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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Fragmentos para dias nada felizes, por Márcia Tiburi.


Fragmentos para dias nada felizes
A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas (Foto: Taifur Azam/Divulgação)

Às vezes a gente quer que nasça um texto. E nasce outro. Isso é um sortilégio que a gente tem que aceitar.
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Quem escreve começa a escrever o que os outros querem ler, quando querem ler. Isso acontece, sobretudo se você é jornalista. Pra minha sorte, não é o meu caso, nesse momento em que se disputam corações e mentes de gente mal informada, abusada midiaticamente, que não entende de nada, nem de ler um texto, o tal analfabeto funcional que se exibe nas redes sem vergonha porque não faz ideia do próprio papelão.
Eu não disputaria ninguém, porque amo e apoio os espíritos livres. E é com eles que eu quero ir.
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Tem uma coisa nesse ato de escrever que é a crueldade das relações que se instauram entre escritores e leitores. Antigamente, se dizia que de médico e de louco, todo mundo… Na era das redes sociais se tem que dizer que de médico, louco e de escritor todo mundo… Escreve-se muito. Até aí, que bom. Não sei se há leitura correspondente para embasar a tantos que se entregam ao ato crucial da escrita no Twitter e no Facebook. On Bullshit, como diria H. Frankfurt.
Em nome dela, exige-se que cada um escreva aquilo que se deve ser escrito para saciar os espaços adequados, não a inteligência. Nunca ela. Nunca o chamado “textão”. Não há tempo para textão. Todo mundo tem pressa. Inteligência não vem ao caso. Que papo é esse?
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O mundo do excesso de informação e também de desinformação é um mundo naturalmente desinteressante. A chamada “lacração” faz parte da ordem do discurso em que só o que choca ou produz algum tipo de excitação tem direito de atenção. É duro ser interessante diante de espíritos dormentes e beócios, e os donos dos meios de produção do discurso jogam sujo com as mentes vazias e delirantes. As mentes calmas, os espíritos sutis não tem lugar na guerra antipoética das redes. Ainda bem que há o slam, o hip-hop, que há a poesia. E ainda há poesia.
Penso agora, que luxo é poder ser desinteressante quando a ordem social e política, ética e estética do mundo anda tão agressiva, tão alucinada. Que bom poder ficar quieto e aproveitar o convívio consigo mesmo, deve pensar alguém com a sabedoria de quem já viu de tudo nessa vida e, nela, alcança a façanha de continuar vivo pensando que ainda vai achar algo realmente interessante para ver ou fazer.
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Nem todo mundo quer o olhar de todo mundo. Às vezes o que se deseja é só um olhar perdido de alguém que se encontra consigo mesmo ao ler o que a gente escreveu.
Isso valeu todo o esforço e o tempo perdido de escrever. Penso agora naqueles que acham que não vale mais a pena escrever. Que agora o que restou já era, só porque o Brasil elegeu a ditadura de um asno no laranjal pra governar.  Que imagem horrível, dirá a sociedade protetora dos asnos (que falta de respeito, filósofa!)
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Estava aqui tentando me entender com meu pessimismo. Você, tem sido pessimista? Pois é. Estava aqui numa conversa com a minha própria alma,  um diálogo no sentido platônico e original do termo, e era bastante triste esse meu diálogo porque o assunto era o Brasil. E ele hoje nos dói mais do que nunca, porque a essa altura da história do Brasil, a gente – não interessa a cor, a religião, o sexo ou a ideologia – achava que já se podia ter esperança e ver os seus resultados concretos. E é só morte, lama, corrupção e miséria, e cancelamento de direitos, e políticos bizarros e ridículos destilando má fé diante de gente sem noção que – cegos de ideologias que não dizem o seu nome – não sabia o que fazia.
No fundo, aceitam o convite para serem fascistas porque está na moda. Não sabem o que fazem, e não entendem nada de Jesus…
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Hoje estava ouvindo aqueles meninos todos de Pernambuco cantando com o Alceu Valença, um mais bonito que o outro, e pensando, que rico esse Brasil, que coisa mais maravilhosa tantas pessoas que surgem nesse lugar.
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Ontem à noite, eu buscava mapas da Ilha Brasil, aquela ilha mítica de que se falava no imaginário medieval. A etimologia da palavra Brasil, de fato, remonta à etimologia da árvore do Pau-Brasil. É uma longa história que remonta ao metal que dá nome à cor da madeira.  A história é longa, mas é a história de nossa vermelhidão, de uma memória da “brasa”. Não o vermelho das esquerdas ou do comunismo vomitado pela boca dos otários de plantão a odiar os idealistas da comunhão sempre insurrectos contra o capitalismo da avareza. Mas o vermelho de brasas, de algo que vira carvão e um dia vira pó. Pó: aquele lugar ao qual retornaremos.
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Perdoem o memento mori, mas falei que esse texto não era sobre felicidades. Talvez ele se torne, mas ainda temos que passar por algumas instâncias alquímicas. Lembrei de um texto que escrevi há anos chamado Brasil Cinza. Escrevi porque a primeira vez em que vi o Pau-Brasil foi na forma de um cinzeiro na casa de uma gente burguesa e só muitos anos depois é que achei uma árvore viva daquilo que para muita gente ainda é pura matéria prima, natureza rebaixada a “commodities”. Era uma vontade de escrever uma espécie de “filosofia brasileira”, mas que tocasse nas profundidades materiais do método. Quero dizer, eu queria falar não de Pindorama, mas do que foi feito do que poderia ter sido Pindorama. Eu queria falar das sobras e de todo um esquecimento de onde viemos e para onde vamos em termos de filosofia da nossa triste história.
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Brasil está longe de ser Pindorama. Brasil, o nosso nome de guerra tem só uns 200 anos. Não é muito mais velho do que o museu nacional que já não existe, embora estejam tentando fazer um remendo, uma múmia com os restos mortais do museu queimado como um pau-brasil que virou cinzeiro.
A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas. E agora os nossos trópicos carnavalescos (pra quem é dos trópicos e dos carnavais, eu sou dos subtrópicos e da estética do frio) perdem a cor. Tudo é carvão, cadáver, resto, nesse país perdido nas trevas em que foi lançado por tantos algozes extraindo dele o que pode e o que não pode ser extraído há 500 anos. Extraindo ainda hoje, os minérios (e pensem na morte anunciada de Minas, como Minas vai sobreviver a tantos cadáveres, tanta desgraça, a tanta Samarco e Vale?), a flora, a fauna, o nosso povo explorado pelo capital que suga direitos como se fossem sangue.
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Penso agora naqueles velhos homens brancos europeus com o pau podre de sífilis empesteando as mulheres vítimas da desgraça eterna de ser mulher em qualquer tempo da sociedade patriarcal.
Eles vem do inferno e estão prontos à matança.
Penso agora na família Drácula, que detinha o poder na Transilvânia – leia o livro Dracula: A Biography of Vlad the Impaler  (E.P. Dutton) e volta ao poder, dessa vez encarnada no Brasil. O conde empalador e seus filhos abjetos, traidores, monstruosos fazendo o que bem entendem contra o povo que os elegeu ao sabor da miséria espiritual de uma época. A história transilvânica se repete no Brasil-eterna-terra-de-ninguém.
O mundo seria mais misterioso se o simbólico e o real não estivessem tão intimamente entrelaçados.

A ‘mediocracia brasileira’ e o Brasil que não hesita em resistir, por Além da Lei.

A ‘mediocracia brasileira’ e o Brasil que não hesita em resistir
(Arte Revista CULT)

