Em Belo Horizonte, caso emblemático de
alienação urbana: ao invés de projetar convívio harmonioso com rios,
prefeitura quer “contê-los” por meio de túneis faraônicos. Especuladores
agradecem; as enchentes persistirão
OutrasPalavras
Publicado 28/03/2019 às 19:14 - Atualizado 28/03/2019 às 20:14
Reúna todas as suas economias. Tome emprestado o máximo que
conseguir. Peça adiantamento do salário. Limpe o cofrinho das crianças.
Junte tudo em um saco grande, de papel. Reserve.
Disponha pedaços de
lenha em formato radial, como uma mandala. Coloque no centro o saco
com todo o dinheiro – garanta que não ficou nada nos bolsos –
jogue álcool e risque o fósforo. Pronto, suas reservas e os
empréstimos que você levará a vida para pagar arderão em poucos
minutos.
Esta é a receita tradicional, mas há outras. Você pode substituir a
fogueira por grandes obras de engenharia, por exemplo – o que traz a
vantagem de agradar construtoras amigas. Infelizmente, parece ser o que
pretende a Prefeitura de Belo Horizonte ao gastar 300 milhões de reais em obras que não solucionarão os problemas com enchentes na região de Venda Nova.
A Avenida Vilarinho
tem sido palco de tragédias ano a ano. Com as chuvas, o rio
transborda no fundo do vale. Este é o movimento natural, mas hoje as
áreas de inundação têm avenidas e casas. E a água chega ao fundo
do vale mais rapidamente, graças à crescente impermeabilização do
solo.
É evidente que se
deve buscar soluções para a região, onde morreram quatro pessoas
nas últimas chuvas. Mas é ainda mais evidente que o projeto
apresentado às pressas pela Sudecap não é a solução. No máximo,
desloca o problema de lugar, a um custo enorme para a população.
Esta avaliação quem faz são especialistas que trabalham há décadas
com a questão hídrica, ligados ao projeto Manuelzão, à UFMG e aos
Comitês de Bacias. Em uma carta apresentada recentemente à Prefeitura, estas entidades alertam que a obra é faraônica e tem alto grau de insegurança.
A carta bem lembra
que “os processos e erros que geraram os alagamentos da Avenida
Vilarinho são antigos e tornaram a questão complexa: não existe
uma única e mágica solução. Se não for entendido desta forma,
corre-se o risco de cair na tentação de simplificação e mais uma
vez gastar recursos públicos com resultados pouco eficientes”.
Quem estuda a
história das águas nas cidades sabe que as obras que supostamente
evitariam as enchentes, em muitos casos, acabaram por agravá-las –
graças a uma mentalidade rasa de engenharia, que ignora a dinâmica
da natureza e só ataca os sintomas.
Se aqueles que dedicam suas vidas ao tema afirmam que a solução
proposta tem alto grau de insegurança, por que a Prefeitura de Belo
Horizonte (PBH) insiste na obra caríssima? Para se ter uma ideia, com
300 milhões poderiam ser construídas quase 100 unidades de saúde com 15
consultórios cada. É um montante enorme, cuja aplicação deve seguir o
princípio da economicidade, previsto na lei orgânica do Município.
Este princípio é
especialmente ferido quando se olha para a infraestrutura existente
na região, bastante sucateada. Bacias de contenção, que ajudariam
a conter as águas, estão sem manutenção, danificadas e
inoperantes em tantos pontos. Não seria fundamental colocar em bom
funcionamento e garantir a manutenção das estruturas que já foram
feitas, com dinheiro dos contribuintes, para então se pensar em
novas obras?
O que diz a Câmara
de Vereadores sobre esta obra de altíssimo custo, feita sem
participação da sociedade, sem estudos que comprovem sua eficácia
e que se sobrepõe a investimentos anteriores?
As enchentes
demandam respostas efetivas, mas isso nada tem a ver com projetos
feitos às pressas, toscos e ineficazes. A solução para a Vilarinho
passaria por aumentar a captação da água da chuva onde ela cai
(nos terrenos e ruas dos bairros vizinhos), criar pontos
intermediários de retenção, deslocar o tráfego da beira do rio,
aumentando a área livre de absorção da cheia.
Tudo isto poderia
ser feito em tempo rápido, a partir de estudos sérios, com custos
menores. Poderia ser incorporada ainda uma perspectiva ambiental e de
lazer, criando-se um parque ciliar, como se faz em tantos lugares do
mundo.
Tudo isto foi informado à PBH na carta das entidades aqui citada. Se o
prefeito e seus secretários preferirem colocar o dinheiro dos
contribuintes na fogueira das construtoras, deveriam assumir
responsabilidade pelo gasto. Se as enchentes persistirem na região, quem
devolverá os R$ 300 milhões à cidade?
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