses tinham algum sentido. Hipóteses já anunciadas na cidade do Rio de Janeiro, em 2016, quando o livro Atualismo 1.0 foi gestado. Naquela ocasião, os motoristas de aplicativo já apontavam a vitória de Bolsonaro. Achávamos que era um fenômeno local do Rio, um Estado arrasado pela violência, que vivia diretamente a crise da Petrobrás e os escândalos de corrupção. E, também, porque muitos dos motoristas com os quais conversamos eram e foram militares ou pelo menos tinham relação com militares. A história nos mostrou que estávamos errados, como a maioria dos que nos leem. Aliás, o Uber foi tema de algumas junk news da campanha eleitoral:

TipologiaO projeto de deixar para trás o capitalismo está sendo substituído pelo “atualismo” — a noção de que todas as mudanças se fazem dentro do sistema e, o mundo se divide em “atualizados” e “obsoletos”. Por que a esquerda está perdendo este debate? Como ele se relaciona com a eleição de Bolsonaro? Tipologia

Enquanto o sujeito moderno entendia-se como acelerador ou desacelerador do processo histórico, a depender de suas posições político-existenciais, o sujeito atualista parece não esperar mais ter controle sobre o tempo histórico. Frente a um presente que continuamente se reproduz, ele é levado a estar atualizado ou obsoleto, com diversas possibilidades de modulação. O atualismo, como valor social e ideologia hegemônica, em certas dimensões da vida atual, produz continuamente ondas de obsolescência. Sua fronteira final e decisiva é o próprio humano, que não apenas deixa de ser visto como fator decisivo das transformações históricas, mas pode se tornar inclusive o elemento a ser descartado por supérfluo.
Ao que parece, o sujeito atualizado procura se compreender como uma espécie de surfista, que tenta, continuamente, equilibrar-se nas ondas de atualização, e retirar dessa situação de perigo o seu lucro e o seu sentido existencial. Aliás, ele sabe nadar após a submersão. Já o sujeito obsoleto existe com a contínua sensação de sua incapacidade de sobreviver à próxima onda. Não por acaso, o vocabulário da extinção é continuamente invocado para caracterizá-lo. Ele é o peixe fora d’água ou o dinossauro que se recusa a desaparecer.
Embora a tipologia atualizados e obsoletos já estivesse sugerida em Atualismo 1.0, ainda não havíamos atentados para a possibilidade de cruzá-la com as definições clássicas de direita e esquerda. Esse cruzamento começou a nos parecer útil para a compreensão daquilo que poderia aproximar, existencialmente, a sua relação com a temporalidade, como atualizados de direita e de esquerda e obsoletos de direita e de esquerda. Da mesma forma, as vozes que trazemos aqui nos mostram que é possível pensar em como certas pontes entre atualizados e obsoletos podem ou não ser construídas dentro de um mesmo espectro ideológico. Ou seja, seria possível unir atualizados e obsoletos em torno de uma mesma agenda política? Quando nos colocávamos perguntas como essa, estávamos pensando no enorme abismo que, como docentes, visualizávamos entre a nova e a velha esquerda, entre as pautas identitárias e ecológicas, por exemplo, e a agenda social-desenvolvimentista. As vozes aqui invocadas ainda reforçam essa constatação inicial.
Na teorização sobre o atualismo, tentamos deixar claro que, enquanto ideologia, o atualismo não oferece futuro aos obsoletos, embora a existência deles funcione como legitimação funcional das demandas por atualização. Nossas investigações indicam que há um lugar sistêmico para os obsoletos no atualismo e que esse lugar parece ter sido descoberto pelas direitas globais. Para além dessa posição funcional, ser obsoleto, assim como ser atualizado, pode conter uma força emancipatória. Para começar a pensar nas possibilidades analíticas dessas tipologias – e que fique claro, não são descrições realistas, mas manipulação do real, utilizada como ferramenta para melhor observá-lo -, chegamos a este primeiro diagrama que procura, de modo provocativo, classificar alguns tipos dos mundos-vida atual:
Como não é nossa intenção aqui descrever minuciosamente cada um desses tipos, que de resto apenas exemplificam as situações, sem qualquer pretensão de esgotamento, nos limitaremos a apontar quatro perfis que acreditamos poder exemplificar melhor o aspecto de cada tipo.
O motorista de aplicativo é o nosso grande personagem. Ele encarna o obsoleto de direita integrado, ele é capaz de celebrar e admirar a força destrutiva do capitalismo atualista, ser uma de suas vítimas e, ao mesmo tempo, sobreviver funcionalmente em suas fronteiras. No ano passado, a venda de carros no Brasil bateu recordes, apesar e em função da crise econômica. Muitos desempregados, dentre eles homens brancos com curso superior, financiaram um automóvel para trabalhar no aplicativo. O que torna a situação atualista extrema é todos eles saberem, em algum grau, que o sentido de sua atuação no Uber é ajudar a empresa a desenvolver um veículo autônomo. É como aguardar o apocalipse de camarote. Nas conversas com esses motoristas sempre nos impressionava o entusiasmo de sua adesão ao sistema, mesmo sabendo que dele estaria excluído. Os outros tipos de obsoletos de esquerda são mais claramente nostálgicos. Nos motoristas, a nostalgia parece se manifestar mais com relação aos valores, raça, gênero e classe. Quando não estão distraídos com o futuro tecnológico, do qual podem ser apenas usuários periféricos, sonham com um passado fantasioso em que pobres, mulheres e gays sabiam seus lugares.
O nosso tipo-ideal obsoleto de esquerda é o líder sindical de alguma categoria do serviço público. Ele representa no Brasil aqueles que o discurso atualista considera os privilegiados, trabalhadores com direitos e poder político. Como as estruturas sindicais são, geralmente, corporativamente congeladas, as lideranças podem recusar tudo aquilo que o atualizado considera o seu oxigênio: as redes sociais e as novas tecnologias de comunicação e deliberação. O sindicalista público exerce a possibilidade da obsolescência como um privilégio que precisa ser garantido contra todas as forças do futuro atualista. O limite de sua situação político-existencial é duplo, pois não consegue avançar de uma agenda reativa, na defesa das prerrogativas de sua categoria, e tem enormes dificuldades estruturais de universalizar o próprio futuro. Ele, então, passa a encarnar o arquétipo da esquerda tradicional, que oferece como futuro a manutenção de direitos em um contexto social em que esses mesmos direitos nunca foram universalizados.