“Quase tudo que é grave é difícil; e tudo é grave”, já dizia Rilke. Este alerta talvez nunca tenha servido tanto ao Brasil quanto nos tempos atuais. Mas não desistir de pensá-lo é uma obrigação. A sucessão vertiginosa de acontecimentos perversos impede quase que por completo o fôlego da reflexão. A destruição diária tem tornado difícil preservar a lucidez. O festival de besteiras que assola o país é inesgotável. Menos de um mês de governo, o ministro da Educação já disse que o “marxismo cultural faz mal à saúde”; o ministro da Casa Civil afirmou que “o risco de uma arma em casa é o mesmo de um liquidificador”; a ministra dos Direitos Humanos esbravejou que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Já a nomeada como ministra da Agricultura recebeu doações de um réu por assassinato de líder indígena e será responsável pela demarcação de terras indígenas. Há, sobretudo, o astrólogo reiteradamente citado por membros do governo como mais influente intelectual de todos, que acusa Newton de ter “espalhado a burrice”, contesta o heliocentrismo e a teoria da relatividade de Einstein; sem esquecer o coordenador do Exame Nacional Ensino Médio dizendo que Raskólnikov, personagem de Crime e Castigo, era um “típico estudante esquerdista influenciado por Nietzsche”. Nem precisamos entrar em sua base parlamentar afeita ao BBB: Bíblia, Bala e Boi. Enfim, a diversidade é grande.
A experiência política que se inicia no Brasil seria fascinante se vivêssemos noutro planeta e não estivéssemos com a maior floresta do mundo em perigo e se a política naturalizada de extermínio agora não tivesse virado plano deliberado de governo. Por medo de ser assassinado, um deputado federal reeleito, com enorme atuação em defesa da população LGBTQ+, desistiu do mandato e afirmou não pretender voltar ao país tão cedo. Após publicar sua decisão, o presidente da República se manifesta no Twitter dizendo: “Grande dia!”, seguido de um sinal de positivo.
O assassinato de Marielle Franco, parlamentar do Rio de Janeiro, depois 10 meses, segue sem qualquer esclarecimento, senão a de que familiares do policial militar suspeito da morte e de chefiar uma milícia no Rio de Janeiro trabalhavam no gabinete do filho do presidente Flávio Bolsonaro e de próxima relação com o clã.
Os exemplos se empilham a exaustão. Entretanto, insistimos eticamente de estar à altura do que acontece. Poderíamos começar apontando, pelo menos, a direção de duas questões fundamentais para tentar refletir sobre o Brasil atual: 1º) como a vitória de Bolsonaro foi possível e o que significa sua chegada ao poder – como viemos parar aqui? 2º) quais são as possíveis linhas de fuga (quais alternativas e resistências) a serem criadas?
As possibilidades de enfrentamento destas e de muitas outras questões são infinitas e as respostas sondáveis, pela profusão dos fatos, poderão ser desmentidas no momento seguinte. Porém, cabe arriscar ler o que se passa, exatamente valorizando a crítica radical da vida cotidiana, ou seja, pensar a transformação social como um exercício de atenção pleno das potências que ressoam nas situações que atravessamos.
O que ele faz ali? Ou sobre como não imaginamos que isso aconteceria
A pergunta é inafastável: como um grupo tão exótico e provinciano conseguiu chegar ao comando de um país tão complexo como o Brasil? Analisar o que trouxe o desejo social até o ponto de termos um governo Bolsonaro é antes de tudo um problema vital. Passa, sobretudo, por um lado, em não vê-lo como uma simples anomalia política e, por outro, não crer na exuberante ideia de que temos cinquenta e sete milhões de fascistas no Brasil.
O atual presidente é a própria corporificação da mediocridade que pode acompanhar o que há de pior em cada um. Seu mérito, este sim incontestável, foi encarnar a vulgaridade de um mal banal, a capacidade de ser reconhecido, não como melhor, mas como igual aos seus eleitores. Cada um de nós, afinal, conhece um tipo misógino, homofóbico e racista como Bolsonaro. Nada de excepcional nele, portanto. Todavia, sabemos o que isso significa. Adorno chamava esta figura de “pequeno grande homem”: sujeito capaz de dizer “as verdades”, sem “politicamente correto”, “como qualquer um”, com a burrice prosaica do senso comum e diluído em estereótipos superficiais. Este é “o padrão da propaganda fascista”: agressividade emocional que crie turba; escassez de ideias e a rigidez mecânica; em suma, alguém que ostente sem vergonha sua virtuosa ignorância. Por isso, não necessitará determinantemente de um programa positivo, mas de permanentes ameaças e medos que sustentem tanto sua onipotência quanto a ideia de que é mais um do povo.
Neste particular – há que se dizer – Bolsonaro não é Trump. É pior, e não poderá ser considerado o “Trump brasileiro”. Se ambos podem estar próximos pela capacidade de se exprimirem sem inibições suas mentalidades mesquinhas, Bolsonaro não pertence a qualquer elite com algum destaque particular, mesmo que duvidoso, como Trump. Passar quase três décadas no parlamento brasileiro, conseguindo aprovar dois projetos de lei, notabilizado por ser um personagem que ninguém levava a sério (chegou a dizer em 2011, quando se candidatou à presidência da Câmara de Deputados, obtendo 4 votos dos 513 possíveis: “eu não sou ninguém aqui”), é a consagração do homem médio. O “homem sem atributos” de Musil virou mito. O pequeno fascista é liberto de qualquer receio diante da indignação transformada em ódio.
Mas como isso acabou por ser canalizado? Como se forjou uma rede de afetos capazes de produzir Bolsonaro?
A mediocridade, de forma concreta, pode ser estampada naquele tipo de sujeito que, no Brasil, passou a sentir autorizado a repetir sem qualquer vergonha suas frases de ódio, principalmente aqueles que se sentiam acuados nos últimos tempos. Diga-se diretamente: o recalque do homem branco heterossexual emerge sempre que alguma disfunção atinge sua posição de privilégio que considera direito inalienável. Situação profundamente vivida no Brasil nos últimos anos: a ênfase nos avanços políticos reais dos movimentos feministas, negros e LGBTQ+. Não esqueçamos o quanto isso afeta os privilégios de classe, raça e gênero no Brasil: as cotas nas universidades, a exposição e enfrentamento da violência de gênero e a PEC das Domésticas (até 2012, uma categoria formada majoritariamente por mulheres negras e pobres não tinham os mesmos direitos básicos das demais, como limite na jornada de trabalho e seguro desemprego) são apenas alguns exemplos de onde o rancor se estabeleceu e o sintoma do reacionarismo se reuniu. Reação pelo ódio consagrada exatamente no que disse o presidente na posse: “Libertar a nação do politicamente correto”, ou seja, reforço da autorização expressa tanto de propagar seus sentimentos reprimidos de tripudiar minorias quanto de aniquilá-las. Opressões capilares autorizadas e reproduzidas que estampam a necropolítica brasileira. Bolsonaro materializou aquilo que sempre alimentou os fascismos nossos de cada dia.
O ódio como combustível político oferece ares quase determinantes para entender a “nova direita” no Brasil. Sua emergência soube muito bem entender os anseios que pairavam, e trabalhou a esperada “mudança” baseada no “retorno”. Noutros termos, souberam angariar o desespero dos tempos que correm. Assim, uma cartografia dos reacionarismos no Brasil não poderia ser feita ignorando o pano de fundo global da corrosão da confiança nas instituições políticas, fruto de um esgotamento da democracia parlamentar representativa. Deve-se saber identificar dentro do grande colapso liberal capitalista o surgimento das novas direitas.
No caso brasileiro, antissistema e antipetismo se uniram com Bolsonaro. Se uma alt-right possui uma retórica antissistema – seja desde uma xenofobia etnonacionalista (como no caso da Itália, Hungria e mesmo dos EUA) seja por um populismo antiestablishment, impulsionados por um debate midiático digital – em termos brasileiros, aquilo que se poderia chamar de “conservadorismo brasileiro contemporâneo” é muito heterogêneo. Transpõe uma simples conjunção de protofascismos. Há uma multiplicidade de frustrações e desesperanças, depois de um período de certa experiência social democrata que abriu espaço a vários grupos. Forjado pelo desamparo, como já foi apontado por várias análises, poderíamos identificar pelos menos três eixos que se cruzam: a) um recorte “cultural e moral”, expresso por uma moral cristã conservadora de tom evangélico-empreendedor, que cresceu onde uma Igreja Católica deixou de se encontrar com os mais pobres, e tragado pelas guerras culturais, totalmente refratário às conquistas de gênero por exemplo; b) um viés de “classe”, bem identificável pelo rechaço às reformas sociais e com medo da perda de privilégios, como já foi dito; c) uma vertente “geracional”, tanto aqueles mais velhos, dispostos à nostalgia da ordem pelo militarismo brasileiro, medo do “fantasma comunista” e saudosos da ditadura, quanto aqueles antissistêmicos jovens hoje mais acoplados ao neoliberalismo.
Não esqueçamos que tanto esperança quanto medo, cristalizado em ódio, são afetos reversíveis. Daí se pode entender por que estes agenciamentos puderam se dar.
O ambiente de um “capitalismo de plataforma” já deu excessivas provas da importância das redes sociais. Uma “algoritmocracia” já se dispôs como modelo político. No caso do Brasil, não precisaremos seguir muito as pistas do que pessoas evocavam no dia da posse em Brasília. Os gritos de “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!” sinalizam algo. Cambridge Analytica, Steve Banon e seus asseclas, seja juntos com Trump ou com Brexit, também não nos cansarão de lembrar. [Aos italianos mais ainda, vide o The Movement de Banon agora com seu templo populista, a “Certosa di Trisulti”, em Collepardo, pronta a atuar nas eleições europeias de maio.
