Uma economista disseca os cálculos que
fabricam a “crise”, demonstra sua falsidade e contra-ataca: objetivo da
“reforma” é transferir ao baronato financeiro fundos que garantem
direitos sociais
OutrasMídias
Publicado 20/01/2016 às 08:06 - Atualizado 15/02/2019 às 20:44
Denise Gentil, entrevistada por Coryntho Baldez, no Jornal da UFRJ
Aos poucos, à medida em que se aprofunda o “ajuste fiscal”
brasileiro, um velho bordão volta à cena: o do suposto “déficit da
Previdência. Nos jornais, “especialistas” brandem números sem se
preocupar em explicá-los. Benefícios supostamente “exagerados” teriam
tornado o sistema previdenciário inviável. Não haveria outra saída
exceto reduzir direitos. Em sua primeira entrevista do ano, a presidente
Dilma Roussef propôs abertamente elevar a idade mínima para
aposentadoria.
Que se esconde por trás destes números e argumentos? Por desconfiar de ambos, a economista Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dedicou seu doutorado ao tema. Suas conclusões essenciais merecem amplo debate:
> Para falar de “déficit” da Previdência é preciso realizar
uma conta bizarra. Implica excluir da receita do sistema previdenciário
tributos que a Constituição destina expressamente a ele: por exemplo, a
Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL
(Contribuição sobre o Lucro Líquido) e a CPMF (que deverá ser recriada
em breve). Basta incluir estes estes tributos para que surja, em vez do
déficit, um vistoso superávit (RS 1,2 bilhões em 2006, por exemplo)
> O cálculo artificial esconde um interesse: deixar de ver os
benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões, assistência aos
acidentes de trabalho, seguro-desemprego e tantos outros) como
direitos que o Estado deve assegurar, por meio da arrecadação de
tributos. Segundo este ponto de vista restritivo, e ao contrário do que
diz a própria Constituição, as únicas receitas do sistema previdenciário
seriam as contribuições descontadas dos salários da população
formalmente empregada.
> Do ponto de vista da, exceto quando se distorcem os
cálculos. destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da
Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa
contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário,
que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
> O objetivo último é facilmente previsível. Quem alardeia o
“déficit” quer, no fundo, desviar para o pagamento de juros recursos que
são claramente previdenciários. Em outras palavras, destinar à
aristocracia financeira o dinheiro que a Constituição manda usar para os
direitos sociais — inclusive dos mais necessitados.
A entrevista em que Denise Gentil expõe em detalhes suas
conclusões vem a seguir. Para detalhes, leia também, na íntegra, sua
tese: “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005” (A.M.)
A ideia de crise do sistema previdenciário faz parte do
pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século
passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state
(Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos
1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O
pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio
acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de
ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda,
proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à
inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses
individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade
social que fosse universal, solidário e baseado em princípios
redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal
argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção
social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos
custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam,
principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de
envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é
puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema
demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de
direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas
idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e
reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América
Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem
sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você
levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo.
Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos
oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário
não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição
Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de
Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em
consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento,
diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores.
O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação
simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso
está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e
acintosamente não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De
acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo
de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit
foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da
Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o
excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$
72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada
da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU
(Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social
que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito
debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de
interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da
Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que
envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria,
assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da
Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado
para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida
pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam
a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de
juros, para liberar recursos para a realização do investimento público
necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e
milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com
benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em
debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento
econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e de
Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é
proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que
propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência
é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela
Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania,
ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto
de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de
construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de
elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de
hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das
políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo
suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei
antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo,
um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do
Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença,
na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao
Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou
temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter
renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais
evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas
circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que
uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo,
quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo
de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto,
retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a
produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios
previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O
baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno
Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e
os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente
representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores
empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o
faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficouconhecida como
o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de
seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente
por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável,
inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa
salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de
receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo
econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão
da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na
tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo
para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais
não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os
recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente
tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o
orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade
Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da
União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar
outras despesas?
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o
orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de
investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução
orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento
chamando-o de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual
consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com
isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da
Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o
mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União.
E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o
resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse
artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais
recursos para cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode
entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de
cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que
prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade
Social?
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um
isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não
pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo
para o resultado fiscal da Previdência. Mas aceitar que é preciso mudar
o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as
receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito
modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas
também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política
previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a
aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente,
resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada
como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um
campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não
estão suficientemente consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse
assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da
Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo
fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da
Previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência
for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos
lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai
conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem
organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver
mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e
garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como
instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os
desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários
estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como
mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades
sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de
cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são
significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios),
cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são
contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de
forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser
feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na
velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a
população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os
benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito
embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar
condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do
salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e
atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem
benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de
renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário
mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa
incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas
muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática,
já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e
socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a
distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o
crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza
e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a
redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade
nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode
ser captada através de certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema
previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a
fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a
política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema
previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais
importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários.
Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de
financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação
formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja
mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento
que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um
problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada
para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.
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