Obsoletos de esquerda e direita encontram na nostalgia um refúgio comum, embora para a esquerda aquilo que se deseja manter é mais imediato, como ficou evidente no slogan “nenhum direito a menos”. Ao ampliar o serviço público e se esforçar para ampliar o emprego privado formal, os governos petistas acertaram em cheio, mas sem transformações e reformas estruturais, as condições para a manutenção dessas realidades logo se esgotaram – isso sem falarmos nas forças políticas e sociais adversárias que trabalharam para inviabilizar e limitar o alcance do projeto petista.
Dentre os atualizados de direita, destacaremos o inovador-empreendedor. Ele ou ela entendem a si mesmos como os grandes surfistas da atualização. Todos os problemas políticos e sociais poderiam ser rapidamente resolvidos com a adoção de novas tecnologias, com a criação destartups e centros de inovação. Para ele, o obsoleto tem valor apenas como matéria-prima barata para alimentar seus bancos de dados. Ele é, por exemplo, um desenvolvedor a serviço do Uber, que vai explorar os dados gerados por passageiros e motoristas. O problema é que o mundo hipercompetitivo, em que ele ou ela acreditam viver, pode substituí-lo a qualquer momento. A ansiedade é a forma básica em que vivem o tempo; e as drogas de aceleração um de seus aditivos. Recentemente, uma pesquisa realizada pela universidade de Oxford atribuiu a hiperatividade das enguias do rio Tâmisa às altas taxas de cocaína na água, cuja origem parece ser a urina dos moradores. O fato talvez justifique a atribuição de Londres como cidade mais atualista da Europa.
A forma mais corriqueira dos atualizados de direita lidarem com a sua ansiedade é transferi-la, como responsabilidade e culpa, para os obsoletos de direita e de esquerda, que respondem com ressentimento ou identificação fantasiosa a essa atribuição. Esses atualizados são igualmente a inteligência do atualismo, que, em revistas, redes sociais, tvs e palestras, segregam diariamente a doutrina da atualização e suas promessas. Esse discurso infiltra todas as dimensões da vida social até se projetar como um clima social. Para ficar apenas em um exemplo, o número de outubro de 2018 da revista de bordo da companhia aérea Gol traz na capa um “pesquisador” com a chamada: “Temos pressa. Pesquisador Ronaldo Lemos indica caminhos para impedir que os governos se tornem obsoletos na era da tecnologia”. No mês do primeiro turno da eleição, o número inteiro vendia a promessa de uma aceleração atualista. Nas palavras de Lemos, “percebi que ou o governo vira tecnologia, ou ele deixa de ser governo”. A matéria continua prometendo uma uberização do governo: “quer dizer: assim como aconteceu com as cooperativas de táxi e com os aparelhos de fax, é possível que soluções digitais resolvam as demandas do cidadão melhor do que os governos, tornando-os obsoletos”. Ou seja, a atualização do governo é a utopia libertária de um mundo sem governo – logo, sem funcionários públicos e sem sindicalistas.
No mesmo número da revista, a propaganda da montadora Chevrolet ordena “Não pare de evoluir”, em uma curta coluna sobre os desafios futuros da educação a articulista promete ou ameaça, “mas em um futuro próximo, muito próximo mesmo, que já está na nossa esquina, as máquinas farão muito do que nossos filhos aprendem na escola hoje. As máquinas acabarão com profissões inteiras, tomarão seus espaços”. Outro articulista, em matéria intitulada “O fim é o começo”, profetiza, “mais do que um momento de transição, estamos vivendo a falência do mundo que conhecemos. Perdeu o sentido. Acabou-se diante das infinitas possibilidades e necessidades de criação de um novo mundo. ‘aceita que é mais fácil’, dizem por aí”. Esse “otimismo” que, ao longo da campanha eleitoral, encantava os seguidores de Bolsonaro, atingidos pela nova linguagem fragmentada e rasteira, ia, ao mesmo tempo, destruindo as instituições democráticas pelo uso abusivo da tecnologia. A questão é que o fim do governo sonhado pelos atualizados de direita é o fim da política e da democracia, por isso poderiam não se sentir ameaçados pelo obscurantismo bolsonarista. O lugar dos evangélicos nessa tipologia é duplo. Os pastores tendem a ser atualizados, ao contrário, de suas ovelhas. De todo modo, os praticantes que entrevistamos, em função das atividades empreendedoras que desenvolvem, nós pareceram mais híbridos dos dois tipos.
Para os atualizados e atualizadas de esquerda, a eleição de Bolsonaro parece ter sido o apocalipse sem camarote. No lugar de selecionar um personagem, o caminho mais curto para a nossa aproximação foi considerar o ativista – não o militante obsoleto – o ponto de apoio para produzirmos o modelo desse tipo de atualizado. Como o atualizado de direita, o de esquerda também tende a se ver como representante de forças que moldam ou deveriam moldar o futuro, ainda que em um mar mais agitado, ele ou ela também podem se ver como surfistas das profundas transformações do mundo atualista. Também aqui, e não raro, veremos o escândalo contra os obsoletos, afinal, como seria possível que no mundo atual ainda existam racistas e machistas ou, mesmo, comedores de carne? Mas, diferente dos atualizados de direita, os ativistas, como as vozes sugerem, acreditam que precisam atuar contra as tendências automáticas do capitalismo atualista, e isso os aproxima da tradição emancipatória da esquerda tradicional.
No entanto, para além dessas análises, a pesquisa até o momento nos mostrou que, na relação entre atualizados e obsoletos de esquerda, na conjuntura brasileira recente, poucas pontes parecem ter sido construídas entre esses dois blocos, apesar de alguns sinais positivos recentes nos mostrarem que há uma tentativa de aproximação, como o maior diálogo entre o PSOL e o PT. O que gostaríamos de destacar, no entanto, é que os atualizados de esquerda, mesmo a contragosto, também parecem provocar efeitos de angústia e ressentimento nos obsoletos de esquerda, fenômeno apontado no sucesso da palavra esquerdomacho ou da resistência de certa inteligência tradicional de matriz marxista levar a sério a agenda racial.