No caso Bolsonaro, ainda muito mais no futuro virá à tona quanto à manipulação de fake news através de grupos de WhatApp financiados de maneira nada clara. Apenas lembremos por ora que o “Chicago boy” de Bolsonaro, o super-ministro da Economia Paulo Guedes, um economista medíocre até entre seus pares – para além de recapitular a união orgânica entre militares e neoliberalismo de catástrofe, como na ditadura Pinochet no Chile – ostenta profunda amizade com Jorge Selume Zaror, colega de Guedes em Chicago, antigo diretor de orçamento de Pinochet e que levou Guedes para dar aulas no Chile. Seu filho coincidentemente hoje também é secretário de comunicação do Chile e dono da Artool, maior empresa chilena de Big Data, empregado durante anos na Cambridge Analityca. As imbricações de uma tecnopolítica com este neoliberalismo autoritário são um elemento gigante nas dinâmicas governamentais atuais.
Por outro lado, compreender o “bolsonarismo” passa por entender a genealogia lulista. Ele é uma espécie de difração do lulismo. Se o Brasil foi a última experiência das chamadas esquerdas no poder no século 20, através de um capitalismo de Estado, interessado menos em reduzir desigualdades e mais propenso a incrementar a cidadania pelo consumo, independente dos seus inegáveis avanços, deve-se atentar antes para as contradições do PT no poder, para depois examinar uma espécie de “negacionismo reativo” que se abateu sobre ele, especialmente quanto a perceber seu próprios erros. A lista seria demasiadamente extensa de equívocos, mas de todo modo, em grande medida a autocrítica sempre requerida e nunca realizada por parte do PT, passaria, em termos gerais, por perceber a sua indiferenciação política quanto aos demais espectros, inclusive de pautas de direita. Fica demasiadamente difícil saber o que a esquerda é quando não se propõe distanciar radicalmente daquilo que a direita propõe.
A começar pele negação peremptória de casos de corrupção, mesmo que analisados de modo seletivo pelas dinâmicas midiáticas, legislativas e judiciais parciais. O paradigma desenvolvimentista já havia feito Dilma solapar direitos trabalhistas muito antes; diversos movimentos sociais tornaram-se mais governo do que alavanca de reivindicações em ambos os governos – movimentos sociais que agora poderão ser perseguidos pela mesma “lei antiterrorismo” sancionada por Dilma; os notórios laços petistas com a bancada ruralista levaram ao desmantelamento da Fundação Nacional do Índio muito antes da demarcação das terras indígenas decretada por Bolsonaro ficar a cargo do Ministério da Agricultura – sem esquecer que o governo Dilma foi o que menos demarcou terras indígenas na história do Brasil. Mudança climática, para o governo atual, é caso de um “complô marxista”; antes, para Lula/Dilma,sequer passou perto de ser compreendido como assunto deles. Especificamente com relação à Amazônia, reeditaram com êxito a versão da ditadura brasileira das grandes obras hidrelétricas (como Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires etc). Vale referir as comunidades urbanas pobres expulsas de suas casas pelos megaeventos superfaturados da Copa do Mundo e Olimpíadas. Ainda destaque especial a “Lei de Drogas” editada em 2006 por Lula que contribuiu em grande parte para o encarceramento em massa no Brasil (mais de 750.000 presos), notadamente jovens, negros de regiões periféricas, em especial mulheres (mais de 700% de aumento no encarceramento em 16 anos).
Não obstante, de modo algum, deve-se ver as experiências petistas como iguais às anteriores. Repetimos: o avanço nas políticas afirmativas; o acesso ao ensino superior, a expansão de políticas de renda como o Bolsa Família; o aumento real do salário mínimo e a consequente redução da miséria e da pobreza (42 milhões ingressam na classe média, salário mínimo ficou 50% acima da inflação), de fato, mudaram o país. Problema é não ver o limite claro que a gestão de um neoliberalismo com rosto mais humano pode ter, ou, para dizer noutros termos, uma gestão reformista com sensibilidade social – uma política de capitalização dos pobres – possui. Se os avanços notáveis em termos de acesso pelo consumo se deram, o ritmo de crescimento da parcela mais rica da população também manteve-se intacto (nunca os bancos lucraram tanto na história do Brasil); a desigualdade não diminuiu, o que pressionou o custo de vida para cima, generalizando o fenômeno bem descrito como “produção do precariado”. Em resumo, nada houve de constituição de um núcleo de serviços públicos de qualidade e com consistência no Brasil.
Assim, como acreditar nos acertos se os erros são negados ou as contradições caladas? E como achar que a população não tem discernimento ou que foram enganadas se politicamente as esquerdas não se demonstram ser diferentes? A partir daí poderá se entender um pouco melhor a formação de um nexo que os fluxos conservadores souberam canalizar seletivamente a repulsa à corrupção diretamente ao PT, o preconceito de classe e o efeito rebote da frustração pelos limites da inclusão pelo consumo. A autocrítica como compromisso público e prática política, e não como expiação de pecados, é um trajeto importante para pensar as alternativas que podemos ter.
Chamemos, com a intensidade que for, o atual governo brasileiro de “momento neofascista do neoliberalismo” ou uma forma de “novo neoliberalismo autoritário”. Quaisquer dessas aproximações apenas espelham a estratégia política peculiar de um regime de “presidencialismo de ocupação”, ou seja, a visão da nação como um território a ser ocupado militarmente, onde qualquer opositor é um traidor da pátria. Sua logística teológica e militar impõe, portanto, a fabricação permanente de inimigos. Lembremos que o então candidato Bolsonaro prometeu enviar a esquerda, senão para a prisão ou exílio, para a “ponta da praia” (alusão ao lugar onde se jogavam os cadáveres dos opositores políticos na ditadura militar). Para além da retórica que se poderia alegar, o elemento de uma visão eliminacionista da política é central.
E todo medíocre sabe que no fundo assim o é, por isso precisa reafirmar os desastres e forjar os inimigos.
Estamos diante de algo novo, peculiar organização e exercício de poder também em escala planetária, e a consolidação do caso brasileiro é de suma importância. Talvez o que torne o caso brasileiro pior e o diferencie é a tremenda condição de Bolsonaro em poder melhor integrar o “novo estado de legalidade” da exceção. No poder, seus limites de constrangimento institucionais são quase nulos frente, por exemplo, a Trump ou Salvini – mais uma enorme distância. Gerindo e produzindo crises, Bolsonaro tem o poder de integrar, talvez como nunca, medidas de urgência ao modus operandi trivial do governo, um modo de estado de direito que integrará em sua legislação a situação de guerra econômica e policial permanente. Não meramente a construção de um sistema de exceção – como historicamente consolidado no Brasil desde sempre – mas um sistema de normas, por assim dizer, que proíbe a exceção. Se o país sempre se consagrou por matar seus pobres, negros, suas minorias em direitos, seus trabalhadores rurais, seus ativistas e jornalistas, o estado do desastre agora inaugura um novo ciclo de violência política: o Estado escancaradamente convertido numa arma de guerra contra populações mais aguda ainda.
Para onde podemos ir: quais alternativas a serem criadas?
Em apurada síntese, até aqui, não devemos perder de vista o mérito de Bolsonaro em ter sabido aliar a escalada repressiva tradicional em contexto brasileiro com a energia da rebeldia social liberada ao menos depois de 2013 no Brasil. Perceber os caminhos alternativos para a atual catástrofe brasileira deverá passar pela atenção à força das demandas anti-institucionais. Não obstante, até aqui, ao que tudo indica, não seria temerário arriscar que ainda falta uma esquerda capaz de enfrentar Bolsonaro e principalmente uma resposta consistente que não esteja atrelada aos ritmos das estratégias da direita no poder.
Porém, sempre há tempo. Os ecos de 2013 persistem. A contingência das revoltas e o fervilhar das mobilizações sempre retornam. No Brasil, a maré da Primavera Árabe e dos Occupy traduzidas por junho de 2013 foram profundamente rechaçadas – lembremos que era Fernando Haddad o prefeito da cidade de São Paulo, maior foco de repressão à época. Não desperdiçar a experiência é fundamental. As revoltas eclodirão e com mais força ainda nos instantes próximos. Tenhamos a sabedoria de vivê-las.
Por outro lado, diante de um governo Bolsonaro, misto entre um patético despreparado e um poderoso representante do neoliberalismo de catástrofe, uma das principais armadilhas para forjar alternativas de solidariedades e resistências comuns é se iludir que ele não irá durar, que as instituições ou a realidade irão freá-lo. Ele é a parte torturadora do regime militar, ninguém dali vai domá-lo. Isso alarga ainda mais o flanco aberto que parece existir para a ação hoje, principalmente tendo em vista os primeiros dias governo. Apostar que a selvageria irá ser amansada por um sistema político destroçado é um erro grave, pois não percebe que para se manter no poder ele retira seu fôlego exatamente do seu colapso. E, mais, esta postura enfraquece sobremaneira a capacidade de mobilização e proposição.
