A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas (Foto: Taifur Azam/Divulgação)
Às vezes a gente quer que nasça um texto. E nasce outro. Isso é um sortilégio que a gente tem que aceitar.
*
Quem escreve começa a escrever o que os outros querem ler, quando
querem ler. Isso acontece, sobretudo se você é jornalista. Pra minha
sorte, não é o meu caso, nesse momento em que se disputam corações e
mentes de gente mal informada, abusada midiaticamente, que não entende
de nada, nem de ler um texto, o tal analfabeto funcional que se exibe
nas redes sem vergonha porque não faz ideia do próprio papelão.
Eu não disputaria ninguém, porque amo e apoio os espíritos livres. E é com eles que eu quero ir.
*
Tem uma coisa nesse ato de escrever que é a crueldade das relações
que se instauram entre escritores e leitores. Antigamente, se dizia que
de médico e de louco, todo mundo… Na era das redes sociais se tem que
dizer que de médico, louco e de escritor todo mundo… Escreve-se muito.
Até aí, que bom. Não sei se há leitura correspondente para embasar a tantos que se entregam ao ato crucial da escrita no Twitter e no Facebook. On Bullshit, como diria H. Frankfurt.
Em nome dela, exige-se que cada um escreva aquilo que se deve ser
escrito para saciar os espaços adequados, não a inteligência. Nunca ela.
Nunca o chamado “textão”. Não há tempo para textão. Todo mundo tem
pressa. Inteligência não vem ao caso. Que papo é esse?
*
O mundo do excesso de informação e também de desinformação é um mundo
naturalmente desinteressante. A chamada “lacração” faz parte da ordem
do discurso em que só o que choca ou produz algum tipo de excitação tem
direito de atenção. É duro ser interessante diante de espíritos
dormentes e beócios, e os donos dos meios de produção do discurso jogam
sujo com as mentes vazias e delirantes. As mentes calmas, os espíritos
sutis não tem lugar na guerra antipoética das redes. Ainda bem que há o slam, o hip-hop, que há a poesia. E ainda há poesia.
Penso agora, que luxo é poder ser desinteressante quando a ordem
social e política, ética e estética do mundo anda tão agressiva, tão
alucinada. Que bom poder ficar quieto e aproveitar o convívio consigo
mesmo, deve pensar alguém com a sabedoria de quem já viu de tudo nessa
vida e, nela, alcança a façanha de continuar vivo pensando que ainda vai
achar algo realmente interessante para ver ou fazer.
*
Nem todo mundo quer o olhar de todo mundo. Às vezes o que se deseja é
só um olhar perdido de alguém que se encontra consigo mesmo ao ler o
que a gente escreveu.
Isso valeu todo o esforço e o tempo perdido de escrever. Penso agora
naqueles que acham que não vale mais a pena escrever. Que agora o que
restou já era, só porque o Brasil elegeu a ditadura de um asno no laranjal pra governar. Que imagem horrível, dirá a sociedade protetora dos asnos (que falta de respeito, filósofa!)
*
Estava aqui tentando me entender com meu pessimismo. Você, tem sido
pessimista? Pois é. Estava aqui numa conversa com a minha própria alma,
um diálogo no sentido platônico e original do termo, e era bastante
triste esse meu diálogo porque o assunto era o Brasil. E ele hoje nos
dói mais do que nunca, porque a essa altura da história do Brasil, a
gente – não interessa a cor, a religião, o sexo ou a ideologia – achava
que já se podia ter esperança e ver os seus resultados concretos. E é só
morte, lama, corrupção e miséria, e cancelamento de direitos, e
políticos bizarros e ridículos destilando má fé diante de gente sem noção que – cegos de ideologias que não dizem o seu nome – não sabia o que fazia.
No fundo, aceitam o convite para serem fascistas porque está na moda. Não sabem o que fazem, e não entendem nada de Jesus…
*
Hoje estava ouvindo aqueles meninos todos de Pernambuco cantando com o
Alceu Valença, um mais bonito que o outro, e pensando, que rico esse
Brasil, que coisa mais maravilhosa tantas pessoas que surgem nesse
lugar.
*
Ontem à noite, eu buscava mapas da Ilha Brasil, aquela ilha mítica de
que se falava no imaginário medieval. A etimologia da palavra Brasil,
de fato, remonta à etimologia da árvore do Pau-Brasil. É uma longa
história que remonta ao metal que dá nome à cor da madeira. A história é
longa, mas é a história de nossa vermelhidão, de uma memória da
“brasa”. Não o vermelho das esquerdas ou do comunismo vomitado pela boca
dos otários de plantão a odiar os idealistas da comunhão sempre
insurrectos contra o capitalismo da avareza. Mas o vermelho de brasas,
de algo que vira carvão e um dia vira pó. Pó: aquele lugar ao qual
retornaremos.
*
Perdoem o memento mori, mas falei que esse texto não era sobre
felicidades. Talvez ele se torne, mas ainda temos que passar por algumas
instâncias alquímicas. Lembrei de um texto que escrevi há anos chamado Brasil Cinza.
Escrevi porque a primeira vez em que vi o Pau-Brasil foi na forma de um
cinzeiro na casa de uma gente burguesa e só muitos anos depois é que
achei uma árvore viva daquilo que para muita gente ainda é pura matéria
prima, natureza rebaixada a “commodities”. Era uma vontade de
escrever uma espécie de “filosofia brasileira”, mas que tocasse nas
profundidades materiais do método. Quero dizer, eu queria falar não de
Pindorama, mas do que foi feito do que poderia ter sido Pindorama. Eu
queria falar das sobras e de todo um esquecimento de onde viemos e para
onde vamos em termos de filosofia da nossa triste história.
*
Brasil está longe de ser Pindorama. Brasil, o nosso nome de guerra tem só uns 200 anos. Não é muito mais velho do que o museu nacional que já não existe,
embora estejam tentando fazer um remendo, uma múmia com os restos
mortais do museu queimado como um pau-brasil que virou cinzeiro.
A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que
pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas. E agora os nossos
trópicos carnavalescos (pra quem é dos trópicos e dos carnavais, eu sou
dos subtrópicos e da estética do frio) perdem a cor. Tudo é carvão,
cadáver, resto, nesse país perdido nas trevas em que foi lançado por
tantos algozes extraindo dele o que pode e o que não pode ser extraído
há 500 anos. Extraindo ainda hoje, os minérios (e pensem na morte
anunciada de Minas, como Minas vai sobreviver a tantos cadáveres, tanta
desgraça, a tanta Samarco e Vale?), a flora, a fauna, o nosso povo explorado pelo capital que suga direitos como se fossem sangue.
*
Penso agora naqueles velhos homens brancos europeus com o pau podre
de sífilis empesteando as mulheres vítimas da desgraça eterna de ser
mulher em qualquer tempo da sociedade patriarcal.
Eles vem do inferno e estão prontos à matança.
Penso agora na família Drácula, que detinha o poder na Transilvânia – leia o livro Dracula: A Biography of Vlad the Impaler (E.P. Dutton) – e
volta ao poder, dessa vez encarnada no Brasil. O conde empalador e seus
filhos abjetos, traidores, monstruosos fazendo o que bem entendem
contra o povo que os elegeu ao sabor da miséria espiritual de uma época.
A história transilvânica se repete no Brasil-eterna-terra-de-ninguém.
O mundo seria mais misterioso se o simbólico e o real não estivessem tão intimamente entrelaçados.
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