Breve contexto

O fim do ano de 2018 terminava como ano e começava com uma promessa (pelo menos para alguns atualizados de esquerda): o primeiro escândalo de um governo que sequer tinha começado: o caso Queiroz! Ele envolvia e envolve corrupção na família do então eleito presidente do Brasil: a família Bolsonaro. O escândalo chegou tarde? Talvez. E se “toda” a esquerda estivesse apoiado o Ciro Gomes? E se Lula tivesse tido a chance de se candidatar?
Pois bem: essas eram as questões que permearam as “páginas seguintes” do WhatsApp e do Facebook. Mas, a essa altura, ser ou não ser, ter sido ou não ter sido, já não importava à maioria da população: tínhamos um novo presidente no Brasil, eleito pela via democrática. O voto, pelo qual lutamos tanto já não nos representa com a mesma força que nos representou há três décadas? Independentemente da crise da representação política a questão em nossa bolha era saber: “onde está o Queiroz?”
Enquanto isso, bolsonaristas vibravam com o discurso em libras e a performance da primeira dama. Do outro lado: Goiabeira, Queiroz, Globalismo, desencontros e escândalos.
Muitos dos atualizados de direita, de fato, ficaram constrangidos com o início atrapalhado, e com alguns dos ministros escolhidos pelo eleito presidente. Mas, “antes isso do que o PT”. “E se tiver ruim, a gente tira”. E o vídeo com dúvidas sobre a facada também ganhava força entre os atualizados e obsoletos de esquerda: “Viralizar esse vídeo vai encurtar o tempo de Bozo na ‘presidência’”.
Além disso, ainda tivemos o episódio do “rosa para meninas e do azul para meninos”, protagonizado pela nova ministra dos Direitos humanos: Damares.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

“Os mulatos brasileiros são todos mau-caráter”, diz político de Santos, por Pragmatismo Político.

áudio racista secretário santos
Redação Pragmatismo
Redação Pragmatismo
Editor(a)
RACISMO NÃO18/APR/2019 ÀS 20:32COMENTÁRIOS

Vaza áudio racista de secretário-adjunto de Turismo de Santos. "Essa cor é uma mistura de uma raça que não tem caráter. É verdade, isso é estudo. Todo pardo, todo mulato, tu tem que tomar cuidado". Político tentou se justificar após a repercussão
áudio racista secretário santos
Áudio com teor racista enviado em grupo de Whatsapp pelo secretário-adjunto de Turismo de Santos, SP, revoltou internautas (Foto: Reprodução/Twitter)


“Esses caras, têm que desconfiar de todos. Todos que tu conhecer. Essa cor é uma mistura de uma raça que não tem caráter. É verdade, isso é estudo. Todo pardo, todo mulato, tu tem que tomar cuidado”.

A fala acima é do secretário-adjunto de Turismo de Santos, Adilson Durante Filho. Trata-se de um áudio de WhatsApp que vazou nesta sexta-feira (18) e repercutiu fortemente nas redes sociais.