O estado de desencanto é profundo com as próprias instituições políticas e isto não se esgotará. E, se por um lado, Bolsonaro é fruto dessa conjugação antiestablisment/antipetista e tentará manter sua força a partir disso, por outro lado, seu vazio de promessas permite a todos sonhar grande, abrindo espaços tanto para que se esperem resultados enormes de transformação que não virão, como também para um abismo de frustrações, horizonte que já começa a ser visto em menos de um mês de governo. O caldo da revolta é enorme quando se pode sonhar tudo já que não se prometeu nada.
A ambiguidade é extremamente frutífera neste instante. Mas não esperemos que um concerto democrático ancorado nos partidos possa dar algum tipo de resposta satisfatória no momento, principalmente porque não parecem, de fato, quererem enfrentar propriamente o capitalismo contemporâneo em sua fase de neoliberalismo perverso. É uma armadilha, movida pelo desespero, priorizar aliança com o “centro”, o que representaria tentar voltar a um falido presidencialismo de coalizão que culminou no próprio surgimento das direitas. Erro grave será apostar, “por estarmos todos em perigo”, na “união” contra os novos populismos de direita. Mesmo que conseguíssemos, apenas voltaríamos à mesma situação que ensejou o seu nascimento. Valerá mais a pena buscar esta imprescindível e atual luta contra a opressão, não através da improvável regeneração dos partidos, que fazem parte da mesma crise de representação, mas das multidões que se autoconvocam, das constelações sociais e políticas que cooperam, cuidam e colaboram fomentando múltiplas formas de afeto.
Desativar afetos reativos está no cerne dos embriões de uma alternativa real para enfrentar Bolsonaro.
As fagulhas já foram lançadas para uma movimentação com estratégia, consistência e propósito. Se o reacionarismo brasileiro, como dito, também foi resultado da explosão feminista, LGBTQ+, antirracista, o furo na bolha institucional passa por aí. Lembremos a rede “Mulheres unidas contra Bolsonaro”, com mais de 4 milhões de mulheres, que fez eclodir o #EleNao na última semana antes da primeira volta das eleições. A onda feminista relativamente espontânea venceu de alguma maneira, pois além de fazer acreditar, faz ainda lembrar a vocação internacionalista das esquerdas articuladas de vários modos em diferentes contextos pelo mundo.
Não serão à toa os ataques privilegiados do governo para “acabar com a ideologia de gênero” ou “lutar contra o lixo marxista nas escolas”, como dito pelo presidente eleito no discurso de posse. Num governo em que a guerra impera, é preciso fazer calar de quem nunca se acomodou com as regressões autoritárias ou aos arranjos populistas que marcaram nossa história. No fundo da sua mediocridade, esta associação macabra de militares, pastores, latifundiários e banqueiros sabe bem de onde pode vir o seu fim.
Assim, a insistência deve passar, sobretudo, pela indignação, não recoberta pela mera reação, mas à altura das linhas de força que a esquerda tradicional não consegue captar. Enfrentar as contradições de uma esquerda no poder; fazer o luto da própria hegemonia lulista; abandonar os projetos personalistas e as curadorias partidárias – enfim, lutar contra uma espécie de servidão voluntária, parece fazer parte desta tarefa.
Fazer a resistência (é) criar corpo.
Resistir não é reagir simplesmente, ou seja, um fraco desdobramento passivo da impotência antipolítica. É, sim, sermos capazes de estar à altura da indignação social, algo que de uns anos para cá não foi feito no Brasil. Repita-se: a brecha de junho de 2013, onde se apresentava a “sociedade contra o Estado”, não foi aproveitada e acabou amplamente barrada pela esquerda institucionalizada. Grande parte do antipetismo foi resultado de o partido não ter sabido reconhecer as manifestações exatamente como propulsoras das transformações estruturais do país, preferindo aderir ao que havia de mais retrógrado na casta política brasileira, abrindo horizonte para que, pelo marketing digital, o antiestablishment fosse agenciado em outra direção.
Fazer a resistência criar corpo é, antes, ter sensibilidade, ser capaz de agenciar o desejo, criando a revolta que povoa corações e mentes.
E se pudéssemos arriscar, o voto em Bolsonaro foi menos fruto do antipetismo do que da territorialização retrógrada dos fluxos e linhas de fuga que junho de 2013 ensaiou. Necessário agora pesquisar os germens da indignação que virá, exatamente porque Bolsonaro continua a ser o retrato mais fiel do establishment político. Trata-se de mapear o conjunto de crenças e desejos sociais numa nova vidência e gestar as condições para uma nova sensibilidade coletiva.
Resistência hoje é condição de conectar o mais possível com nossa condição vivente, afetar-se pela percepção da existência social. Nada de mais concreto que habitar a vida o mais plenamente possível, numa espécie de ressonância intensiva entre afetos. Uma luta micropolítica não poderá ser ingênua e nem será oposta a um embate macropolítico. O novo e desafiador neste momento, no entanto, é que não há como crer num porvir harmonioso e sem conflitos, mas dar-se conta de que a vida política é uma luta constante entre forças ativas e reativas, luta contra forças que querem destruir a vida, não somente na sociedade, mas em nossa própria subjetividade. Algo que sempre foi claro e presente na luta dos negros, indígenas, de mulheres, de LGBTQ+ etc.
Diretamente, em alguma medida, em qualquer espaço a insurreição passa pela criação de outras formas de viver organizadas desde lugares de subalternidade, ou seja, composição de coletivos efêmeros, porém com uma mesma frequência de afetos, que se agitam em corpos que se juntam. Fazer vibrar estes embriões que querem germinar requer ações que lhes darão forma. Tais ações não se dão sozinhas, por isso necessitam de experimentações coletivas que as produzam. Aqui está a articulação indispensável e nova entre dinâmicas macro e micropolíticas – por ambas dimensões, a resistência faz corpo. Vale a provocação de que precisamente nestes momentos em que figuras bizarras como Bolsonaro assumem protagonismo é que surge a maior possibilidade de uma esquerda radical emergir, sem medo de dizer a que veio e livre das amarras dos velhos pactos políticos. É preciso, todavia, ter a ousadia de enfrentar e propor um novo pacto social.
Mas como? Reativando o desejo da relação entre corpos que falam. Podemos falar muito em redes sociais, mas não nos encontrar efetivamente. A experiência de corpos que se encontram é que poderá disputar as permanentes metamorfoses dos “fascismos que vêm”. Se o fascismo é antes um modo de vida que um regime político (que pode ser inclusive democrático), desativar paixões tristes no terreno da vida cotidiana torna-se uma ação principal. Deleuze lembrava que um traço fundamental da esquerda passava por uma forma especial de sensibilidade, de experimentar o mundo de modo diferente. E repita-se: experimentação não se faz só, é germinação que pede produção. Portanto, indispensável que se articulem como resistências. Dinâmicas de auto-organização popular são efeitos de ressensibilização social através da criação de um “comum sensível”. Em termos mais simples, a disputa no e para um campo social novo é dada exatamente pela modulação dos afetos coletivos: onde a crise põe ressentimento, o desamparo de “cada um por si”; a ativação social dispõe uma repolitização, que já está aí, solidariedade e apoio mútuos que formam laços de ação coletiva.
Repolitização que já está aí, desde a ideia de que a sociedade não se transforma desde cima, se joga por todos os lados, não desde instâncias privilegiadas estatais, mas no cotidiano das relações de poder que configuram nossa maneira de entender o que é sexualidade, trabalho, educação, saúde etc. E este tipo de transformação está ao alcance de todos, se joga na vida cotidiana dos gestos e decisões que somos implicados. Se, neste período obscuro pelo qual passa não somente o Brasil, o mal estar social antissistema foi canalizado pela direita, não se trata apenas de achar uma nova gramática, reduzir a política a uma “comunicação eleitoral”, que faça seus votantes “despertarem” e convencê-los a mudar. As direitas crescem não por terem uma política comunicativa melhor – seus avatares, fake news e o esvaziamento da linguagem lançados em larga escala são a prova disso. Elas não estão interessadas em transmitir algo a ser refletivo, mas se apresentaram como lugar adequado para depositar os anseios sociais. Noutros termos, o desafio a um contrapoder radicalmente antifascista passa por produzir subjetividades, criar sensibilidades novas, formas de ver e sentir o mundo com crenças e valores com os quais, apenas depois, se possa sintonizar uma mensagem eleitoral. Não se trata de abandonar a esfera representativa, muito pelo contrário, mas de refazê-la e repensá-la como modulação de afetos coletivos para transformar as coisas.
Finalmente, dispor um conjunto de singularidades ligadas em constelação, isto acaba por ser o desafio constante. Segundo Antonio Negri, será este poder cooperativo que levará a multidão em direção ao comum. Os circuitos de medo, assim, são o elemento mais nocivo a se enfrentar. Não ter medo é primordial para não ceder aos fascismos e avançar. É a alegria e a força de estarmos juntos contra o medo coagulado em ódio. A força da imaginação criativa nunca deixou de passar antes por uma enorme dose de desamparo. Não obstante, cabe assumir a luta, pela força difusa e múltipla que conduza à passagem para uma esquerda radicalmente antifascista.
Augusto Jobim é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na PUCRS

