A discussão sobre a punição de crimes de ódio por motivação LGBTfóbica não é novidade na agenda política brasileira (Reprodução)
Não é novidade alguma que o Brasil, que se orgulha de ser uma terra
paradisíaca construída a partir das misturas e diferenças, apresente
anualmente índices alarmantes de violência contra pessoas LGBT. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia,
em 2017, uma pessoa LGBT foi assassinada por crime de ódio a cada 19
horas. Em 2018, foi um LGBT morto a cada 20 horas. A violência
estrutural e persistente contra este grupo vulnerável não dá sinais de
estar próxima do fim; pelo contrário, em um contexto de ascensão de
forças conservadoras e de franca cruzada moral, multiplicam-se os casos
de agressões e atentados contra pessoas LGBT.
Reivindicação histórica do movimento LGBT desde o início de sua organização,
há quatro décadas, o fim da violência e a criminalização da LGBTfobia
são uma pauta que, ao menos desde 1995, já frequenta os debates
legislativos no Brasil. No entanto, a bancada fundamentalista religiosa,
que só cresceu desde então, tem se empenhado – com total êxito – em
interditar esses debates no Congresso Nacional.
A despeito ou justamente por conta da omissão do Legislativo, nesta
quarta-feira (13) serão julgadas no STF duas ações – um mandado de
injunção coletivo proposto pela Associação de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão proposta pelo PPS. Ambas buscam a
declaração da mora inconstitucional do legislador; o reconhecimento da
obrigação de criminalização da LGBTfobia estabelecida pela Constituição e que o STF estenda o conceito político-social de racismo para abranger a LGBTfobia, algo já feito no caso Ellwanger.
Trata-se de casos complexos do ponto de vista jurídico e que se
tornam ainda mais delicados diante da atual conjuntura de um governo extremamente conservador que mobiliza a diversidade sexual e de gênero como um espantalho moral. Mas, justamente pela atual conjuntura é que se faz necessário que o STF declare a procedência dos pedidos dessas duas ações.
Sem dúvida, a criminalização da homotransfobia é uma pauta polêmica
em nosso país. De um lado, setores conservadores, sobretudo religiosos,
mobilizam-se contra essa proposta do movimento LGBT que, segundo eles,
implicaria uma restrição indevida na liberdade religiosa, de culto e de
expressão, na medida em que não poderão mais propagar “opiniões” que,
muitas vezes, escondem discursos de ódio e de discriminação.
De outro, muitos defensores de direitos humanos e outros militantes
progressistas criticam a luta pela criminalização da homotransfobia sob o
argumento de que ela implica um reforço do Estado Penal e da racionalidade punitiva seletiva que, ao fim das contas, recai sempre e apenas sobre os setores mais pobres da sociedade.
Em relação à primeira objeção, oriunda sobretudo dos setores
religiosos fundamentalistas, nem há tanto mais a discutir. Já está claro
que pregar o ódio, a inferiorização, a intolerância e a violência
contra setores vulneráveis não é aceitável.
O presente texto visa, assim, fazer uma defesa da necessidade da
criminalização da LGBTfobia no atual contexto e, ao mesmo tempo,
estabelecer um diálogo franco e de pressupostos compartilhados com os
que, ao criticarem o Estado Penal e defenderem o direito penal mínimo ou
o abolicionismo, levantam a segunda objeção acima referida.
Nosso objetivo é demonstrar que a aparente contradição existente
entre uma posição de crítica ao direito penal (até mesmo abolicionista) e
a defesa da punição dos crimes motivados por ódio pode ser, senão
superada, ao menos mediada de maneira consequente se considerada à luz
de um diálogo que não oponha, mas que concilie, as tensões entre os
imperativos do direito internacional dos direitos humanos para proteção
das “minorias” e a busca da superação da racionalidade penal, ou seja,
forjando-se uma posição que, sem deixar de problematizar o sistema penal
e as condições carcerárias, crie alianças entre os atores políticos
relevantes para a implementação dessas diversas agendas necessárias para
a democratização efetiva do país.
Por que punir?
A discussão em torno da punição (e da impunidade) dos crimes de ódio
por motivação LGBTfóbica não é uma novidade na agenda política da
sociedade civil organizada e das políticas públicas no Brasil.
Parte expressiva do movimento LGBT, nas trilhas das conquistas dos
movimentos feminista e negro, sempre buscou consagrar o combate às
violências e às discriminações no campo do direito e, em particular, do
direito penal.
Pode-se dizer que essa decisão condensa variáveis diversas e produz
sentidos múltiplos. Colocar determinados grupos no banco dos réus
depende, sobretudo, de qual tipo de conduta será admitida ou censurada.
Não se trata, assim, apenas de conflitos judiciais terminados por juízos
individuais de culpa ou de inocência, em que a discussão central
desenvolve-se em torno dos temas da materialidade e da autoria dos
crimes.
A decisão de julgar e condenar criminalmente determinados discursos e
práticas de ódio se traduz em uma caracterização política e moral
dessas condutas, que passam a ser vistas como injustas e reprováveis,
colaborando com a estruturação de relações com tolerância e alteridade.
Infelizmente, o direito penal ainda é um horizonte dotado de alto grau
de legitimidade em nossa sociedade.
A ruptura dessa cultura de impunidade que hoje reina em nosso país
nesse campo ajuda a empoderar as vítimas e o movimento LGBT, oferecendo
instrumentos de combate em um contexto bastante crítico para esses
setores.