Em nota, Duarte Filho assume a autoria e diz que o áudio foi gravado “em um momento de infelicidade e levado pela emoção, em decorrência de um fato que muito me abalou”. O destinatários, segundo ele, eram integrantes de “um pequeno grupo de supostos amigos de WhatsApp”.

De acordo com o prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), Durante Filho pediu licença não remunerada após a divulgação do áudio. A prefeitura acatou, mas não informou se vai exonerá-lo do cargo.

Santos Futebol Clube
Além de secretário-adjunto de Turismo, Adilson Durante Filho é atualmente conselheiro do Santos Futebol Clube. A declaração feita pelo político foi desaprovada pela torcida Santos FC Antifascista, que divulgou nas redes sociais um vídeo com o áudio. Nos comentários da publicação, torcedores pedem sua saída do clube.

Em nota, o Santos Futebol Clube destacou sua trajetória no combate ao racismo. “O time mágico de Pelé, Pepe, Coutinho, Zito e tantos outros gênios do futebol espalhou aquela maravilhosa imagem de brancos e negros se abraçando para comemorar gols que encantavam o mundo. Até hoje mantemos acesa essa tradição”, diz o comunicado.

A íntegra do áudio
A seguir, leia a transcrição do áudio e depois ouça o conteúdo:

“Ô Caco, vou falar uma coisa pra vocês, aqui a gente tá entre amigos, tá? Sempre que tiver um pardo, o pardo o que que é, não é aquele negão, né? Mas também não é o branquinho. É o moreninho da cor dele. Esses caras, têm que desconfiar de todos. Todos que tu conhecer. Essa cor é uma mistura de uma raça que não tem caráter. É verdade, isso é estudo. Todo pardo, todo mulato, tu tem que tomar cuidado. Não mulato tipo o Pedro. O Pedro é tipo pra índio. Tipo chileno, essas porra (SIC). Tô dizendo o mulato brasileiro, entendeu? Os pardos brasileiros são todos mau-caráter. Não tem um que não seja.”



Pedido de desculpas
Confira a íntegra da nota divulgada por Duarte Filho:

“Com relação a um antigo áudio de alguns anos atrás que circula nas mídias sociais, de minha autoria, gostaria de expor que, em um momento de infelicidade e levado pela emoção, em decorrência de um fato que muito me abalou, acabei me expressando de forma absolutamente diversa das minhas crenças e modo de agir. Jamais tive a intenção de atingir quem quer que seja, até porque assim me manifestei em um pequeno grupo de supostos amigos de WhatsApp. Consigno que não tenho qualquer preconceito em razão de cor, raça ou credo, pois minha criação não me permitiria ser diferente. Peço, humildemente, desculpas a todos que se sentiram ofendidos, e expresso, por meio deste comunicado, meu mais profundo arrependimento quanto às palavras genericamente proferidas”

Reforma da Previdência de Bolsonaro é a mais injusta e a que mais afeta vulneráveis, por Saúde em Debate.

A reforma da previdência que queremos é aquela que amplia direitos, corta os reais privilégios e garante dignidade aos brasileiros


FOTO: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
da Saúde em Debate
16 de abril de 2019, 15h21    0
Por Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato
Ana Maria Costa
Maria Lucia Frizon Rizzotto
na Saúde em Debate
Em recente entrevista, Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do insuspeito FMI (Fundo Monetário Internacional), declarou que “o capitalismo está sob séria ameaça” porque “parou de prover as massas e quando isso acontece, as massas se rebelam contra o capitalismo”; acrescentando que isso pode acontecer mais cedo do que se imagina. Para o economista, os governos não podem mais ignorar a desigualdade social em suas políticas econômicas.

Na mesma direção, o ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, do governo conservador de Emmanuel Macron, que enfrenta forte oposição do movimento dos Coletes Amarelos, declarou que o capitalismo pode entrar em colapso se a desigualdade global continuar aumentando, sugerindo um imposto corporativo mínimo para restringir o poder das corporações multinacionais. Para o ministro, ou o capitalismo se ‘reinventa’, ou não sobreviverá ao aumento das desigualdades em todo o mundo.

Apesar da alegação de defesa dos interesses dos trabalhadores, as centrais sindicais não foram incorporadas ao processo de elaboração da proposta, fato inédito em todos os governos desde a redemocratização
Se bem as declarações demonstrem preocupação essencialmente com os riscos ao capitalismo do que com a desigualdade, é claro o reconhecimento de que medidas globais devem ser adotadas. O avanço da financeirização sobre os recursos nacionais em nível global tem ampliado a concentração de renda, valendo-se, para isso, da asfixia da política democrática como campo legítimo de intermediação dos conflitos decorrentes das condições estruturais do capitalismo. O crescimento de governos conservadores e de extrema direita nacionalistas associado à criminalização de governos social democratas ou de centro-esquerda são consequências desse novo estágio do capitalismo.

Streeck argumenta sobre a incompatibilidade atual entre capitalismo e democracia, que teria prosperado, na verdade, por muito pouco tempo, ou seja, nos 30 anos gloriosos do período pós-Segunda Guerra Mundial. Mesmo em concordância com a tese, é preciso ressaltar que se o conjunto de elementos que sustentou os anos dourados desapareceu ou se fragilizou, a experiência democrática, no sentido da participação política e do acesso a direitos sociais, é capaz de criar raízes e valores sociais que podem ser resgatados em defesa de direitos sociais restringidos.