Por que precisamos criminalizar a LGBTfobia no Brasil, Renan Quinalha.


Por que precisamos criminalizar a LGBTfobia no Brasil
A discussão sobre a punição de crimes de ódio por motivação LGBTfóbica não é novidade na agenda política brasileira (Reprodução)

Não é novidade alguma que o Brasil, que se orgulha de ser uma terra paradisíaca construída a partir das misturas e diferenças, apresente anualmente índices alarmantes de violência contra pessoas LGBT. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, em 2017, uma pessoa LGBT foi assassinada por crime de ódio a cada 19 horas. Em 2018, foi um LGBT morto a cada 20 horas. A violência estrutural e persistente contra este grupo vulnerável não dá sinais de estar próxima do fim; pelo contrário, em um contexto de ascensão de forças conservadoras e de franca cruzada moral, multiplicam-se os casos de agressões e atentados contra pessoas LGBT.
Reivindicação histórica do movimento LGBT desde o início de sua organização, há quatro décadas, o fim da violência e a criminalização da LGBTfobia são uma pauta que, ao menos desde 1995, já frequenta os debates legislativos no Brasil. No entanto, a bancada fundamentalista religiosa, que só cresceu desde então, tem se empenhado – com total êxito – em interditar esses debates no Congresso Nacional.
A despeito ou justamente por conta da omissão do Legislativo, nesta quarta-feira (13) serão julgadas no STF duas ações – um mandado de injunção coletivo proposto pela Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão proposta pelo PPS. Ambas buscam a declaração da mora inconstitucional do legislador; o reconhecimento da obrigação de criminalização da LGBTfobia estabelecida pela Constituição e que o STF estenda o conceito político-social de racismo para abranger a LGBTfobia, algo já feito no caso Ellwanger.
Trata-se de casos complexos do ponto de vista jurídico e que se tornam ainda mais delicados diante da atual conjuntura de um governo extremamente conservador que mobiliza a diversidade sexual e de gênero como um espantalho moral. Mas, justamente pela atual conjuntura é que se faz necessário que o STF declare a procedência dos pedidos dessas duas ações.
Sem dúvida, a criminalização da homotransfobia é uma pauta polêmica em nosso país. De um lado, setores conservadores, sobretudo religiosos, mobilizam-se contra essa proposta do movimento LGBT que, segundo eles, implicaria uma restrição indevida na liberdade religiosa, de culto e de expressão, na medida em que não poderão mais propagar “opiniões” que, muitas vezes, escondem discursos de ódio e de discriminação.
De outro, muitos defensores de direitos humanos e outros militantes progressistas criticam a luta pela criminalização da homotransfobia sob o argumento de que ela implica um reforço do Estado Penal e da racionalidade punitiva seletiva que, ao fim das contas, recai sempre e apenas sobre os setores mais pobres da sociedade.
Em relação à primeira objeção, oriunda sobretudo dos setores religiosos fundamentalistas, nem há tanto mais a discutir. Já está claro que pregar o ódio, a inferiorização, a intolerância e a violência contra setores vulneráveis não é aceitável.
O presente texto visa, assim, fazer uma defesa da necessidade da criminalização da LGBTfobia no atual contexto e, ao mesmo tempo, estabelecer um diálogo franco e de pressupostos compartilhados com os que, ao criticarem o Estado Penal e defenderem o direito penal mínimo ou o abolicionismo, levantam a segunda objeção acima referida.
Nosso objetivo é demonstrar que a aparente contradição existente entre uma posição de crítica ao direito penal (até mesmo abolicionista) e a defesa da punição dos crimes motivados por ódio pode ser, senão superada, ao menos mediada de maneira consequente se considerada à luz de um diálogo que não oponha, mas que concilie, as tensões entre os imperativos do direito internacional dos direitos humanos para proteção das “minorias” e a busca da superação da racionalidade penal, ou seja, forjando-se uma posição que, sem deixar de problematizar o sistema penal e as condições carcerárias, crie alianças entre os atores políticos relevantes para a implementação dessas diversas agendas necessárias para a democratização efetiva do país.
Por que punir?
A discussão em torno da punição (e da impunidade) dos crimes de ódio por motivação LGBTfóbica não é uma novidade na agenda política da sociedade civil organizada e das políticas públicas no Brasil.
Parte expressiva do movimento LGBT, nas trilhas das conquistas dos movimentos feminista e negro, sempre buscou consagrar o combate às violências e às discriminações no campo do direito e, em particular, do direito penal.
Pode-se dizer que essa decisão condensa variáveis diversas e produz sentidos múltiplos. Colocar determinados grupos no banco dos réus depende, sobretudo, de qual tipo de conduta será admitida ou censurada. Não se trata, assim, apenas de conflitos judiciais terminados por juízos individuais de culpa ou de inocência, em que a discussão central desenvolve-se em torno dos temas da materialidade e da autoria dos crimes.
A decisão de julgar e condenar criminalmente determinados discursos e práticas de ódio se traduz em uma caracterização política e moral dessas condutas, que passam a ser vistas como injustas e reprováveis, colaborando com a estruturação de relações com tolerância e alteridade. Infelizmente, o direito penal ainda é um horizonte dotado de alto grau de legitimidade em nossa sociedade.
A ruptura dessa cultura de impunidade que hoje reina em nosso país nesse campo ajuda a empoderar as vítimas e o movimento LGBT, oferecendo instrumentos de combate em um contexto bastante crítico para esses setores.
Nesse sentido, a inexistência de outras armas e alternativas militam a favor da busca dessa solução ainda tradicional. Muitas vezes, a defesa da criminalização não é por falta de criatividade, mas por falta de condições políticas. Basta verificar como mudanças culturais e educacionais, que seriam muito mais desejáveis, estão sendo vedadas com a retirada, nos planos de educação, de diretrizes de enfrentamento à discriminação de gênero e de orientação sexual. Isso sem falar nos projetos de Escola Sem Partido e na patrulha contra a “ideologia de gênero”.
Assim, fica claro que a discussão sobre a punição de crimes homotransfóbicos deve ser lida à luz dessa intrincada rede de significados e disputas que marcam a política do presente e não apenas como uma questão jurídico-criminal.
A necessidade de aprofundar o diálogo e as alianças
Por sua vez, as críticas radicais ao sistema penal e as propostas progressistas de mudança delas decorrentes alinham-se no sentido de apontar o caráter seletivo da punição institucional no Brasil, em um contexto marcado por enormes desigualdades sociais e de tratamento perante a lei. A economia política das punições, estratificada por critérios de classe, cor e sexualidade, precisa ser combatida.
Assim, é cada vez mais evidente que o projeto de democratização da sociedade e do Estado brasileiros passa, necessariamente, pela superação da “racionalidade penal moderna” tão assentada em nossa mentalidade e cultura.
No entanto, é preciso considerar seriamente que o embate pela superação desse paradigma demanda uma aliança consistente com atores estratégicos que possam dar força social e política a uma proposta de direito penal mínimo ou até mesmo de abolição do direito penal.
A reivindicação contingente e meramente tática de uso do direito penal como instrumento hábil a atender, ainda que com as contradições que esse uso implica em um quadro mais amplo, aos anseios por justiça das vítimas, o reconhecimento de visibilidade a setores perseguidos e a afirmação da dignidade de grupos marginalizados não podem ser igualados ao discurso de setores conservadores que trazem o direito penal ao primeiro plano do controle social e da repressão política em nossa sociedade.
Inclusive, é possível perguntar não apenas se devemos ou não criminalizar, mas o que criminalizar e como criminalizar a LGBTfobia. É possível pensar em alternativas ao cárcere para determinados tipos de condutas, construindo saídas que não façam aumentar ainda mais a massa de 700 mil pessoas que habitam o sistema carcerário brasileiro.
Desde que mantida viva a problematização do sistema penal, o pleito de punição dos torturadores (de ontem e de hoje) e dos autores de crimes por motivação homofóbica, machista e racista representa não apenas a reafirmação do direito penal, mas constitui parte de uma luta política mais ampla desses setores no sentido de universalizar as liberdades e ampliar os direitos, desencadeando a possibilidade de enfraquecer os próprios fundamentos que marcam a seletividade do direito penal e sua associação aos jogos de poder que preservam os privilégios das elites e o controle das classes consideradas perigosas. Não se está falando em aumentar pena ou criar novos crimes que protejam patrimônio ou que criminalizem a pobreza, mas sim que protejam a vida e a integridade de pessoas que têm orientação sexual e identidade de gênero dissidentes.
Sem a criação de laços políticos e de lealdade entre os que veiculam a crítica severa ao direito penal com os diversos movimentos sociais engajados na construção de uma democracia efetivamente plural e com respeito aos direitos humanos, tais como o movimento feminista, LGBT, negro e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, não haverá substrato material para que avancem essas propostas. Ao contrário, haverá um afastamento entre a abstração da opinião de recusa total e sem mediações do direito penal e as demandas concretas de atores políticos centrais para os projetos de democratização real.
O debate sobre os usos do direito penal e sobre seu desejável perecimento não pode ser feito descolado dos discursos dos próprios sujeitos interessados e envolvidos nos debates de política criminal. Caso contrário, manteremos uma posição coerente, mas sem dialogar com a realidade existente.
Se todos os crimes em nossa sociedade recebem em troca uma sanção penal, como argumentar para as vítimas da violência LGBTfóbica que, agora que é a vez de apurar os crimes cometidos contra eles, devemos forjar maneiras alternativas de justiça ou manter a impunidade porque inexiste tipificação penal específica?
Tal posicionamento, ademais, carrega um componente autoritário por não respeitar a autonomia das vítimas para participarem ativamente na construção do horizonte da reparação a que almejam, desde que preservados, obviamente, os limites da legalidade e os direitos fundamentais dos perpetradores das violações.
Não se trata de defender em abstrato o direito penal, mas de assumir as contradições desse posicionamento da sua defesa tática, mantendo sempre a crítica ao sistema penal, sem que se prescinda no momento atual – na falta de alternativas melhores e sob condições críticas de recrudescimento do conservadorismo – desse instrumento com toda a legitimidade que ainda, infelizmente, tem em nossa sociedade.
Já é chegada a hora de derrubar alguns tabus nesse campo que têm impedido o efetivo diálogo entre as diferentes posições desse debate, buscando um equilíbrio eficaz e coerente entre a realização da justiça reivindicada pelos grupos sociais em suas lutas por reconhecimento e a crítica transformadora do sistema penal.
E será tarefa do STF nesta quarta-feira dar mais um passo rumo à afirmação da plena cidadania da população LGBT no Brasil.

Conspiração e estratégia, por José Luis Fiori.

Trump aboliu as simulações do passado, e assumiu de forma explícita o que os EUA sempre fizeram de forma encoberta


24/02/2019 11:19
 

“COUNTER FOREIGN CORRUPTION: Using our economic and diplomatic tools, the United States will continue to target corrupt foreign officials and work with countries to improve their ability to fight corruption so U.S. companies can compete fairly in transparent business climates.”
Presidence of the United States, “National Security Strategy of the United States of America”, December 2017, Washington, p 22

Depois da eleição de Donald Trump, ficou muito mais difícil de prever o futuro do sistema mundial e as mudanças súbitas da política externa norte-americana, em particular com relação às Grandes Potências. Mas num aspecto, tudo ficou mais claro e transparente: o comportamento dos Estados Unidos frente aos países da “periferia” do sistema. Nestes casos, o governo Trump aboliu as simulações do passado, e assumiu de forma explícita o que os EUA sempre fizeram de forma encoberta: promover a mudança autoritária de governos e regimes que lhes desagradem, através dos métodos que sejam mais rápidos e adequados. Ou seja, as “conspirações idealistas” cedem lugar ao “realismo estratégico na defesa do direito de intervenção americana contra os seus dois novos “inimigos úteis”: os fantasmas da “corrupção” e do “populismo autoritário”, E hoje já é possível identificar e localizar as quatro estratégias básicas que vem sendo utilizadas de forma separada ou conjunta, em vários pontos da periferia mundial do sistema de poder norte-americano.:

i. A mais antiga de todas e a mais elementar, talvez seja a intervenção nos processos eleitorais de países estratégicos, que sempre foi praticada pelos EUA. Só que agora com o uso intensivo de novas técnicas eletrônicas de manipulação do inconsciente coletivo e de formação da “vontade eleitoral” dos cidadãos através da invasão direta e imperceptível do seu domicílio privado. Como no caso mais recente e escandaloso da Cambridge Analytica Ltd., empresa especializada em análise de dados, comunicação estratégica, e manipulação de processos eleitorais, que interveio nas eleições de 44 países, só no ano de 2014.