Nesse sentido, a inexistência de outras armas e alternativas militam a
favor da busca dessa solução ainda tradicional. Muitas vezes, a defesa
da criminalização não é por falta de criatividade, mas por falta de
condições políticas. Basta verificar como mudanças culturais e
educacionais, que seriam muito mais desejáveis, estão sendo vedadas com a
retirada, nos planos de educação, de diretrizes de enfrentamento à
discriminação de gênero e de orientação sexual. Isso sem falar nos
projetos de Escola Sem Partido e na patrulha contra a “ideologia de gênero”.
Assim, fica claro que a discussão sobre a punição de crimes
homotransfóbicos deve ser lida à luz dessa intrincada rede de
significados e disputas que marcam a política do presente e não apenas
como uma questão jurídico-criminal.
A necessidade de aprofundar o diálogo e as alianças
Por sua vez, as críticas radicais ao sistema penal e as propostas
progressistas de mudança delas decorrentes alinham-se no sentido de
apontar o caráter seletivo da punição institucional no Brasil, em um
contexto marcado por enormes desigualdades sociais e de tratamento
perante a lei. A economia política das punições, estratificada por
critérios de classe, cor e sexualidade, precisa ser combatida.
Assim, é cada vez mais evidente que o projeto de democratização da
sociedade e do Estado brasileiros passa, necessariamente, pela superação
da “racionalidade penal moderna” tão assentada em nossa mentalidade e
cultura.
No entanto, é preciso considerar seriamente que o embate pela
superação desse paradigma demanda uma aliança consistente com atores
estratégicos que possam dar força social e política a uma proposta de
direito penal mínimo ou até mesmo de abolição do direito penal.
A reivindicação contingente e meramente tática de uso do direito
penal como instrumento hábil a atender, ainda que com as contradições
que esse uso implica em um quadro mais amplo, aos anseios por justiça
das vítimas, o reconhecimento de visibilidade a setores perseguidos e a
afirmação da dignidade de grupos marginalizados não podem ser igualados
ao discurso de setores conservadores que trazem o direito penal ao
primeiro plano do controle social e da repressão política em nossa
sociedade.
Inclusive, é possível perguntar não apenas se devemos ou não
criminalizar, mas o que criminalizar e como criminalizar a LGBTfobia. É
possível pensar em alternativas ao cárcere para determinados tipos de
condutas, construindo saídas que não façam aumentar ainda mais a massa
de 700 mil pessoas que habitam o sistema carcerário brasileiro.
Desde que mantida viva a problematização do sistema penal, o pleito
de punição dos torturadores (de ontem e de hoje) e dos autores de crimes
por motivação homofóbica, machista e racista representa não apenas a
reafirmação do direito penal, mas constitui parte de uma luta política
mais ampla desses setores no sentido de universalizar as liberdades e
ampliar os direitos, desencadeando a possibilidade de enfraquecer os
próprios fundamentos que marcam a seletividade do direito penal e sua
associação aos jogos de poder que preservam os privilégios das elites e o
controle das classes consideradas perigosas. Não se está falando em
aumentar pena ou criar novos crimes que protejam patrimônio ou que
criminalizem a pobreza, mas sim que protejam a vida e a integridade de
pessoas que têm orientação sexual e identidade de gênero dissidentes.
Sem a criação de laços políticos e de lealdade entre os que veiculam a
crítica severa ao direito penal com os diversos movimentos sociais
engajados na construção de uma democracia efetivamente plural e com
respeito aos direitos humanos, tais como o movimento feminista,
LGBT, negro e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, não
haverá substrato material para que avancem essas propostas. Ao
contrário, haverá um afastamento entre a abstração da opinião de recusa
total e sem mediações do direito penal e as demandas concretas de atores
políticos centrais para os projetos de democratização real.
O debate sobre os usos do direito penal e sobre seu desejável
perecimento não pode ser feito descolado dos discursos dos próprios
sujeitos interessados e envolvidos nos debates de política criminal.
Caso contrário, manteremos uma posição coerente, mas sem dialogar com a
realidade existente.
Se todos os crimes em nossa sociedade recebem em troca uma sanção
penal, como argumentar para as vítimas da violência LGBTfóbica que,
agora que é a vez de apurar os crimes cometidos contra eles, devemos
forjar maneiras alternativas de justiça ou manter a impunidade porque
inexiste tipificação penal específica?
Tal posicionamento, ademais, carrega um componente autoritário por
não respeitar a autonomia das vítimas para participarem ativamente na
construção do horizonte da reparação a que almejam, desde que
preservados, obviamente, os limites da legalidade e os direitos
fundamentais dos perpetradores das violações.
Não se trata de defender em abstrato o direito penal, mas de assumir
as contradições desse posicionamento da sua defesa tática, mantendo
sempre a crítica ao sistema penal, sem que se prescinda no momento atual
– na falta de alternativas melhores e sob condições críticas de
recrudescimento do conservadorismo – desse instrumento com toda a
legitimidade que ainda, infelizmente, tem em nossa sociedade.
Já é chegada a hora de derrubar alguns tabus nesse campo que têm
impedido o efetivo diálogo entre as diferentes posições desse debate,
buscando um equilíbrio eficaz e coerente entre a realização da justiça
reivindicada pelos grupos sociais em suas lutas por reconhecimento e a
crítica transformadora do sistema penal.
E será tarefa do STF nesta quarta-feira dar mais um passo rumo à afirmação da plena cidadania da população LGBT no Brasil.
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