A maior e mais perene experiência de democratização social do capitalismo são os sistemas públicos de aposentadorias e pensões. Mesmo se criados por regimes conservadores, autoritários e com o objetivo de assegurar os preceitos básicos da acumulação capitalista, garantindo a reprodução extensiva da força de trabalho, esses sistemas cresceram e se aperfeiçoaram pela intensa participação da classe trabalhadora organizada e se transformaram no pilar dos direitos sociais. Nesse sentido, as reformas levadas a cabo nos sistemas de aposentadoria e pensões têm o sentido de concentrar os recursos dos Estados nacionais, sob o apelo dos supostamente necessários ajustes fiscais, mas têm também o objetivo de restringir e suprimir o potente vínculo de solidariedade social que os sistemas de aposentadorias geraram nas sociedades ocidentais.



No Brasil, uma inédita associação entre extrema direita e liberalismo econômico assumiu o governo em janeiro de 2019. Sob a presidência de Jair Bolsonaro, uma pauta conservadora é sustentada por propostas liberais no campo econômico, que tem na reforma da previdência social seu principal objetivo. A previdência social brasileira é a instituição mais sólida e reconhecida no vasto campo dos direitos sociais. A experiência da previdência social e de suas contradições derivou muito do aparato social que temos hoje. O Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios foram, em grande parte, construídos a partir da crítica à experiência de vinculação da assistência médica à previdência social; assim como a assistência social derivou da crítica à experiência da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e demais práticas assistencialistas.

A Constituição Federal de 1988 criou o capítulo inédito da ordem social que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social; e nele, a seguridade social, como conceito organizador da proteção social, que compreende a saúde, a previdência social e a assistência social. Desde então, muitas alterações, já estudadas pela literatura, foram feitas nessa estrutura, infelizmente mais restritivas do que inclusivas. No caso da previdência, reformas foram empreendidas em todos os governos desde a Constituição, mas a proposta feita pelo governo Jair Bolsonaro é a mais ampla, visto que altera radical e profundamente o que foi construído desde a década de 1930. É também a mais injusta com os brasileiros e a que mais aumenta riscos aos grupos mais vulneráveis de mulheres e idosos.

Não há nenhuma garantia de que a receita obtida com a reforma seja aplicada em benefício da população, em investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura, como alega a exposição de motivos da proposta
A reforma do ministro Paulo Guedes é apresentada por meio da Proposta de Emenda à Constituição 06/2019 (PEC-06/2019). Na exposição de motivos, a reforma é justificada como necessária para que a previdência tenha sustentabilidade no presente e para as futuras gerações, garantindo maior equidade. A partir desses argumentos, ela propõe uma série de mudanças para o acesso a benefícios previdenciários: ampliação do tempo de contribuição e de idade, redução do valor de pensões, restrição à aposentadoria rural e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Por outro lado, propõe uma reestruturação total da previdência que acaba com o regime de repartição/solidário e cria um regime – de capitalização –, expondo, dessa forma, o interesse central do grupo que governa. Dada a extensão da proposta, salientamos, com base nas análises do grupo de estudos Futuros da proteção Social, coordenado pela professora Sonia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alguns aspectos que precisam ser amplamente discutidos e compreendidos:

– A ausência de debate da reforma com a sociedade. Apesar da alegação de defesa dos interesses dos trabalhadores, as centrais sindicais não foram incorporadas ao processo de elaboração da proposta, fato inédito em todos os governos desde a redemocratização.

– O argumento da sustentabilidade. Questionado por especialistas que comprovam a ausência de deficit se consideradas as premissas constitucionais do orçamento da seguridade social, a retirada de recursos da previdência pela Desvinculação de Recursos da União (DRU) e a ampla sonegação e isenção de impostos e contribuições concedidas às empresas. Soluções na direção desses três aspectos poderiam melhorar o ‘caixa’ da previdência sem necessidade de alterações profundas. O governo apresentou um impacto líquido de cerca de R$ 1 trilhão em receitas com a reforma, mas não apresentou a base de cálculo que gerou esse valor, o que suscita desconfiança sobre o ganho real para as contas públicas. Da mesma forma, não há nenhuma garantia de que a receita obtida com a reforma seja aplicada em benefício da população, em investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura, como alega a exposição de motivos da proposta. Com o teto de gastos aprovado no governo Temer e já em aplicação (EC-95), os limites para as despesas já estão dados, o que torna a argumentação vazia e insustentável. Nesse sentido, como afirma o economista Ricardo Moreira, a reforma seria mesmo um ajuste fiscal.

Ao contrário do que afirmam seus defensores, a reforma não acaba com os privilégios; e pouco altera o setor reconhecidamente mais privilegiado, os militares, que são objeto de proposta em separado, esta, sim, elaborada com a participação da corporação
– No tocante aos benefícios e critérios de concessão, ao contrário do que afirmam seus defensores, a reforma não acaba com os privilégios e gera equidade; de outro modo, pouco altera o setor reconhecidamente mais privilegiado, os militares, que são objeto de proposta em separado, esta, sim, elaborada com a participação da corporação, vinculada a um plano de carreira com aumentos salariais, mas que mantêm inequidades entre níveis hierárquicos e entre as forças nacionais e estaduais (polícias militares e bombeiros), em favor das primeiras. Os funcionários públicos já haviam sido incluídos no teto do regime geral desde a reforma de 2003 do governo Lula, que acabou com a paridade e a integralidade e instituiu a contribuição aos fundos de servidores públicos. Nesse setor há, de fato, problemas de inequidade e deficit, mas que poderiam ser reduzidos com o cumprimento do teto salarial nacional.

– A reforma é mais radical e perversa com os trabalhadores do setor privado, trabalhadores rurais, mulheres e pobres. Os novos critérios de tempo de contribuição e de idade mínima são extremamente duros considerando-se as desigualdades regionais de expectativa de vida. O projeto considera a expectativa de vida de 76 anos para os brasileiros, quando se sabe que ela pode ser bem menor em regiões mais pobres e na população com piores condições de vida, seja no meio rural, seja nas periferias das grandes cidades. A exigência de 20 anos de contribuição para a aposentadoria rural, além de 60 anos para homens e mulheres, impede que esses trabalhadores, em especial as mulheres, aposentem-se.

– A irregularidade e a informalidade do trabalho vão restringir a aposentadoria por contribuição dos urbanos. A reforma desconsidera os levantamentos recentes dos resultados da reforma trabalhista, que mostram que não aumentou a formalização do trabalho, como apregoado. Os impactos do trabalho inseguro, com baixos salários e irregular, vão reduzir as contribuições à previdência, aumentar o adoecimento dos trabalhadores e a demanda por auxílio doença. Essa demanda será reprimida pela Medida Provisória nº 8716, que visa combater fraudes mediante incentivos financeiros a médicos peritos e técnicos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para enrijecer os controles sobre benefícios.

– Chama-se atenção para as mudanças no BPC, que atende idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo. Esse benefício não contributivo tem alto impacto nas condições de vida dos segmentos que atende e foi alvo de mudanças, já que é de um salário mínimo, considerado valor ‘alto’ para miseráveis. A reforma propõe um benefício geral aos 60 anos no valor de R$ 400,00; e o pagamento de um salário mínimo se daria apenas aos 70 anos. Como as pessoas com deficiência precisam passar por um rigoroso processo de avaliação médica e social pelo INSS, e considerando os princípios da citada Medida 871, supõe-se que o acesso será ainda mais difícil. É importante frisar que muitos são crianças e jovens com incapacidades graves que dependem integralmente de assistência, em geral dadas pelas mães, que deixam o mercado de trabalho para cuidar dos filhos. Essas não vão conseguir se aposentar, e os filhos correm o risco de ficar sem o BPC.

– A mudança para o regime de capitalização altera a estrutura do regime previdenciário atual, uma vez que ainda está muito pouco clara na reforma. A PEC indica que será um regime do tipo “contas nocionais” (virtuais) – “capitalização em regime de contribuição definida, admitido o sistema de contas nocionais” –, mas não define claramente o que é. Pelo que consta na exposição de motivos, o regime é de capitalização pura tanto para o regime geral quanto para os servidores públicos, com a criação de um piso básico universal de um salário mínimo. Regimes de capitalização têm, em geral, custos altos de transição, que a proposta não explicita como e com quais recursos seriam cobertos.

Sem o mecanismo solidário de contribuições do conjunto da sociedade, com altos custos de administração e a incerteza do valor do benefício, a experiência chilena foi negativa. Os valores das aposentadorias foram drasticamente reduzidos e a pobreza entre os idosos cresceu
O regime de capitalização foi adotado primeiramente no Chile pela ditadura de Pinochet, gerando inúmeros problemas. Isso porque as contas são individuais, mantidas apenas pelo próprio trabalhador (sem participação dos empregadores), geridas por instituições privadas. O aposentado recebe proporcionalmente ao que contribuir e pelo tempo que sua conta individual permitir. Sem o mecanismo solidário de contribuições do conjunto da sociedade, com altos custos de administração e a incerteza do valor do benefício, a experiência chilena foi negativa. Os valores das aposentadorias foram drasticamente reduzidos, por vezes, interrompido o benefício, ampliando a pobreza entre os idosos. Para o economista chileno Andras Uthoff, a “capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres”, e não trouxe benefícios para a sociedade, já que cerca de 40% dos recursos do fundo dos trabalhadores está aplicado fora do país. As características de renda, trabalho e emprego no Brasil, além de nossa altíssima desigualdade, não são nada promissoras para um regime como esse.

Diante de tantas incertezas, de medidas que agravam as condições de vida e sem garantias de benefícios gerais para a população, a reforma proposta pelo governo enfrenta muitas resistências na sociedade. Para a condição de saúde dos brasileiros, os malefícios são óbvios, com riscos de agravamento das condições de vida de idosos e beneficiários da previdência, de mulheres em especial.