ii. Num segundo nível de intervenção, situam-se os tradicionais “golpes militares” patrocinados pelos Estados Unidos durante o período da Guerra Fria, mas que ainda seguem sendo praticados, quando necessário, como ocorreu no caso da Turquia, em 2016. A grande novidade, neste caso, foi introduzida na América Latina, com a derrubada de governos eleitos democraticamente através de um novo tipo de golpe, “jurídico-parlamentar”, liderado pelo poder judiciário e apoiada por parlamentos de maioria conservadora e alta taxa de venalidade, contando com apoio massivo da mídia conservadora, e com o aval, em última instância, de um setor majoritário das Forças Armadas.

iii. Num terceiro nível, mais agressivo e letal, utilizado contra países com maior poder militar, aparecem as “sanções”, utilizadas pelos EUA como verdadeiras armas de guerra. As sanções diplomáticas e comerciais são muito antigas, milenares, mas a grande novidade das duas últimas décadas tem sido as “sanções monetário- financeiras”, aplicadas neste caso, pelos EUA, o país que emite a moeda de referência internacional, e que possui o mercado financeiro mais aberto, poderoso e globalizado. Por isso as sanções financeiras norte-americanas se transformaram numa arma mortal, sobretudo depois da abertura das contas bancárias impostas pelos EUA, dentro e fora do seu país, incluindo a União Europeia e a própria Suíça. O poder destrutivo destas novas sanções é quase instantâneo, provocando a queda do valor da moeda do país-alvo. a fuga de capitais, a escassez de bens, e a alta da inflação, até o limite do estrangulamento total da atividade econômica do país

iv. Por fim, num nível mais alto e mais complexo de intervenção encontra-se aquilo que os analistas tem chamado de “guerras híbridas’ ou “quarta geração”. Um tipo de guerra que não envolve necessariamente bombardeios, nem o uso explícito da força, porque seu objetivo principal é a destruição da vontade política do adversário, através do colapso físico e moral do seu Estado e da sua sociedade política. Um tipo de guerra no qual se usa a informação mais do que a força, o cerco e as sanções mais do que o ataque direto, a desmobilização mais do que as armas, a desmoralização mais do que a tortura. Até o limite da indução e manipulação dos “levantes populares” que foram utilizados em alguns países da Europa Central e do Oriente Médio.

Nesses novos tempos, a democracia e a soberania nacional dos países periféricos deixam de ter qualquer valor e podem ser atropeladas impunemente toda vez que se transformem num alvo da política externa dos Estados Unidos. Essas “intervenções estratégicas” não tem mais nenhum tipo de limite ético, nem tem mais nenhum tipo de compromisso com a reconstrução das sociedades e das economias que forem destruídas. O tempo do Plano Marshall e da “hegemonia benevolente” dos Estados Unidos acabou e não voltará mais. E este é um “dado de realidade’ que precisa ser assumido e computado pela estratégia dos povos e das forças políticas que ainda sonham e lutam para ser donos do seu próprio destino.

José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional, do PEPI/UFRJ, e de Ética e Poder Global. do PBGBIOS/UFRJ. E , pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis – INEEP, www.ineep.org.br.Este artigo foi escrito originalmente para o Instituto de Estudfs Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis – INEEP.

Que país é esse?, por Joaquim Ernesto Palhares


A 'democracia' que estamos vivendo: que não decide nada de fundamental, capturada pelas determinações dos poderes econômicos que colocaram o Estado brasileiro a seu serviço. Na prática, uma espécie de "stalinismo neoliberal que depende exclusivamente do Estado para viver e dominar a plebe"

18/02/2019 07:39
(André Dahmer)
Créditos da foto: (André Dahmer

Você anda pelas ruas, apesar dos milhares de sem teto, e a sensação é a de que vivemos na mais pura e genuína democracia. Parece que o país não sofreu nenhum ataque ao estado democrático de direito, vale dizer, não houve golpe. É como se nossa economia surfasse em ondas de crescimento, com pleno emprego, confirmados por amplas pesquisas e total vigência de direitos sociais e trabalhistas.

A Petrobras e a Embraer ainda parecem nossas. Brumadinho? Nada a ver com o lucro pelo lucro das privatizações. Reforma trabalhista? Nem pensar. Justiça do Trabalho? Não será extinta. Reforma da Previdência? Suicídio de idosos no Chile? Que calúnia! Mortes de garotos futebolistas? Chacinas? Tudo invenção dos comunistas ou do marxismo cultural.

No Brasil do faz de conta, o presidente da República tem uma equipe ministerial coesa, competente, escolhida exclusivamente por critérios técnicos e não políticos ou ideológicos. Seu vice é um político nato, leal parceiro, um democrata e ambos falam a mesma língua. O governo não volta atrás após uma decisão anunciada e inexistem declarações estapafúrdias, muito menos ministros aconselhando pais a retirarem seus filhos do país.

Os filhos do presidente – 01, 02 e 03 – não exercem nenhuma influência política, afinal não fazem parte do governo.

Você anda pelas ruas e é como se houvesse segurança plena, sem balas perdidas e um projeto de país e, pior, como se as pessoas soubessem que projeto é este, porque ele foi amplamente debatido na campanha eleitoral. O que sabemos é que no tripé – economia, segurança e fundamentalistas – figuram dois superministros:

O da economia que, naturalmente, nunca foi investigado pela Polícia Federal por má gestão em fundos de pensão, jamais foi sócio de Daniel Dantas, nunca trabalhou para o Pinochet, nem foi diretor de um banco com quase quarenta filiais em paraísos fiscais.

O da Justiça e dos "etceteras", ao tempo que era Juiz de Direito Federal da República de Curitiba, jamais determinou uma condução coercitiva ilegal ou deu uma sentença destituída de provas, fundamentada exclusivamente em delações premiadas de criminosos. Em sua brilhante carreira, enquanto juiz garantista e isento, ouviu muitos testemunhos, dezenas dos quais de criminosos confessos, em procedimentos de delação premiada, exceto um a quem, sem sentença, declarou tratar-se de um criminoso, contrariando inclusive decisões da Corte espanhola.

Da mesma forma, jamais vazou conversas de uma Presidenta da República; jamais interferiu em eleições prendendo a principal liderança popular do país e, por acaso, o principal concorrente do atual presidente, seu chefe. Um servidor público tão exemplar e cioso de suas obrigações que mesmo em férias e fora do país interfere em decisões de autoridades superiores.

Um ministro pop, ícone de uma legião de juízes (existem exceções) que jamais diferenciaria amigos de inimigos, brancos de negros, pobres de ricos. O país parece não lembrar, apesar da transmissão ao vivo e em rede nacional, da apresentação de certo Power Point, produzido pela força tarefa do Ministério Público Federal, onde foi "decretada" a culpa de um ex-presidente, sem nenhuma prova concreta, apenas CONVICÇÕES, mas que serviu de fundamentação para a apresentação de uma denúncia criminal contra o ex-presidente.

Um primeiro parêntese: esse Power Point, é parte integrante e fundamental de mais um processo contra o ex-presidente, na fila do forno condenatório. Teria sido ele produzido e utilizado exclusivamente para fundamentar uma denúncia ou para obter resultados eleitorais? A verdade é que ele foi apresentado no dia 15 de setembro de 2016 (pasmem!), apenas 17 dias antes do 1º turno das eleições para as prefeituras de todo o país.

Um segundo parêntese: a denúncia fundamentada nesse Power Point adotou a teoria do domínio do fato para acusar o ex-presidente. Segundo a denúncia, como mandatário da nação, ele deveria conhecer todos os "malfeitos praticados por servidores públicos e por membros de seu partido".

Estranho, muito estranho.

No nosso país existem determinadas acusações, investigações, denúncias, instalação de procedimentos judiciais e decretação de prisões de servidores e membros de outros partidos políticos, por envolvimento em escândalos de propina, que não geram o mesmo efeito. Por exemplo, os escândalos do Cartel de trens e metrô de São Paulo, assumido pela própria corruptora; obras civis de grande porte;  licitações de transporte público;  desvios em merenda escolar;  crimes de caixa 2, denunciados em 2006 por Carta Capital, envolvendo campanhas de três dos principais candidatos do PSDB e outros tantos estão perdidos nos escaninhos da Justiça, alguns até mesmo com investigações policiais parados há mais de cinco anos.

Um terceiro parêntese: um ex-Senador de Minas, criador do crime que passou a ser conhecido como mensalão tucano, delitos praticados em 1998 durante sua gestão como governador, somente em 2017, ou seja, 19 anos depois, foi julgado e o réu preso.

O estranho é que vários envolvidos nestes crimes recentes foram presos e estão sendo processados, porém, dos figurões do PSDB somente um está sendo processado, mas ele próprio e os demais não sofreram nenhum outro tipo de constrangimento, além de breves notícias da imprensa e todos detêm o domínio do fato.

Não é estranho? Um dos principais envolvidos, tido e havido como "capa preta" do PSDB acaba de ser libertado por ordem do "soltador mor" e o crime corre para a prescrição.

Agora, Brumadinho, onde engenheiros e técnicos são presos e o presidente da empresa, também detentor do domínio do fato, até agora nada...talvez por ter sido indicado para o cargo pelo Mineirinho.

Falando em bandidos...

É como se as milícias não existissem e nada tivessem a ver com a família real e com assassinatos de uma vereadora e lideranças sociais. Calúnia também é afirmar que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria grampeado representantes do Papa, chefe do Estado do Vaticano e autoridade máxima da Igreja Católica.

Você anda pelas ruas e leva um susto porque, apesar de tudo, as ruas estão vazias. Impossível não lembrar de 2013, 2014, 2016... E você se pergunta "o que está acontecendo"? E observa a verdadeira queda de braços, por privilégios, entre mídia e governo.

Que país é esse?

Até parece que a grande mídia é investigativa, movida pelo afã da verdade, pelo compromisso com a comunicação. Vejam o sossego que deram para o motorista da família Presidencial que, apesar dos "rolos", é excelente pé de valsa e passa bem, muito obrigado, quem sabe um dia, quando der na telha, ele aparece lá Ministério Público...

Mas isso tem explicação: pode ser porque ele não é um petralha.

Na verdade, o atual governo é isento de suspeitas. Nada pesa contra o Presidente da República, sua família, partido e base de apoio. Chegou ao Planalto numa disputa totalmente dentro das regras democráticas, um WhatsApp aqui outro ali, tudo sem muita importância, tanto que foi investigado pelo TSE que nada encontrou de ilegal.

No geral, trata-se de um governo composto por um fantástico quadro de ministérios que não tem, de jeito nenhum,  uma suposta sequestradora de uma criança indígena; um detrator de Chico Mendes; um defensor de milícias; um acusado de fraude ambiental; um suspeito de desviar fundo de pensão; suspeitos de desvios de recursos do Fundo Partidário (suspeita-se que o dinheiro foi transferido para uma senhora, dois dias antes do final da campanha, ela já se encontra no exterior).

Também não tem, de jeito nenhum, aquele bando de urubus engravatados a serviço das corporações estrangeiras, ocupando cargos de ponta. Nem juiz acostumado à fama, acusado de abuso de poder, com as Nações Unidas no pescoço. Na Pátria Amada, não tem nada disso e a polícia só pode matar em legítima defesa.

Você anda pelas ruas e é como se no poder Judiciário, ninguém tivesse rabo preso. Vide a Suprema Corte, contra a qual não pesa nenhuma suspeita. Que digam as mútuas acusações feitas em plenário, ao vivo e a cores, para todo o país assistir. Aliás, o sentimento é de que as instituições operam normalmente. É por isso que, no Brasil, golpes são impossíveis de serem armados e executados.

Ante qualquer ameaça ao regime democrático, a imprensa, o STF, o STJ, o TSE, TRFs, o MP e própria PF atuam em socorro da democracia. Seus membros jamais operam por interesses próprios ou políticos. É por isso que essas instituições são tão ilibadas. Os agentes de justiça zelam, dia após dia, pela proteção do Estado Democrático de Direito. Tudo do povo, pelo povo e para o povo, frase consagrada por Abraham Lincoln.

Um golpe também seria impossível porque temos um conjunto, diversificado e representativo da pluralidade que é o país, de empresas de comunicação. Comprometidas com a liberdade de expressão essas empresas estão preocupadas em informar bem as pessoas.  Não manipulam o debate, trabalham com o contraditório, criam dúvidas saudáveis em seis leitores ou telespectadores, verdadeiramente botam o país para pensar.

Aliás, seriam as primeiras a denunciar conspirações ou golpes de estado. Nacionais e internacionais, em respeito à soberania dos povos e temor à iminência de uma guerra, pauta impensável, afinal, estamos seguros no Brasil. É cada vez menos importante o conteúdo que vem da imprensa mundial, não vem ao caso o que afirmam ou escrevem, afinal, são dominados por comunistas e impregnados de marxismo cultural.
É fake news que mais de 60 milhões de brasileiros estejam com seus nomes "sujos" nos cadastros de controle de crédito.

O atual governo está tão ciente de que nosso pior inimigo é a desigualdade social, que passaremos a fazer justiça na cobrança de impostos. Estamos seguros de que nosso sistema bancário jamais apostará contra o país na ciranda financeira. O Banco Central está fortalecido, mais precisamente sobre o controle do lucro (spread) dos bancos, impedindo que ele seja o mais alto do mundo e em boas mãos, um economista de Chicago, neto do pai do neoliberalismo brasileiro.
Você anda pelas ruas e é como se vivêssemos em um país soberano. Um Brasil que jamais permitiria a instalação de bases militares do império em território pátrio, muito menos entraria ou facilitaria uma guerra contra um país irmão, como é o caso da Venezuela.

Aliás, seria impensável um general brasileiro assumir o subcomando no Comando Sul dos Estados Unidos. O atual governo, inclusive, deu provas de total consciência de que isso seria incompatível com nossa política nacional de defesa, até porque isso foi decidido no Congresso Americano e não no brasileiro, basta procurar vídeo no youtube.

Além disso, temos um chanceler que é exemplo de estratégia e inteligência. Sem dúvidas, ele saberá aproveitar as oportunidades abertas na disputa pela hegemonia entre Estados Unidos e China. Até porque tem sido inspirado pelo guru da República. Um homem verdadeiramente sábio, conhecedor dos mistérios dos astros e das principais teorias filosóficas que nos guiaram até este verdadeiro paraíso na terra.

Tanto que na Educação, ministério de tão grande relevo, existe outro pupilo por ele ungido. Um ministro que mostra ter plena consciência da importância da universidade pública. Privatizar o ensino superior? Militarização total, em todas as esferas do ensino? Controle ideológico de professor? Escola Sem Partido? Questões que passam longe das preocupações de alunos e professores.

Não nos enganemos: o que ouvimos de críticas não passam de calúnias, afinal, a ONU é comunista, o Papa é comunista, até Obama, para quem Lula é o cara, é comunista. E que ninguém aqui nos acuse de falsa ironia! Trata-se de ironia verdadeira e assumida, porque você anda pelas ruas, praias, parques, shoppings e a sensação é a de que nada de grave está acontecendo.

Falando sério...

Marielle e seu motorista foram assassinados e até agora, passados mais de 11 meses de "investigação" sequer suspeitos foram efetivamente apontados. Um escândalo pior do que outro surge na mídia e desaparece, sem consequência alguma. Nada funciona e aumentam represálias e ameaças contra parlamentares, artistas, professores, cientistas, jornalistas.

Agora, após a morte dos meninos no Flamengo, descobriu-se que o local não tinha "Habite-se". E pior: a prefeitura do Rio de Janeiro, segunda cidade em importância da América do Sul, também não tem "Habite-se".
Aliás, certamente, o Brasil não tem "Habite-se".

Fake news continuam a todo vapor disseminando ondas e ondas de desinformação e, ninguém, até agora, impediu isso. Nenhuma voz é forte o bastante – seja do meio político, jurídico ou da sociedade civil – para alertar o risco imenso que corremos.

Risco de entrarmos em uma guerra que justifique o Estado de exceção e policialesco que, ao fim e ao cabo, é o que está aparecendo no horizonte, porque, como afirma Manolo Monero - editor de El Viejo Topo de Madri –, em Crisis de las ideologías e ideologías de crisis, nós estamos vivendo um anticomunismo sem comunistas, um anti-socialismo sem socialistas, uma contrarrevolução sem revolucionários.

As elites dominantes sentem que não têm inimigo. Não precisam mais pactuar seu modo de vida, seus privilégios, suas crenças, com uma plebe que não possui um projeto, um partido, um movimento social e sindical forte, portanto com baixa capacidade de resposta, vide o silêncio constrangedor das ruas. O que está em questão é o reformismo.

Falar do programa do PT como o programa de uma força comunista, socialista, revolucionária é um exagero histórico. O que o sistema não admite hoje é o reformismo em fortes ou débeis versões. O que aparece é uma elite com aspiração e poder de impor seus pré-juízos a toda a sociedade.

O que resta à democracia? Somente seu aspecto mais formal, um procedimento para selecionar as elites governantes. Desaparece a democracia entendida como meio para conseguir justiça social, igualdade substancial entre homens e mulheres e desenvolvimento das liberdades públicas.

Sobra, portanto, essa democracia que estamos vivendo:

Uma democracia que não decide nada de fundamental, capturada pelas determinações dos poderes econômicos que colocaram o Estado brasileiro a seu serviço. Na prática, uma espécie de "stalinismo neoliberal que depende exclusivamente do Estado para viver e dominar a plebe."

E mal chegamos a 50 dias de governo...

Joaquim Ernesto Palhares
Diretor da Carta Maior

Bolsonaro e seu filho pit bull. Quando a psicologia atropela a política, por Juan Arias


Os brasileiros, na prática, parecem ter escolhido para a presidência não só o capitão Bolsonaro, mas seus três filhos, todos eles políticos

Jair Bolsonaro ao lado da primeira-dama Michelle e do filho Carlos no dia da posse .
Jair Bolsonaro ao lado da primeira-dama Michelle e do filho Carlos no dia da posse . Agência Brasil