Para concluir, retomamos os princípios da Reforma Sanitária defendida pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em que se compreende que a saúde deve fazer parte de um amplo sistema de proteção social, integral, democrático e participativo. A reforma da previdência que queremos é aquela que amplia direitos, corta os reais privilégios e garante dignidade a todos os brasileiros. Essa, não!

Bolsonaro governa para o playboy que corre acima do permitido e causa acidentes, por Socialista Morena.

Presidente já tomou três decisões que beneficiam maus motoristas; especialista diz que medidas só agradarão "infrator contumaz"


FOTO: ARQUIVO AGÊNCIA BRASIL
Da Redação
15 de abril de 2019, 12h58    0
Já sabemos exatamente qual é o perfil do brasileiro para quem Jair Bolsonaro governa: os playboys que dirigem mal, correm acima do permitido e causam acidentes nas ruas e estradas. Enquanto a paralisia é geral em outras áreas, como o combate ao desemprego, o governo anunciou três medidas que beneficiam os maus motoristas: cancelou a instalação de radares nas rodovias federais e pretende dobrar o prazo para renovação da carteira nacional de habilitação de 5 para 10 anos e o limite para a suspensão da CNH de 20 para 40 pontos.

Para José Aurélio Ramalho, do Observatório Nacional de Segurança Viária, essas medidas só beneficiam o “infrator contumaz” e não a sociedade como um todo. “O radar está ali para pegar o infrator contumaz, que pega três, quatro multas por ano. Esse é o mesmo cara que joga o lixo no chão, que não recicla o seu lixo, está no DNA dele a infração. A grande maioria da sociedade, 97%, não comete infração. O grande volume das infrações está concentrado nestes 3%, 4% dos motoristas do país todo.”

No twitter, Bolsonaro justificou a decisão dizendo que os radares só servem para “dar dinheiro” aos Estados.


Jair M. Bolsonaro
@jairbolsonaro
 · 31 de mar de 2019
 Após revelação do @MInfraestrutura de pedidos prontos de mais de 8.000 novos radares eletrônicos na rodovias federais do país, determinei de imediato o cancelamento de suas instalações. Sabemos que a grande maioria destes têm o único intuito de retomo financeiro ao estado.


Jair M. Bolsonaro
@jairbolsonaro
Ao renovar as concessões de trechos rodoviários, revisaremos todos os contratos de radares verificando a real necessidade de sua existência para que não sobrem dúvidas do enriquecimento de poucos em detrimento da paz do motorista.

39,2 mil
07:22 - 31 de mar de 2019
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Mas o Observatório rebate o presidente e diz que isso não é verdade. “Os radares estão instalados mediante estudos técnicos. Nenhum radar é instalado antes de ser averiguado local, fluxo de veículos e acidentes que o local propicia. É um contrassenso do governo federal essa atitude”, disse José Ramalho. “O cidadão de bem não se preocupa com o radar, porque o radar está ali para proteger o cidadão.”

Em março, o presidente já tinha criticado as lombadas eletrônicas, que para ele são inúteis. “Há uma quantidade enorme de lombadas eletrônicas no Brasil. É quase impossível você viajar sem levar uma multa. E sabe, ou desconfia, que, no fundo, o objetivo não é diminuir acidentes”.

Bolsonaro justificou a medida dizendo que os radares só servem para arrecadar dinheiro, mas o Observatório de Segurança Viária o desmente. “Nenhum radar é instalado antes de ser averiguado local, fluxo de veículos e acidentes que o local propicia”
Segundo Bolsonaro, o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) estava agindo por interesse de políticos antes do início de seu mandato e que o grande número de barreiras eletrônicas está ligada à arrecadação, e não à redução de acidentes.

“Decisão nossa: não teremos mais nenhuma nova lombada eletrônica no Brasil. As que existem, quando forem perdendo a validade, não serão renovadas. Vale lembrar que o DNIT estava, até pouco tempo, na mão de partidos políticos. Isso acabou e esse departamento está, agora, voltado para trabalhar 100% em benefício dos condutores”.

Estudos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) mostram que os equipamentos eletrônicos foram capazes de reduzir em 30% o número de acidentes nos pontos onde estavam instalados e em 60%  o número de mortes. Em pontos muito críticos, com grande incidência de acidentes de trânsito, o número de mortos passou a quase zero depois da instalação dos equipamentos de controle de velocidade.

No Calvário, enquanto Jesus agonizava, nasceu o primeiro movimento de resistência feminina, por Juan Arias.


Diante dos apóstolos, todos homens, amedrontados, um punhado de mulheres lideradas por Maria Madalena decidiu desafiar o poder e ficou ao lado do crucificado durante toda a agonia



Cristãs durante missa na Sexta-feira Santa, em Lahore, Paquistão.
Cristãs durante missa na Sexta-feira Santa, em Lahore, Paquistão.  AP

Foi em um lugar considerado infame, chamado Gólgota (“lugar das caveiras”) ou Calvário, nos arredores de Jerusalém − no qual os condenados à morte pelos romanos eram deixados nus para agonizar, pregados no que se chamava de “estaca de tortura”, hoje chamada cruz −, que surgiu um dos primeiros movimentos de resistência feminina da História.
Foi naquele terrível lugar de tortura que o judeu Jesus foi conduzido à morte, após ter sido condenado pelo governador da província da Judeia, Pôncio Pilatos. Os romanos, em conivência com algumas das altas autoridades religiosas judaicas, acusavam Jesus de ser um subversor da ordem. Seu crime era estar sempre rodeado por pessoas que o poder desprezava, como leprosos, endemoniados, prostitutas e pescadores incultos.



E foi aos pés da estaca de tortura em que Jesus agonizou, no meio de uma terrível crise de solidão que o fez exclamar “meu Deus, por que me abandonaste?”, que nasceu o primeiro movimento de resistência das mulheres −, que caracterizaria o início do primeiro cristianismo, nascido do judaísmo. Nele, as mulheres foram as protagonistas, até que o apóstolo Paulo, chamado de “o postiço” porque não havia conhecido Jesus e foi um convertido posterior, decidiu retirá-las da esfera do poder, que seria só masculino. As mulheres estariam “subordinadas ao homem” em tudo, dentro e fora da Igreja.
No entanto, a semente da resistência feminina continuou viva. Dois mil anos depois, ela volta a erguer a cabeça fora e dentro da Igreja. Tudo começou durante o drama da paixão, quando os apóstolos, desiludidos ao ver seu líder, de quem esperavam um reino melhor, ser crucificado como um malfeitor qualquer, esconderam-se com medo de que também fossem perseguidos.
E foi naquele momento que, diante dos apóstolos, todos homens, amedrontados, um punhado de mulheres lideradas por Maria Madalena, entre as quais estava também a mãe de Jesus, decidiu desafiar o poder e ficou ao lado do crucificado durante toda a agonia. Além disso, passado o sábado, que era de descanso total para os judeus, no domingo, “antes de amanhecer”, Maria Madalena saiu, sem medo, rumo ao Gólgota para ver onde tinham enterrado Jesus.
Os quatro evangelhos diferem às vezes sobre o grupo de mulheres valentes que desafiaram tudo para estar ao lado do crucificado. Mas todos eles sempre mencionam Maria Madalena como a líder do grupo. E foi para ela que Jesus apareceu primeiro, antes de aparecer para os apóstolos. É algo que sempre atormentou um dos mais famosos pais da Igreja, São Tomás de Aquino, que se perguntava, desconsolado, por que Jesus, que tinha criado uma comunidade de apóstolos, todos homens, teve de aparecer para uma mulher. Sobretudo quando, na cultura judaica daquela época, a mulher não podia nem estudar as Escrituras nem ser testemunha confiável em um julgamento. E se a mulher era descoberta em adultério, era condenada à morte por lapidação. O homem, não.
Assim, quando Maria Madalena, que na teologia moderna aparece cada vez com maior credibilidade como esposa de Jesus, mandou dar a Pedro, que estava escondido, a notícia de que Jesus havia ressuscitado, o discípulo não acreditou. Só quando Jesus começou a aparecer também para os outros apóstolos é que eles perderam o medo, e todos acabaram dando a vida pelo Mestre.

No entanto, já era tarde. As mulheres continuaram com seu movimento de resistência, conscientes de que tinham sido elas e não os apóstolos, nem mesmo Pedro, as primeiras a saber que Cristo tinha ressuscitado e estava vivo. Mas foi ainda no início do cristianismo que as mulheres acabaram relegadas a um segundo plano e teve início uma operação de desconstrução do poder feminino que dura até hoje. Foi nessa operação de relegar a mulher a um segundo plano, de mera ajuda aos homens, que a Igreja confundiu Maria Madalena com uma das prostitutas do Evangelho, e manteve esse erro até pouco tempo atrás.
Certamente, se a operação de desconstrução do poder feminino na Igreja tivesse fracassado, hoje o cristianismo seria diferente, livre do machismo que o invade. Até quando se perpetuará essa injustiça? Talvez não fosse necessário nenhum milagre como no Gólgota com Madalena. Bastaria que um grupo de cardeais decidisse escandalizar a ortodoxia e elegesse uma Papisa, com todos os poderes. Seria a vingança de Madalena, que repetiria a loucura do Gólgota sendo a primeira testemunha de que Jesus continuava vivo. Hoje, parece que ele morreu de novo. O que realmente morreu é a presença que, pela história e pela fé, a mulher deveria ter tido no cristianismo.
Lembro-me de uma das viagens do papa João Paulo II aos Estados Unidos. Uma religiosa o encarou, recordando-lhe a injusta discriminação que a mulher, protagonista no primeiro cristianismo, sofre hoje na Igreja. O papa polonês lhe recordou que, na Igreja, o lugar da mulher é “de joelhos diante da cruz”. Ele se esqueceu de que, de joelhos ou de pé, foi justamente aos pés de Jesus crucificado que nasceu o primeiro movimento de resistência da mulher na Igreja.
Feliz Páscoa da ressurreição a todos, crentes ou não. Todos nós precisamos de novas ressurreições pessoais e comunitárias. E do amor real ou simbólico de Madalena.
Como escreveu a poeta brasileira Roseana Murray na apresentação do meu livro Madalena, o Último Tabu do Cristianismo (editora Objetiva, Rio de Janeiro):
“O amor é o jogo maior,
o jogo mágico que se joga,
com pedras sagradas”.
Adere a