Ficará na história a exótica imagem do Rolls-Royce presidencial em que no dia primeiro de janeiro, ao lado do novo presidente, Jair Bolsonaro, e sua esposa, a primeira-dama Michelle, que estavam de pé, apareceu durante o desfile oficial, sentado na parte traseira do carro, Carlos, filho do presidente e de sua primeira esposa. Seu irmão mais velho, o senador Flávio, justificou dizendo que seu irmão era o “pit bull da família”. Estava lá para defender o pai.
Vereador do Rio desde os 17 anos, Carlos declara “ter política nas veias”. A ele se credita em boa parte a vitória do pai nas urnas, graças à agressiva e inteligente campanha realizada nas redes sociais. Conseguiu transformar o pai, que havia passado 27 anos no Congresso como um obscuro deputado, no novo “mito” político capaz de devolver ao país os velhos valores da família e de lutar contra a corrupção e a violência.
No entanto, Carlos é visto com preocupação dentro e fora do novo Governo, por sua fidelidade canina ao pai, seu caráter explosivo e sua forma de intervir, nas redes sociais, nos assuntos que deveriam pertencer exclusivamente à função da presidência. Tudo pela missão que se atribui de proteger o pai contra os inimigos. Não por acaso, a primeira crise ministerial que sacudiu o Governo, antes mesmo de o presidente deixar o hospital, foi obra do incendiário Carlos, que com suas declarações forçou a demissão do ministro da Secretaria da Presidência, Gustavo Bebianno, que tinha sido, além de advogado pessoal de Bolsonaro, outra figura-chave na disputa eleitoral vencedora.
Essa primeira crise, a 50 dias da posse de Bolsonaro, despertou o alerta no resto dos ministros e personalidades que formam o novo Governo, que perguntam se o presidente continuará a tomar decisões ditadas por seus filhos. Entre aqueles que começaram a demonstrar maior preocupação estão os cerca de 40 militares que fazem parte do Governo. Por eles falou o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, que, com sua ironia habitual, disse à Rádio Bandeirantes, para tranquilizá-los: “A questão do filho é uma questão de acomodação do Governo. A família é unida, os filhos são pessoas bem-sucedidas. Pouco a pouco eles vão entender qual é o tamanho da cadeira de cada um”.
O problema, porém, é que os brasileiros, na prática, parecem ter escolhido para a presidência não só o capitão Bolsonaro, mas seus três filhos, todos eles políticos: o vereador do Rio, Carlos; o deputado federal Eduardo e o senador Flávio. Uma dinastia que já sonha com possíveis sucessões, sem que saibamos ainda a dinâmica dos mesmos em seus interesses internos. Quem seria o possível primogênito?
Os três são jovens que conquistaram milhões de votos nas urnas. Contra a esperança de Mourão de que eles saberão qual é o tamanho da cadeira de cada um, parece certo que a medida com a que sonham é a da cadeira presidencial, da qual já se sentem parte.
Dos três, no entanto, aquele que desperta hoje maiores preocupações imediatas é o explosivo vereador do Rio, Carlos, pois sua relação pessoal com o pai contradiz a famosa teoria do complexo de Édipo de Freud. Carlos não é o filho que, para se afirmar, precisa destruir a figura paterna para se apropriar da mãe. Esta, a primeira esposa de seu pai, ele já sacrificou quando, estimulado pelo pai, concorreu às eleições no Rio contra ela para enfraquecer sua candidatura. Ganhou a batalha contra ela.
Carlos não é o filho em rivalidade com o pai, pelo contrário, é aquele que se diz disposto a morrer por ele. E o pai? Este o apoia e até se emociona diante dessa fidelidade que desafia todos os limites. Eleito presidente, por ocasião do aniversário do filho, escreveu nas redes em 7 de dezembro do ano passado: “Não sou bom para expor minhas emoções, mas quero fazê-lo desta vez: obrigado, meu pit bull, por estar sempre perto de mim... Sua atitude é a de um verdadeiro guerreiro... Conte sempre comigo”. Sobre Carlos, Bolsonaro — que o teve dia e noite ao seu lado no hospital — confessou que tinha sido “seu equilíbrio emocional e profissional” nos dramáticos dias após o atentado contra sua vida na cidade de Juiz de Fora. Há quem comente que oxalá todo pai tivesse um filho tão fiel quanto Carlos. Mas também é verdade o que diz a psicologia, que “um filho sem limites pode se tornar um tirano”.
Ao invés de incentivar o filho a ter prudência, a seguir o relógio do tempo, a ter consciência do tamanho de sua cadeira, Bolsonaro estimula suas qualidades guerreiras. Apresenta-o como seu cão de guarda. Não um pastor ou um São Bernardo, que salvam vidas em perigo, mas o temido pit bull, criado para matar, proibido em muitos países. Carlos é seu cão agressivo e guerreiro.
O problema levantado pelo aguerrido filho de Bolsonaro, temido no Governo e que, segundo alguns analistas, poderia se tornar uma “bomba” pronta para explodir a qualquer momento, é que se trata de um problema de psicologia que se impõe à política. Bolsonaro foi claro para que ninguém se iluda. Estará sempre ao lado do filho pit bull, o grande guerreiro. E alerta: “Estão enganados aqueles que pensam que vão nos separar. Nossos laços vão além do comum”. Mas quando os limites psicológicos do comum são ultrapassados, tudo fica aberto à surpresa e ao perigo.
Se começa a aparecer de verdade que não se sabe se quem governará será Bolsonaro ou seus filhos, também ficam dúvidas e questões sobre o que pensa fazer o novo presidente se, ao contrário do que vaticina o vice-presidente Mourão, os filhos, e especialmente Carlos, não se conformarem com o tamanho das cadeiras que lhes correspondem.
Em um recente debate sobre conservadorismo e atraso, realizado na Folha de S. Paulo, Elio Gaspari, um dos colunistas de mais peso neste país, afirmou que hoje no Brasil “não se sabe quem é o presidente, e talvez nem ele mesmo saiba”. Saberão ao menos seus filhos o que não podem ser?

Proposta de Moro para criminalizar caixa 2 não cumpre o que promete: ser ferramenta de combate à corrupção, por Adriano Teixeira


Projeto do pacote anticrime carece de inovação sobre a legislação atual e deveria contemplar as hipóteses mais graves de doação eleitoral proibida


O ministro Sérgio Moro durante a apresentação do pacote anticrime.
O ministro Sérgio Moro durante a apresentação do pacote anticrime. REUTERS


A proposta de criminalização autônoma do chamado “caixa dois” incluída no “Pacote Anticrime”, formulado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, não será o primeiro projeto legislativo a respeito. Tal como antes, a atual proposta não cumpre o que promete: ser uma ferramenta de combate à corrupção. A criminalização do “caixa dois” eleitoral já constava do PL 4850/16, de relatoria do então deputado Onyx Lorenzoni, projeto esse que consolidava as chamadas “10 medidas contra a corrupção”, elaboradas pelo Ministério Público Federal. E realmente, sem nenhuma coincidência, a atual proposta é quase idêntica à formulação constante do PL 4850 — a rigor, a proposta de Moro aproveita elementos tanto da versão original do PL quanto de seu substitutivo.
A nova proposta acresce um art. 350-A ao Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), logo após, portanto, o art. 350, que incrimina a conduta chamada de “falsidade ideológica eleitoral”. É exatamente ao art. 350 do Código Eleitoral que até então muitas vezes recorrem o Ministério Público e os magistrados brasileiros para punir a prática do “caixa dois eleitoral”, especialmente quando não se consegue provar o cometimento de corrupção. Ocorre que esse tipo penal — “falsidade ideológica eleitoral” — não apreende com exatidão a conduta de “caixa dois eleitoral” e prevê uma pena relativamente baixa.
A conduta básica que se pretende agora punir é “arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral”, sendo prevista uma pena de reclusão de dois a cinco anos. Os parágrafos primeiro e segundo estendem a punibilidade a “quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput” e aos “candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa”.
A respeito do conteúdo da proposta, cabe formular duas perguntas: 1) a proposta traz realmente uma inovação ao ordenamento jurídico brasileiro?; 2) essa inovação é bem-vinda e/ou foi bem concretizada?
O cidadão que se depara com essa proposta poderia perguntar-se: o “caixa dois eleitoral” já não é um crime punível no Brasil? Ou, ainda de modo mais específico, o “caixa dois eleitoral” não é corrupção, já punível conforme os arts. 317 e 333 do Código Penal? A conduta de manter uma contabilidade paralela no âmbito de um partido político pode, dependendo do caso concreto, constituir um ato preparatório ou o exaurimento de um ato de corrupção, mas, por si só, não realiza os tipos penais da corrupção passiva e da corrupção ativa. A corrupção constitui-se por um pacto ilícito envolvendo o oferecimento ou a solicitação de uma vantagem indevida a um funcionário público, em razão do exercício de suas funções típicas (corrupção passiva) ou para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício (corrupção ativa). Ou seja, no Brasil, país que não conhece o delito de administração desleal ou infidelidade patrimonial, a conduta, em si, de manter valores paralelamente à contabilidade oficial de um partido não é crime. Por isso, constitui um disparate, como infelizmente se ouviu e até hoje se ouve de alguns congressistas, falar em “anistia” do crime de “caixa dois eleitoral”. Não se pode anistiar o que não é crime. As condutas pretéritas obviamente não poderão ser punidas com base na nova lei, mas por força da proibição constitucional de retroatividade da lei penal (art. 5º, XL, da Constituição Federal).
Como afirmado anteriormente, o anseio de criminalização do “caixa dois eleitoral” não é novo e parece não contar com muitos opositores. Em geral, considera-se a nova incriminação uma importante ferramenta na “luta contra a corrupção”. Não é à toa que a atual proposta se origina das famosas “10 medidas contra a corrupção”, do MPF. No entanto, do modo que está redigido o tipo penal ora proposto, não é possível perceber qualquer conexão normativa com um delito contra a Administração Pública, cujo principal expoente é o crime de corrupção. A incriminação de manutenção de contabilidade paralela em partido político assemelha-se muito mais a uma infração administrativa-eleitoral, agora alçada a delito, consistente na sonegação à autoridade fiscalizadora (a Justiça Eleitoral) das reais informações contábeis. Se, no entanto, como se supõe, o objetivo é prevenir a realização de condutas próximas ou antecipatórias da corrupção, a proposta teria de ser redigida diversamente, de modo a contemplar as hipóteses mais graves de doação eleitoral proibida, como as de grande porte ou realizadas por grandes corporações. Afinal, são esses tipos de doações que constituem a antessala da corrupção e que são capazes de contaminar a formação da atividade legislativa. Exemplos de regulações nesse sentido não faltam no direito comparado, como na Espanha e em Portugal.
Em suma: a Proposta de criminalização do caixa dois eleitoral seria, de fato, uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, tal inovação, tal qual atualmente formulada, não é adequada para cumprir os propósitos enunciados.
Adriano Teixeira é professor da FGV-SP, doutor pela Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique.