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domingo, 30 de setembro de 2018

Quando o fascismo posa de rebelde, por Outras Palavras.

Quando o fascismo posa de rebelde

Uma estranha conjuntura permite que Jair Bolsonaro – defensor canino dos capitalistas – apresente-se a milhões como candidato “antissistema”
Por João Elter Borges Miranda
Numa bela canção dos anos 1970, chamada “Acorda, amor”, Chico Buarque cantava uma letra na qual milicos invadem o seu sonho e atrapalham o seu sono. “Era a dura, numa muito escuro viatura”. Desesperado, Chico acordava a parceira e contava-lhe o pesadelo. Ao longo da música, percebia-se ser realidade e não sonho.
Lembrei dessa música cheia de metáforas e meias-palavras quando dei de cara com uma passeata pró-Bolsonaro na principal avenida da cidade onde moro. Conhecida como a capital da “reaçolândia”, Ponta Grossa, interior do Paraná, é onde a sua Associação Comercial, Industrial e Empresarial, no início de outubro de 2017, publicou num importante jornal da região uma carta de apoio ao general Antonio de Hamilton Mourão, o qual na época falou na possibilidade de uma intervenção militar no Brasil. Em 2016, a mesma entidade patrocinou uma chuva de ovos sobre um cartaz do deputado federal da cidade que votou contra o impeachment de Dilma Rousseff. A entidade é a mesma que, em 2014, defendeu que beneficiários do Bolsa Família não deveriam ter direito ao voto nas eleições, pois, por conta das suas condições sociais, não teriam “bom discernimento”, o que os impediriam de ter o direito ao voto.
Mais recentemente, houve outra demonstração de reacionarismo: um vereador-pastor ameaçou prender a cantora Pabllo Vittar se ela “inventar de sair nas ruas” da cidade.
Na carreata pró-Bolsonaro que vi hoje (sábado, 22), havia várias coisas bizarras, como um caminhão do exército puxando na carroceria um monte de gente excitada sob o sol quente, entre eles um cover do Vin Diesel berrando e agitando os braços para cima, como se estivesse num ringue. Tinha um outro caminhão carregando na caçamba uma pequena Maria Fumaça, um trem provavelmente do século XIX, que apitava, fazia fumaça, seguido pelo cortejo de buzinas de carrões do ano e carros clássicos, como Landau e Puma, a maioria com bandeiras do Brasil, adesivos do Bolsonaro e motoristas e passageiros excitados; gritavam, buzinavam, um verdadeiro “carnaval do mito”. Aos montes, vi pessoas de classe média alta, com suas camisas da CBF, claro.
TEXTO-MEIO
São, sem dúvida, a personificação do estereótipo de “reaça”, manifestando-se fervorosamente na avenida.
Pessoas como essas são, a meu ver, o “núcleo duro” do eleitorado do Bolsonaro. É a parcela de eleitores profundamente ideologizada, de extrema-direita, muito barulhenta, guiados pela “defesa da ordem” (baseada na tradição, família, prosperidade e profundamente contra as conquistas das mulheres e de minorias como LGBT+). Essa parcela, contudo, não é a maior.
O grosso dos eleitores do Bolsonaro é composto por trabalhadores que encontraram na figura desse personagem um caminho para escapar das contradições do sistema representativo; estão revoltados com a captura da pólis promovida pelo capital e querem uma saída rápida.
É gente que possui todas as razões para ter pressa, vale apontar. Afinal, hoje as pessoas morrem mais do que antes, perdem seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais; a escalada da violência é gigantesca. Diante dessa progressiva deterioração da vida, desejam que uma mudança profunda no sistema político-institucional ocorra.
Desde as manifestações de 2013 até aqui fica cada vez mais evidente que o sistema político-institucional está em crise de hegemonia. Em todo canto é possível encontrar alguém que está com a cabeça já pelas tabelas por causa da exacerbação do preconceito classista e da amargura provocada pela consciência emergente de injustiça social. “Ao trabalhador que corre atrás do pão, é humilhação de mais que não cabe neste refrão”, captou muito bem em sua canção o rapper Criolo.
Esse legítimo desejo de reconfiguração da política e de repúdio ao que é entendido genericamente como a “velha política”, ou “realpolitik”, não se manifesta somente no Brasil; é algo que se vê no mundo todo. Desde a crise de 2008 vemos pessoas com políticas opostas e inconciliáveis irem juntas para as ruas, pois permeia todos eles um mal-estar: a revolta contra a maneira de funcionar o sistema político institucional.
Na Europa, o emblema disso foi o movimento chamado de Indignados e, nos Estados Unidos, de Ocupe Wall Street. No Oriente, a Primavera Árabe. De diferentes maneiras e abordagens, os ativistas culpavam os governos e as instituições financeiras pelo crescimento das taxas de desemprego e da desigualdade em países atingidos pela crise de 2008 – e continuam culpando. Junho de 2013, nesse sentido, é parte de uma eclosão muito maior, mundial, de insurreições contra o sistema.
Ou seja, do país das calças bege aos Emirados Árabes Unidos, da terra do Tio Sam à terra do sol nascente, um abismo separa a população e o sistema político. Trata-se, portanto, de um fenômeno geral de esgotamento da legitimidade do sistema político institucional.
Estamos, portanto, vivenciando uma crise de hegemonia desse sistema, e não uma “crise de representação”, como alguns dizem por aí. Não se trata, também, de antipolítica, pois a população ainda entende a política (não a “realpolitik”) como um meio de transformação do país, mesmo que, na prática, isso significa apoiar fascistas.
O povo tem colocado em ação direta contra os governos a potência da revolta social, anticapitalista em instinto, embora não ainda em consciência. Esse fenômeno de crise de hegemonia do sistema político-institucional está, portanto, completamente atrelado e imbricado à própria crise do sistema capitalista. É por isso que se trata de um fenômeno global, porque todo o planeta foi englobado (ou, melhor dizendo, engolido) pelo sistema capitalista.
Crise político-institucional e crise capitalista são, assim, faces diferentes da mesma moeda, imbricadas. Dentre outras razões, isso acontece porque o Estado, enquanto instituição-mor da política representativa, está inteiramente atrelado ao Capital, na condição de “funcionário exemplar” deste.
A grande mídia compartilha ad nauseam inverdades de que o regime ultraliberal, ou, como esses litores da burguersia gostam de chamar, o “neoliberalismo”, trata-se de um arcabouço programático e teórico político-econômico que se formou a partir do ressurgimento e ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da mão-invisível. Assim, na “era neoliberal”, o Estado teria um papel ínfimo. Ora, isso não passa de conversa para boi dormir, já que no ultraliberalismo o Estado tem sim papel primordial de garantir que os interesses do capital estejam sempre em primeiro lugar. O capital faz isso através de lobbies que realizam por todos os meios possíveis, incluindo a corrupção, a reprivatização não-oficial do aparelho estatal.
Diante das constantes crises econômicas cíclicas, tão rápidas e profundas que até parece estarmos vivendo uma única crise desde 2008, as grandes corporações necessitam intensificar as relações de exploração e opressão para manter as suas margens de lucro, usando para isso obviamente o aparelho estatal, através da retirada de direitos, repressão a manifestações, dentre outros meios.
A população, obviamente, resiste a esses retrocessos, como vimos na série de manifestações na última década. O capital, diante disso, precisa reorganizar o bloco no poder de maneira brutal, de forma que seja aplacado o avanço da organização dos “de baixo”. Essa reorganização pode significar rupturas institucionais, como golpes; e/ou também através da eleição, para o cargo mais alto do Estado, de um personagem fascista que defenderá os pressupostos econômicos ultraliberais até o fim.
Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, Le Pen na França, o Partido (de extrema-direita) Nacional Britânico (BNP), o partido (também de extrema-direita) Alternativa para Alemanha (AfD), são alguns exemplos de expressões de anti-sistema conservadores. São grupos que conseguem capilarizar o sentimento anti-sistema político da população, mas que, na prática, defendem o mesmo sistema opressor contra o qual se manifestam, na retórica. Combatem em seus discursos os corruptos e corruptores, mas, na prática, não só defendem esses mesmos corruptos e corruptores, como também são parte do grupo. Trazem consigo, entre outras coisas, o componente carismático – phonie, como todo fascismo.
Tendo em vista que o fascismo é o capital na sua expressão mais descarada, o núcleo duro do eleitorado do Bolsonaro, que sai às ruas com estampa do rosto dele, chamando-o de “mito” e se posicionando, no espectro ideológico, na extrema-direita, é consequentemente uma crescente, ativa e barulhenta base de massa de defesa das pautas do grande capital. Mesmo não sendo controladas pela burguesia, as manifestações desse núcleo duro servem, ao defender a eleição do Bolsonaro, como mais um instrumento de legitimação da ofensiva ultraliberal.
Bolsonaro, um verdadeiro oportunista, aproveita-se muito bem disso. “Vou mudar tudo isso aí”, diz ele sempre. Isso é recorrente no discurso do Bolsonaro porque é pela perspectiva da ruptura que os movimentos fascistas contemporâneos organizam-se, como afirmou o historiador Lucas Patschiki, em sua dissertação de mestrado intitulada “Os litores da nossa burguesia: o Mídia Sem Máscara em Atuação Partidária (2002-2011)”.
Jovem e brilhante professor/pesquisador, Patschiki aponta que o fascismo nasce junto com o imperialismo e que essa onda traz consigo a prerrogativa de aceitar os pressupostos econômicos ultraliberais. O objetivo principal, além de implementar a série de contrarreformas que retiram direitos, rifando os avanços históricos arduamente conquistados pela classe trabalhadora, é a quebra completa da organização dessa mesma classe nos limites estatais-nacionais. Em muitos momentos de crise econômica do sistema capitalista, como a intensa e profunda que vivemos na atualidade, o fascismo se apresenta, não raro pela ruptura institucional, como o capital na sua forma mais selvagem para não deixar que nada nem ninguém atrapalhe ou interrompa o processo de implementação do programa ultraliberal. O Brasil, enquanto um país que se insere na lógica capitalista na condição de capitalismo dependente, não foge disso, evidentemente.
Nesse sentido, um e terrível governo Bolsonaro-Mourão significaria não só a continuação do programa de austeridade e retrocesso visto no governo Temer, como também a intensificação e radicalização do regresso. Vivenciaríamos no país a maior perseguição e violência contra as mulheres, minorias (indígenas, quilombolas, etc), dentre outros; além disso, um possível governo Bolsonaro-Mourão, que provavelmente teria como ministro da Fazenda o economista Paulo Guedes, nome conhecido por seus posicionamentos ultraliberais, diminuiria drasticamente a participação dos salários na renda nacional, restringiria os investimentos sociais, promoveria a concentração de capital e renda entre poucos grupos e reduziria a qualidade de vida e segurança do trabalhador.
Portanto, Bolsonaro é alguém que se coloca como subversivo ao sistema, mas que na realidade é lacaio, uma marionete, desse mesmo sistema; paradoxalmente, trata-se de um subversivo sem subversão, um anti-sistema conservador. Como mostrou matéria recente publicada no jornal O Globo, o partido de Bolsonaro foi o mais “fiel” a Temer. Os deputados do PSL votaram com o governo mais até do que o próprio MDB do presidente.
A eleição dele significaria, assim, um decreto de morte para muita gente. E tudo indica que nas próximas semanas as cruzadas dos “profissionais (e amadores) da violência” se tornarão cada vez mais frequentes nas ruas de bytes e de asfalto Brasil afora – em novas e ferozes versões. Com a chegada do dia das votações, a temperatura da campanha sobe intensamente e a liberdade ideológica e de expressão determinada pela Constituição está sendo ainda mais solapada na prática do dia a dia.
Cabe à esquerda denunciar esses falsos subversivos e apresentar alternativas viáveis e plausíveis para a crise. É um trabalho árduo, que também significará, no Brasil, a defesa do resultado da eleição. Quero dizer, nessa época de semi-legalidade instaurada pelo golpe de 2016 em que estamos afundados, corremos o risco das eleições serem desrespeitadas outra vez e um novo golpe, de caráter militar, ser perpetrado. Vimos isso em 2015 quando, provocadas pela grande mídia e estimulada pelos psdbistas, a alta classe média seguiu para as ruas, com o objetivo de se manifestar contra o “erro” das urnas de 2014.
Por isso, quem subir a rampa do Planalto for um candidato de centro-esquerda, teremos duas tarefas primordiais: defender esse novo governo de uma intervenção militar e lutar para que as nossas pautas sejam atendidas, como a revogação das contrarreformas promovidas pelo governo Temer.
Afinal, o grande capital não golpeou o Estado brasileiro em 2016 para agora, somente dois anos depois, permitir que um programa político-econômico progressista seja implementado. Reforço isso porque muitos creem que, com a eleição de um candidato de centro-esquerda, a partir de 2019 vivenciaríamos no país um novo movimento de avanços sociais. Ledo engano. O golpismo, que não começou com a queda de Dilma, não terminará tão cedo, infelizmente.
Não vejo outro meio para fortalecimento da luta contra isso que não passe pela unidade. Unidos encontraremos respostas para transcendermos as aporias de nossa realidade atual; teremos mais forças para lutar contra a corrupção que permeia partidos, ideologias, poderes, instituições; teremos força para lutar contra o fascismo; e vislumbraremos mundos novos e infinitas possibilidades de renovação do sistema político e fortalecimento da democracia.
Só assim, com a sociedade participando do processo político, unida, pautando-se pelo diálogo camarada, que “Acorda, amor” não se tornará realidade, com fascistas comandando o país.
Professor de história, trabalha na rede básica de ensino paranaense e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical.

As três ondas da globalização, por Eleutério F. S. Prado.

A terceira, baseada na pós-indústria e na economia de plataforma pode estar se esgotando, mas não haverá retorno ao “consenso keynesiano” nem ao “socialismo real” e estatista. O que virá?
Por Eleutério F. S. Prado | Imagem: Sebastião Salgado
Introdução
Aquilo que é atualmente chamado de globalização vem de longe na história da era moderna. Como se sabe, trata-se de um processo que se iniciou por meio das “grandes navegações”, no século XV d.C. Ademais, como também se sabe, partindo daí, desenvolveu-se por cinco séculos para chegar a um estado atual que foi prefigurado no Manifesto Comunista, escrito em dezembro de 1847 e janeiro de 1848, por Karl Marx e Frederick Engels:
O descobrimento da América, a circum-navegação de África, criou um novo terreno para a burguesia ascendente. O mercado das Índias orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria, um surto nunca até então conhecido, e, com ele, um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em desmoronamento. (…). A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contatos em toda a parte.
A globalização é um processo complexo cuja descrição cabal exige um escrito de centenas de páginas. Entretanto, pode-se apresentar o seu desenvolvimento mais recente sumariamente – ou seja, considerando apenas o último século e meio – por meio de um indicador da evolução do comércio internacional em nível mundial. Dispondo então da razão entre o volume de comércio internacional e o PIB global, ano a ano, para tal período secular, pode-se apresentar graficamente o movimento secular da globalização em suas altas e baixas em torno de uma tendência que parece ser sempre de crescimento.
As duas figuras em sequência mostram o processo da globalização de um modo que pode ser considerado como bem significativo. Antes de apresentá-las efetivamente, é importante mencionar que a datação de fenômenos históricos é sempre mais arte do que procedimento rigoroso. Aquela aqui apresentada – colhida, na verdade, num artigo de Thomas I. Palley [1], o qual, por sua vez, reflete uma literatura mais ampla – utilizou-se de alguns eventos históricos marcantes.
A estatística descritiva apresentada no gráfico em sequência mostra visualmente que o volume de exportações e de importações como proporção do PIB em nível mundial cresceu de 20% para 60%, entre 1870 e 2008. Ora, este é um resultado impressionante que comprova a tese da tendência à mundialização da relação de capital, tal como foi previsto por Marx e Engels.
A figura acima apresenta também, além da série histórica requerida, três grandes ondas de globalização: a primeira que tem início em meados do século XIX e que vai até o começo da I Guerra Mundial, em 1914; a segunda, que começa após o fim da IIª Guerra Mundial, em 1945, e que dura até a ascensão de governos neoliberais nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, em torno de 1980; a terceira, que se inicia em 1990, quando ocorre o colapso do “socialismo real”, mas que pode eventualmente não ter chegado ainda ao fim. No entanto, é preciso registrar que essa última onda se enfraqueceu fortemente quando sobreveio a crise de 2008, a qual se seguiu uma longa estagnação (que alguns consideram mesmo como uma longa depressão). É, pois, possível também que um novo período tenha sido inaugurado com a crise de 2008.
Note-se que os términos das ondas são marcados seja por regressão seja por estagnação do comércio internacional. Nesse sentido, houve evidente regressão entre 1914 e 1945 e pelo menos alguma estagnação entre 1980 e 1990. Ademais, passou a ocorrer – como mostra a segunda figura em sequência – pelo menos uma estagnação do volume desse comércio após 2008, indicando que a terceira onda parece ter entrado numa fase de esgotamento. Note-se, ademais, que uma tendência à estagnação ocorreu já após 1971, mas ela foi mascarada devido aos enormes aumentos dos preços do petróleo observados no período. Os inícios, em complemento, indicam retomadas do curso de longo prazo da globalização. E essa tendência – julga-se em consonância com Marx e Engels – reflete tanto um certo “caráter revolucionário” da produção capitalista quanto a sua natureza fortemente espasmódica e turbulenta.   
Palley caracteriza essas três ondas, pela ordem, como vitoriana, keynesiana [2] e neoliberal. As duas primeiras, segundo ele, devem ser vistas sob a lente tradicional da expansão do comércio mundial, mas a terceira, diferentemente, deve ser enxergada pela “lente da reconfiguração global da organização da produção”. Ora, como aqui se crê que mudanças históricas na produção capitalista de mercadorias encontram-se na base das três ondas assinaladas – e não apenas na última –, considera-se que a sua maneira de qualificar essas três vagas pode ser enganadora. É patente que, durante todo o período considerado, ocorreram sucessivas mudanças na própria “organização da produção” em nível nacional e global e que essas mudanças (a serem apresentadas) acabaram se refletindo de alguma maneira na superfície mais visível da economia como um todo, ou seja, no comércio mundial.
Para chegar a uma melhor compreensão do tema, é preciso considerar primeiro as grandes etapas históricas do capitalismo e, depois, os seus fundamentos na organização da produção.
Etapas do capitalismo
Há um consenso sobre a imensa evolução do comércio internacional a partir do último terço do século XVIII. Eis que ele cresceu ainda mais do que a produção mercantil que lhe serviu de base:
A ascensão do sistema mundial de comércio, tal como outras características da economia mundial moderna, inicia-se amplamente com a revolução industrial. Os imensos avanços tecnológicos no transporte e na comunicação então deslanchados – desde os navios a vapor, as estradas de ferro e o telegrafo até os automóveis, os aviões e a internet – reduziram fortemente o custo de mover bens, capital, tecnologia e pessoas pelo mundo. A “morte da distância”, empregando assim uma metáfora moderna – tem sido uma das mais importantes forças a moldar desde então o desenvolvimento econômico global desde os anos 1800 [3].
É nessa ascensão que as três ondas de globalização puderam acontecer. Note-se de início, então, alguns elementos de caráter bem geral que as caracterizam. Cada uma delas está evidentemente marcada não apenas por certo desenvolvimento da tecnologia de transporte e de comunicação, mas também pelo poder imperialista que prevalece historicamente; ora, no período aqui estudado, este passou da Grã-Bretanha para os Estados Unidos. A tabela em sequência apresenta essas diferenças esquematicamente:
Ainda que a evolução da tecnologia de transporte e comunicação tenha sido bem importante para o desenvolvimento do processo da globalização, aqui se quer focar centralmente a evolução do modo de organizar a produção capitalista em escala mundial, pressupondo, em consequência, o “imperialismo”. Pois, se tem claro que aquilo que se aponta com esse termo vem a ser uma estruturação de poder entre as nações, algo que existe e se mantém enquanto vigora e domina, em escala mundial, o modo de produção capitalista.
Nessa nota, por isso, adota-se a perspectiva de Milios e Sotiropoulos que se recusa a empregar esse termo para assinalar uma fase histórica do capitalismo. Segundo eles, a palavra imperialismo denota mais corretamente a hierarquia das relações de poder relativo das nações umas em relações às outras. Assim, se há sempre um poder hegemônico nessa hierarquia, este está assentado numa estruturação de poder que se estende para o conjunto das nações formando uma “cadeia imperialista”:
Desde o início o imperialismo tem sido uma característica básica do capitalismo historicamente existente. Não é, pois, produto de um estágio específico do capitalismo. Esta tese torna possível traçar muitos eventos e períodos históricos aparentemente diferentes à mesma causa estrutural. As batalhas para expandir as fronteiras, as lutas para adquirir mercados internacionais (…); o colonialismo, as guerras mundiais, as guerras regionais, os períodos de tensão e de alívio da rivalidade imperialista, a era da Guerra Fria: tudo isso são simplesmente formas históricas distintas das conexões efetivas entre os elos da cadeia imperialista, isto é, a trama contraditória e desigual de poder que conecta as diferentes formações sociais no plano internacional. [4]
Nessa perspectiva, para melhor compreender as três ondas de globalização é preciso dispor de uma periodização do capitalismo enquanto formação histórica que tende a mundialização. Como já se escreveu no passado [5], com base em escritos de Marx, considera-se que a história secular da produção capitalista na era moderna tem três momentos fundamentais: o da manufatura (que vai do século XVI até o último quartel do século XVIII), o da grande indústria (que vai até a década dos anos 1970) e o da pós-grande indústria (da última década citada em diante). Ora, esses três modos de fundar a produção de mercadorias constituem as bases estruturais do desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista tomado como um processo que expande e intensifica a globalização.       
Após a fase da manufatura, nasceu e cresceu o que ficou conhecido como capitalismo industrial. Aqui se enfoca principalmente apenas o período histórico em que este se concretiza. Entre 1770 e 1870 e entre 1980 e 1991 se tem dois subperíodos de significativas transições; neles se formaram, respectivamente, a grande indústria e a pós-grande indústria. Nessas fases de transição subsistiram de maneira importante aqueles modos de produzir que se estabilizaram nos momentos históricos anteriores. Assim, a manufatura ainda se mostrou importante na primeira metade do século XIX e a grande indústria não foi inteiramente ultrapassada nas décadas imediatamente após 1980.
De 1870 em diante tem-se, pois, uma extensa fase em que se expande e se   consolida-se a grande indústria, mas também em que surgem finalmente barreiras internas à sua subsistência e manutenção. Note-se que esse período tem um significado especial na compreensão de mundo que vem de Marx porque ele próprio considerou a grande indústria como o modo de produzir mercadorias especificamente capitalista. Note-se que esse espaço de tempo que excede um século, na perspectiva aqui desenvolvida, contém dois subperíodos (a serem explicitados). De qualquer modo, a fase da grande indústria é superada a partir de 1970 do século passado. Com o esgotamento do grande boom do após guerra surgiram entraves ao desenvolvimento do capitalismo que levaram a mudanças na organização da produção capitalista internamente às nações e internacionalmente.
Note-se que as ondas da globalização manifestam de algum modo o caráter bem-sucedido da acumulação de capital em nível mundial em certas condições históricas. Eis que se formam no correr do tempo determinadas configurações da produção capitalista e estas produzem prosperidade por um certo período, mas acabam por entrar em declínio relativo, tal como ocorreu entre 1914 e 1945, entre 1980 e 1990, e após 2008. Essas configurações, que se sucedem formando “períodos”, surgem como respostas sistêmicas do capitalismo às suas próprias barreiras e crises de desenvolvimento. Como se sabe, a produção capitalista – a concorrência bestial dos capitais – cria barreiras para si mesma, supera essas barreiras, para criar novas e maiores barreiras. Eis que a relação de capital é, como também se sabe, um sujeito social objetivo que impõe imperativos aos sujeitos humanos.   
Essas fases advêm das contradições do capitalismo, mas se configuram e aparecem como respostas que são construídas administrativa, política e geopoliticamente pelos agentes-suportes da relação de capital frente ao evolver das forças produtivas e das relações de produção e, assim, das lutas de classes em geral. Eis que essas lutas se dão entre as classes dominantes dos estados nacionais, mas não ocorrem sem estar fundadas nas lutas entre as suas frações, assim como nas lutas entre elas e os trabalhadores, no interior dos estados nacionais.
Subsunção do trabalho ao capital
Note-se, agora, que estas três formas históricas de organizar a produção de mercadorias, as quais subsistiram e evolveram no interior do modo de produção capitalista, foram caracterizadas pelo próprio Marx como formas historicamente determinadas por meio das quais se deu e, assim, se concretizou, o que ele mesmo denominou de subsunção do trabalho ao capital. Nessa perspectiva, para distingui-las, em O capital, ele associou à manufatura e à grande indústria, respectivamente, a materialização da subsunção meramente formal e da subsunção formal e real do trabalho ao capital. [6] Com base em textos dos Grundrisse, é possível distinguir, então, duas formas algo distintas de subsunção real: uma primeira, material, que se consolidou na grande indústria propriamente dita e uma segunda, intelectual, que se concretizou na pós-grande indústria. [7]
Por meio da subsunção formal, o trabalhador se torna juridicamente subordinado ao capital e se transforma, assim, em trabalhador assalariado. Por meio da subsunção real, o trabalhador deixa de ser o condutor do processo de trabalho; é atrelado ao sistema produtivo, passando, então, a ser conduzido de algum modo por sua própria lógica de funcionamento. A subsunção é dita material quando o trabalhador se torna peça ou “apêndice” de um sistema de máquinas baseado em tecnologias mecânicas. A subsunção real torna-se intelectual quando o trabalhador passa a atuar mormente como cérebro-servidor de um sistema produtor de mercadorias que está cada vez mais dependente das tecnologias da informação e comunicação.
Deve ser enfatizado que a periodização do capitalismo aqui retomada não está fundada em quaisquer características aparentes do capitalismo, mas na consolidação consecutiva das formas da subsunção do trabalho ao capital, ou seja, nas formas societárias que visam manter e expandir a relação de capital e, assim, extrair parte crescente do valor produzido pelo uso da força de trabalho. É preciso notar que, sob a subsunção formal, a lógica da extração de mais-valor funda-se no mais-valor absoluto. E que, sob a subsunção real e material, ela passa a se fundar no mais-valor relativo.
A subsunção formal e a subsunção real, entretanto, não se excluem uma da outra, ao contrário, combinam-se sempre, histórica e dialeticamente, para ampliar sempre mais a subordinação do trabalho ao capital. Note-se que a subsunção formal é uma condição necessária da subsunção real e que o capitalismo avança estendendo sempre mais relação de assalariamento e, ao mesmo tempo, aprofundando a exploração por meio do aumento da produtividade do trabalho. Contudo, é preciso ver também que a lógica própria da primeira predomina no período manufatureiro e que a lógica própria da segunda passa a predominar no período da grande indústria.
Na perspectiva aqui abraçada, a primeira e a segunda ondas de globalização ocorrem no interior do extenso período histórico em que a grande indústria se solidifica, estando ambas marcadas, portanto, pelo vigor da extração de mais-valor relativo:  a primeira acontece sob a hegemonia do imperialismo britânico e a segunda sob a hegemonia do imperialismo norte-americano. Na fase britânica, o seu núcleo dinâmico são as indústrias nacionais e, na fase, norte-americana, este passa para as indústrias multinacionais. Em ambos os casos se verifica um processo expansão do capital que combina elevação da produtividade do trabalho nas esferas e áreas já dominadas por ele com a expansão da relação de capital para novas esferas e novas áreas. Ora, essa expansão se dá por meio de certas configurações de imperialismo.
A terceira onda sobrevém quando passa a se consolidar a pós-grande indústria. Está nasce para superar os entraves ao desenvolvimento da grande indústria no centro do sistema, os quais aparecem, grosso modo, já na década dos anos 1970. O seu impulso principal vem do nascimento e da expansão de formas de organização do trabalho que visam ir além da extração de mais-valor relativo. Ademais, para enfraquecer o poder dos trabalhadores no interior dos estados nacionais, sobrevém o que está sendo chamado de economia de plataforma, isto é, um sistema em que a produção é distribuída entre os países – e se move entre eles – visando minimizar o custo da produção.
A subordinação dos trabalhadores é reforçada não só por meio do emprego das novas tecnologias de processamento de informação e de comunicação, mas também por outros meios. Como a expansão da pós-grande indústria se dá sob a égide do capital de finanças, a subsunção financeira do trabalho ao capital – que não é nova historicamente – ganha enorme importância nessa fase de desenvolvimento do capitalismo.[8] Ademais, como a subsunção do trabalho ao capital se torna societária e totalizante, ela passa a depender também, fortemente, das técnicas aprimoradas de manipulação ideológica e midiática. Como observou Jacques Camatte ainda no final da década dos anos 1960, “com o desenvolvimento da cibernética, o capital incorpora e se apropria do cérebro humano; agora não são apenas os proletários – os produtores de mais-valor – que são subsumidos ao capital, mas todos os humanos”. [9]
O evolver da relação de capital descobre agora novas formas de extração de mais-valor absoluto, agora por meio da precarização, terceirização, superexploração do trabalho assalariado, assim como da espoliação dos trabalhadores seja na esfera da produção seja na esfera do consumo, no centro e na periferia do sistema. Tais formas sobrevêm, então, como formas contemporâneas – neoliberais e cínicas – de manter o domínio do capital não só sobre o trabalho, mas também sobre a vida humana em geral. Pois, as promessas de civilização que o capitalismo continua oferecendo se tornaram agora não apenas meras miragens, mas ilusões genocidas cada vez mais perigosas.
O desenvolvimento da globalização no último século e meio, pela via das três ondas sumariamente apresentadas é perfeitamente consistente com a lógica do capital que visa o lucro e não o bem-estar dos seres humanos e que concede este último apenas circunstancialmente, isto é, somente enquanto o primeiro está bem contemplado. A saudade da “era de ouro”, o protesto dos representantes dos sindicatos nos países centrais, não comovem quase nada os chamados CEO’s – chief executive officers – do capital transnacional.
Nesse sentido, aqueles como o economista pós-keynesiano aqui citado, que pensam a partir dos interesses imediatos dos trabalhadores do primeiro mundo, deveriam ficar ainda mais preocupados com o futuro do que com o passado. A terceira onda pode estar se esgotando, mas não haverá retorno ao “consenso keynesiano”. O “socialismo real” e estatista – advirta-se – também não retornará.
Sabe-se isso, sabe-se também – tal como um gráfico anterior mostrou – que a terceira onda de globalização estacionou, mas, como diz o próprio Palley, “ ‘estacionar’ não deveria ser confundido com ‘acabar’. A economia de plataforma está aí para ficar”.[10] Sim, mas agora, sob grande e crescente rivalidade entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China.[11] As guerras comerciais estão de volta; novas guerras propriamente ditas podem eclodir. Um colapso ecológico está provavelmente se aproximando. Uma debacle do sistema financeiro mundializado pode ocorrer em futuro não muito distante. Logo, parece estarem desaparecendo quaisquer razões para continuar esperando algum desenvolvimento humano no capitalismo, quando o desenvolvimento humano é aquilo que não se pode deixar de esperar.  
________________
[1] Palley, Thomas I. – Three globalizations, not two: rethinking the history and economics of trade and globalization. FMM working paper, Macroeconomic Policy Institute, 2018.
[2] Segundo Palley, a segunda onda teria começado já em 1972. Assim sendo, não teria havido, tal como mostra o primeiro gráfico acima apresentado, um período de declínio do comércio internacional entre 1980 e 1990.
[3] World Trade Report, 2013 – Factors shaping the future of world trade, p. 46.
[4] Milios, John e Sotiropoulos, Dimitris P. – Rethinking imperialism – A study of capitalist rule. Palgrave/Macmillan, 2009.
[5] Ver Prado, Eleutério F. S. – Pós-grande indústria e neoliberalismo. Revista de Economia Política, vol. 25 (1), 2005, p. 11-27.
[6] Um apanhado sobre o significado e o uso dessa categoria em Marx e no marxismo encontra-se em Clover, Joshua, Subsumption and crisis. The Sage Handbook of Frankfurt School Critical Theory. Sage, 2018, p. 1567-83.
[7] Ver Prado, Eleutério F. S. – Pós-grande indústria: trabalho imaterial e fetichismo. Crítica Marxista, nº 17, 2003, p. 109-130.
[8] Em suma, agora, os trabalhadores são não apenas explorados, mas também espoliados; tornam-se trabalhadores endividados, pagadores de juros. Ver Prado, Eleutério F. S. – Subsunção financeira do trabalho ao capital. Princípios, nº 154, mai.-jun. 2018.
[9]  Camatte, Jacques – Capital and community. Londres: Unpopular books, 1988.
[10] Idem, p. 32.
[11] Nesse sentido, o seguinte artigo é bem interessante: Palley, Thomas – Globalization Checkmated? Political and geopolitical contradictions coming home to roost. Political Economy Research Institute, 2018.

Mudança no imposto de renda que planeja economista de Bolsonaro pode agravar a desigualdade e a crise, por Charles Alcantara.


  Jair Bolsonaro Paulo Guedes

Paulo Guedes, assessor econômico do candidato Jair Bolsonaro (PSL), apresentou à sociedade brasileira diversas versões de seu plano de reforma tributária nesta quarta-feira (19). No início do dia, a colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S. Paulo, informou em sua coluna que ele que havia proposto uma alíquota única de imposto de renda, de 20%. Ao longo da tarde, ele desmentiu a informação ao jornal O Estado de São Paulo, dizendo que iria “apenas” congelar a tarifa máxima do IR para 20%.


As duas versões, além de demonstrarem fragilidade nas propostas, têm algo em comum: aumentam o abismo entre ricos e pobres, pois aprofundam a regressividade (já alta) do nosso sistema tributário, além de não trazer benefício algum do ponto de vista fiscal. Se fosse aprovada a primeira proposta, a alíquota de quem ganha até 2.800 por mês saltaria de 7,5% para 20%, ou seja, seria quase três vezes maior. Já a segunda não melhora nem piora a vida dos que ganham menos, mas auxilia quem está no topo da pirâmide. Quem ganha acima de 4.600 reais por mês teria uma redução de 7,5 pontos percentuais. Essa redução da taxa inclui as altas rendas, como quem ganha 135.000 por mês.
As duas propostas ferem o princípio da progressividade no imposto de renda, uma das premissas da Reforma Tributária Solidária –um projeto que analisa profundamente o sistema tributário brasileiro e dos principais países do mundo, escrito por 40 especialistas no assunto. Quem ganha mais deve pagar mais, quem ganha menos, deve pagar menos. Em qualquer uma das duas, quem ganha menos gasta uma parte proporcionalmente muito maior da própria renda com impostos. Sobrando menos dinheiro no bolso do cidadão para gastar com alimentação, saúde, educação, qualidade de vida… Resultado: mais desigualdade para o Brasil e continuidade da grave crise econômica que vivemos.
Se analisarmos as alíquotas-teto de IR praticadas nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), vemos que são muito maiores do que a brasileira –que atualmente é de 27,5%. Como na Bélgica (50%), Holanda (52%) e Suécia (57%), sem contar os países latino-americanos Argentina (35%) e Chile (40%). Assim, podemos ver claramente que o problema não mora em termos uma alíquota alta de imposto de renda e, sim, que ela pese demais para a camadas de mais baixo poder aquisitivo –ou seja, a grande maioria do povo brasileiro, pois, atualmente, a renda média do país é de 2.000 reais.
Diferente do que ocorre nas economias desenvolvidas, a carga brasileira é concentrada em tributos indiretos e regressivos, não em tributos diretos e progressivos. Ou seja, se taxa mais o consumo, que é imposto indireto, do que o patrimônio e a renda, que são diretos. Especialistas da Reforma Tributária Solidária fizeram uma simulação que mostra que uma mudança correta da tabela e da incidência do imposto de renda de pessoa física pode isentar 14 milhões de pessoas e, mesmo assim, dobrar a arrecadação. Uma aproximação do perfil (renda, patrimônio e consumo) do modelo tributário brasileiro ao da média da OCDE, pode resultar na diminuição dos tributos sobre o consumo dos atuais 50% para algo em torno de 40%. Se considerarmos tão somente o impacto da tributação, por exemplo, sobre a gasolina —item estratégico, tanto para a economia familiar, quanto para a economia nacional— isso significa que o preço médio na bomba de 4,50 reais, poderia seguramente ficar abaixo de 4,00 reais.

Precisamos de propostas que impulsionem a economia, melhorando a vida de todos –principalmente da camada mais desfavorecida da população. É preciso conhecimento e olhos bem abertos para não acreditarmos em soluções frágeis e populistas que aprofundam a já abismal desigualdade no Brasil.
Charles Alcantra é presidente da Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) e Floriano de Sá Neto é presidente da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.

A hipótese de Weimar, por Enric Gonzales.

A atriz Senta Söneland proferindo um discurso em Berlim no período entre guerras.
O escritor escocês Philip Kerr morreu em março passado, aos 62 anos. Deixou cerca de 30 romances, entre eles os 14 protagonizados por um personagem singular chamado Bernie Gunther. A graça dessa esplêndida série está no contexto histórico: Gunther é um policial social-democrata que se vê absorvido pelo nazismo (era difícil se opor a sujeitos como Himmler e Heydrich) e, mantendo uma certa dignidade pessoal, trabalha para um regime assassino. O policial nunca deixa de ter saudades da violenta, libérrima e divertida Berlim da República de Weimar, o regime democrático que nasceu após a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e morreu com a ascensão de Adolf Hitler.
O que chamamos de República de Weimar é dificilmente repetível. Catástrofe militar, golpismo comunista, hiperinflação seguida de deflação, terrorismo e caos social: uma época espantosa que deu lugar a algo ainda mais espantoso. Uma de suas características essenciais, porém, foi a incompatibilidade absoluta das duas opções políticas mais dinâmicas, embora não majoritárias. Algo não muito diferente do que a Espanha viveu na mesma época. Quando o diálogo é impossível, não resta outra opção a não ser suprimir o adversário.
Na República de Weimar, as forças democráticas, em especial os sociais-democratas, foram solapadas pela pressão das forças antissistema: os nacionalistas (depois nazistas) pela direita, os comunistas pela esquerda. Quando a situação ficou insustentável, os sociais-democratas buscaram o apoio dos nacionalistas para manter a ordem. E, claro, foram engolidos.
A História nunca se repete. Nem segundo a fórmula marxista (primeiro como tragédia, depois como farsa), nem segundo nenhuma outra. Mas alguns fenômenos se parecem ao longo dos séculos. Veja o caso da Itália, tradicional precursora: o país é governado por duas forças antissistema, o vagamente anarcoide Movimento 5 Estrelas e a ultradireitista Liga, com o predomínio político desta última (minoritária). Os partidos tradicionais foram reduzidos a quase nada. Agora pense no Brasil: é provável que os eleitores tenham de escolher entre o esquerdista Partido dos Trabalhadores (já com experiência de governo) e o ultradireitista Partido Social Liberal de Jair Bolsonaro, de aparência temível.
O senso comum, o mais maleável e manipulável de todos os sensos, diz que isso não acontecerá conosco. Bem... e na França? Existe a possibilidade de que Emmanuel Macron, muito mais popular no exterior que em seu próprio país, sofra um desgaste parecido com o de seu antecessor, François Hollande. E se em 8 de abril de 2022 descobrirmos que o segundo turno da eleição presidencial será disputado entre Marine Le Pen e o populista de esquerda Jean-Luc Mélenchon? Difícil de acontecer. Mas, considerando a evolução das coisas, não impossível.
O policial social-democrata Bernie Gunther não conseguiu compreender como um bando de assassinos (já eram arruaceiros e criminosos perigosos antes de 1933) chegou ao poder absoluto na culta Alemanha. Mas a cultura não conta para essas coisas. Escritores da estatura de Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato elogiaram o sanguinário general Videla. A hipótese de Weimar soa inverossímil. Olhando bem, a História também costuma ser.

Cresce o clima de fanatismo religioso em torno do atentado a Bolsonaro, por Juan Arias.

Ato em apoio ao candidato Jair Bolsonaro em frente ao hospital onde ele está internado, em São Paulo, no dia 16 de setembro
Flávio, o filho de Bolsonaro, foi o primeiro a afirmar que Deus “havia desviado a faca do autor do atentado” para salvar a vida de seu pai. Por sua vez, o carrasco, Adélio Bispo de Oliveira, confessou à polícia que “foi Deus quem mandou matar” o político e candidato de ultradireita à presidência. Curioso esse Deus que ordena a morte de uma pessoa e logo depois desvia a mão do autor para evitar a morte. Alguém pode me explicar quem é esse Deus obscuro que está sendo metido a empurrões nas eleições?
Cresce, de fato, a menos de 15 dias do encontro com as urnas, um clima de fanatismo religioso em torno do atentado ao capitão reformado Bolsonaro. De acordo com informações do jornalista Lauro Jardim em sua página no Facebook, existe um consenso entre os pastores das igrejas evangélicas de que o político se salvou do atentado graças a uma “decisão divina”. E começam a ser organizados grupos de orações para comemorar o milagre. Está em andamento sua canonização em vida.
Alguns até estão desenterrando, com esse motivo, o atentado sofrido em Roma pelo papa católico João Paulo II em 13 de maio de 1981, durante uma audiência pública na praça de São Pedro, realizado pelo jovem turco Ali Agca, que teria militado em grupos da extrema direita e da extrema esquerda. Quiseram comparar aquele atentado que abalou o mundo com o sofrido pelo político brasileiro de ultradireita.
É verdade que também naquele momento muitos católicos consideraram como um milagre de Deus que o Papa polonês tenha saído a salvo do atentado como hoje tantos evangélicos brasileiros veem outro milagre no que ocorreu a Bolsonaro. Na época do atentado ao Papa polonês foi dito que Deus havia “desviado os tiros da pistola” do autor do atentado para salvar-lhe a vida, como hoje teria desviado a faca contra Bolsonaro. Também à época se divulgou que uma pessoa que estava ao lado do autor, supostamente uma freira, havia movido o braço de Ali Agca no momento em que atirava no Papa. Dessa forma os tiros, em vez de atingir seu coração, acabaram ferindo-o somente no ventre. Foi operado em situação de emergência e se salvou. Acabou canonizado.
Eu me perguntei, entretanto, naquele momento em que precisei informar sobre o atentado a este jornal como correspondente em Roma, como me pergunto hoje no caso de Bolsonaro, que Deus é esse que escolhe de quem salvar a vida e de quem tirá-la. Como já havia escrito em meu livro “El Dios en quien no creo” (O Deus em quem não acredito), nunca fui capaz de entender por que Deus deveria salvar milagrosamente a vida de alguém enquanto deixava os outros morrerem. Que salva um Papa dos tiros e de uma facada um político importante, enquanto deixa crianças morrerem de câncer e fome e parece incapaz de desviar as balas perdidas que, no Brasil, acabam todos os dias com a vida de tantos inocentes? Que Deus injusto seria esse?
Às vezes, os agnósticos e os ateus criticam a nós crentes pelo fato de usar Deus como instrumento de nossos interesses pessoais. Têm alguma razão. Todos somos iguais perante Deus que não intervém em nosso cotidiano. Somos somente nós os donos absolutos de nosso destino. Deus não vai às urnas votar, não faz campanha por ninguém. Habita em outros lugares da alma, de onde fala, com seu silêncio, aos puros de coração.
Entre os dez mandamentos das tábuas da Lei, que Deus entregou a Moisés, o terceiro diz: “Não invocarás o nome de Deus em vão”. E é invocado em vão quando fazemos dele um instrumento de cálculos políticos empobrecendo-o e transformando-o no curinga de um baralho. A História está cheia de páginas sangrentas e de injustiças perpetradas em nome de Deus. Não é ele, entretanto, que cria a dor do mundo, e não é o senhor absoluto de nossas vidas. Ele não desvia as facas e as balas dos autores de atentados porque respeita nossa liberdade. Somos nós os únicos responsáveis por nossos atos, não Deus.
É significativo que os milagres que Deus faz às pessoas importantes nunca cheguem aos mais pobres. Ninguém se preocupa em desviar as facas e as balas perdidas endereçadas a esses pobres. Não deveriam votar nesse Deus. Não é seu Deus. Os evangélicos fiéis aos ensinamentos de Jesus têm hoje problemas muito mais graves diante deles nesse país que parece crucificado pela intransigência, a intolerância e o desprezo aos mais vulneráveis, do que ficar discutindo sobre o Deus que salvou Bolsonaro. Estão correndo atrás dos fantasmas de uma miragem que pode acabar cegando a todos nós.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

CIRCADIANO (Poesia), por Màlia Morgado.

É lento o despertar.

Névoa nas vistas, cantos de resina.

Procrastinação em lençóis de incontáveis fios

De algodão … ou aranha.

Ah, é bom esticar na cama

Como um gato.

Mas quando julgamos ainda ser manhã

Vem a tarde e nos expõe, nus,

Na luz brutal, opressora. Nada a esconder.

Não tente. Deixe cair os braços.

O que queres tampar? Já está na cara.

E, assim que eles penderem como cachos e soltares o cabelo,

Virá surpreso o entardecer. Tudo assim fica mais belo: um jarro azul-gris

Derrama filamentos de ouro, sobre todos nós

E seduz. Goza o momento.

É breve, quando tocamos, fecha.

Lembra das dormideiras? Então…

Tem a fugacidade das tuas pálpebras.

Hegemonismo, doença senil da esquerda, por Fran Alavina.

on 19/09/2018Categorias: Brasil, Destaques
O candidato petista é tutelado pelo temor da perda da hegemonia; o eleitor do campo progressista, tutelado pelo temor da real ameaça fascista
Por Fran Alavina
O avanço da corrida presidencial e a chegada de uma disputa aberta no seio do campo progressista (Haddad versus Ciro) revela o labirinto que o PT montou para si mesmo e, por conseguinte, para boa parte da esquerda nestas eleições. A indecisão, muitas vezes precoce, que é possível observar nas dúvidas entre os eleitores que não sabem para quem deve ir o dito voto útil — se Ciro ou Haddad — é já uma expressão dos meandros deste labirinto.
De fato, esta precocidade do famigerado “voto útil” já revela por si só a pobreza das condições atuais da vida política nacional. Ela revela ainda que os eleitores — falo aqui do campo progressista — estão, por antecipação, dispostos a abandonar seu candidato preferido, em favor de uma decisão secamente pragmática. Se do outro lado o ódio parece ser o afeto político mais forte, do lado de cá o temor é o afeto político da vez. Acuados em suas próprias convicções, aqueles que não se consideram reacionários, se veem obrigados a fazer de sua escolha um não escolha, posto que já aceitam não votar em quem querem de fato — mas naquele em que a condição obriga por necessidade que lhes ultrapassa. Vê-se, pois, que já não se trata de resistência ao golpe, pois a resistência nunca se move pelo temor. Aí já se encontra uma primeira derrota que as forças protofascistas nos impõem. Nossa possível vitória não será uma vitória completa, já iniciamos perdendo.
Do vislumbre desta conjuntura, ainda no ano passado nasceu aquela aspiração, quase ingênua, diga-se de passagem, de uma coalização que unisse todas as forças que se consideram à esquerda no campo político. Ingênua, uma vez que esta unidade sempre anunciada como urgente, nunca se realiza. E, agora, além de não se realizar pode mesmo chegar ao fratricídio.
Observando com certo cuidado os caminhos que nos trouxeram até aqui, pode-se afirmar que a unidade do campo progressista não se realizou por uma série de fatores, um dos principais, além dos interesses personalistas, foi o problema de com quem ficaria o lugar de comando dessa pretensa unidade à esquerda. Na medida em que as forças são diferentes em tamanho, mas equivalentes em importância, se abriria uma disputa pela hegemonia. Cálculo político dos mais simples: o que se ganharia e o que se perderia; quem se enfraqueceria e quem se fortaleceria com esta unidade. Diante dos números desse cálculo, o PT, por antecipação, e nem por um instante, pensou em abandonar o posto hegemônico. Uma certa arrogância de que se vê capaz de seguir sozinho e que se considera naturalmente a cabeça desta unidade.
O PT julgou que perder a hegemonia — e o lugar privilegiado de fala em nome da esquerda — equivaleria a enfraquecer a justa e devida defesa de Lula contra os mecanismos persecutórios que o levaram ao cárcere físico. O temor da perda da hegemonia leva então o PT a uma de suas contradições mais visíveis: a oscilação ente o discurso purista e o discurso do especialista de esquerda da realpolitik.
Agor, que, pela primeira vez em mais de uma década, a burocracia petista se vê instada a disputar com um concorrente real os votos do campo progressista e da centro-esquerda, a máquina partidária começa a apelar uma vez mais para o discurso purista e da legitimidade de fala e ação. A crítica de que Ciro Gomes não é um legitimo candidato da esquerda será usada à exaustão pelos petistas mais imunes a uma autocrítica. Todavia, se contra o discurso purista, apresentarmos as associações contraditórias do PT (Haddad abraçado com Eunício Oliveira no Ceará e com Renan Filho em Alagoas, para ficarmos nos exemplos mais próximos em que o PT anula seu próprio discurso do golpe) nossos amigos petistas dirão, sem medo de serem felizes, que são necessidades da realpolitik, governabilidade e todo aquele rosário de escusas que já conhecemos. Ora, se isto retira toda e qualquer aspiração purista e de autenticidade que o petismo reclama para si, cai por terra a justificação da hegemonia. Em outras palavras, pode o petismo atirar pedras em Ciro, pela escolha de sua vice, ou por seu irmão Cid Gomes também estar no mesmo palanque que Eunício Oliveira?
A manutenção da hegemonia se expressa, ainda, na incapacidade da burocracia petista em realizar uma crítica sincera dos seus erros. Como a autocrítica não é feita, pelo medo da perda da hegemonia, o partido não é capaz de nos apontar nada de novo.
A cereja do bolo desta incapacidade atávica em que o petismo se meteu está no mote da campanha: O Brasil feliz de novo. O “de novo” esconde a incapacidade de apresentar algo realmente novo, daí o apelo ao passado recente como se o PT fosse capaz de operar novamente tudo aquilo que de bom realizou antes e tudo aquilo que poderia ter feito e não fez. É o que nos é prometido, e caso não aceitemos os questionáveis abraços de Haddad nos fiadores do impeachment, logo nos mostram ou os erros e percalços de Ciro, ou a necessidade do tal “voto útil”: numa ação quase desesperada de convencimento mecânico. Mas porque o PT assim começa a agir?
Chegamos, então, ao otimismo ingênuo e à tutela como os muros do labirinto. Como o temor é o afeto político que de fato reina entre nós, o único otimismo capaz de ser esboçado é ingênuo e até certo ponto desalentado. Ingênuo, na hipótese de que não se trata de cinismo, posto que nossas condições políticas são outras, a conciliação de antes não é mais possível de ser refeita. Para que o PT pudesse se apresentar de fato credenciado a repetir o que fez e realizar o que não fez era preciso que estivéssemos nas mesmas condições de 18 anos atrás e que o partido tivesse, de fato, apreendido com seus erros se reformulando. Porém, como esta reformulação depende de uma autocrítica sincera e esta não aconteceu por medo da perda da hegemonia, restou então propor a repetição por meio da tutela.
Como se apresenta Haddad, senão como um tutelado, ainda mais após a perda da eleição municipal. É tutelado não só pelo caráter discricionário de sua escolha, mas pelo fato de que carisma não se herda, tal como não é certo que herde os votos de Lula. Quanto mais difícil for a transferência dos votos maior será a força da tutela. Tão tutelado quanto o eleitor do campo progressista na perspectiva do tal voto útil: o candidato petista é tutelado pelo temor da perda da hegemonia; o eleitor do campo progressista tutelado pelo temor da real ameaça fascista.
Neste labirinto, uma coisa é certa, não há vencedores. A única maneira de sair dele não é dar longas voltas pelos muros até encontrar uma saída, mas colocá-lo abaixo. Como fazê-lo? A primeira ação de derrubada é não se deixar levar pelo discurso petista calcado no temor da perda da hegemonia. Se o PT perder a hegemonia no campo progressista não será o fim do mundo, mas talvez a única maneira do partido de fato se reformular, estabelecendo uma autocrítica sincera, pois lhe restará reconhecer que não é mais possível caminhar entre o discurso purista e as práticas de especialista de esquerda da realpolitik.
É evidente, que a esta altura do texto, muitos leitores dirão, já quase no ataque ao autor: “mais com uma esquerda dessa, quem precisa de direita?”. Ora, os que assim pensam já estão completamente imersos nos mecanismos da lógica hegemônica do PT, incapazes de se abriram à crítica já a desmerecem por antecipação, apelando para a lógica simplista: se fosse realmente dos nossos, se estivesse ao nosso lado não diria isso. Confundido, assim, tutela com lealdade. E antes que digam que eu sou cirista de carteirinha segue o link do texto com as minhas considerações sobre Ciro Gomes.

O poço fundo das eleições 2018, por Roberto Andres.

on 20/09/2018Categorias: Brasil, Destaques, Políticas
A tendência é passarmos outros anos calcados no ódio, no flerte com golpes, na burrice enraizada e na proposta fascista surfando na onda da oposição ao governo
Por Roberto Andrés
Até onde a vista alcança, o futuro é um poço fundo cheio de alçapões, tipo aquelas bonecas russas: segundo turno polarizado com metade do país no colo de um defensor de ditaduras.
Resolvi dar uma olhada para trás, relembrar como chegamos até aqui. Como não achei os dados filtrados assim, criei uma planilha com a intenção de voto no primeiro turno em Bolsonaro, Ciro, Lula, Marina e Aécio/Alckmin, além da rejeição do governo, desde 2015. Tudo pelo Datafolha, para ficar com um instituto só e evitar diferenças metodológicas.
* * *
Em dezembro de 2015, Eduardo Cunha tinha acabado de dar prosseguimento a um pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro tinha 3% de intenções de votos, em 5º lugar nas pesquisas. Aécio liderava, com 26%. Lula e Marina empatados com 19%. A reprovação do governo Dilma era enorme: 65%.

Abatido sucessivamente pela Lava Jato, Aécio seguiu em queda livre até maio de 2017, quando foi degolado de vez pela divulgação de conversas delinquentes com Joesley Batista. Alckmin passou então a ser o presidenciável, mas nunca cresceu. Foi nesse vácuo de um PSDB alvejado por denúncias de corrupção que cresceu um certo ex-capitão do exército. Talvez seja preciso olhar para o eleitor do Bolso por essa chave: a pessoa que vestia camiseta “A culpa não é minha, votei no Aécio” e que depois viu seus heróis desmoronarem chafurdados na mesma lama em que estariam “os outros”.
É de ressentimento que estamos falando, visto que esse eleitor não deixou de odiar o PT, mas se sentiu traído pela opção na qual tinha apostado. E decidiu partir pra uma solução mais radical, ainda que obviamente não menos corrupta (a nova decepção é questão de tempo, mas aí talvez as eleições já não sejam mais como conhecemos).
* * *
Em março de 2016, às vésperas da votação do impeachment, Lula atinge seu piso, 17%. O governo Dilma batia recorde de reprovação, 69%. Marina liderava com 21%. Nesse sentido, o golpe parlamentar executado pela velha direita brasileira foi o grande turbinador eleitoral de Lula e do PT. Mesmo economistas de esquerda reconhecem que o governo Dilma1 foi um desastre na economia e que os ajustes do governo Dilma2 não levariam a um lugar melhor do que o que estamos.
Colocado como vítima de uma conspiração, e frente a um governo corrupto e uma economia patinando, Lula viu suas intenções de voto subirem mês a mês desde então. A prisão do ex-presidente, a partir de um processo frágil e desproporcional aos que sofrem outros políticos, fortaleceu ainda mais esse lugar.
É preciso reconhecer que a campanha do PT soube explorar com maestria essa situação, fazendo de um sujeito atrás das grades uma cachoeira de votos. Assim foi possível se criar uma narrativa em que o Brasil triste de hoje teria surgido a partir de 2016 e o Brasil feliz de novo remeteria aos tempos de boa economia de 2010, como se os anos de 2014 e 2015 em que o país passou por uma das maiores recessões de sua história não tivessem existido.
* * *
A curva de crescimento de Bolsonaro segue a de Lula, naquela lógica de que os polos se fortalecem.

Marina Silva, que liderava em 2016, ficou esmagada e não soube se posicionar. Apoiou o impeachment – que era
então aprovado pela maioria da população. Talvez por ressentimento com a campanha violenta que sofreu do PT em 2014; talvez por achar que poderia ter ganho político. O fato é que acabou ferida de morte entre o eleitorado progressista de classe média, restando para ela o eleitorado popular que agora migra em massa para o indicado de Lula.
Ciro Gomes veio estável nesse tempo todo, sempre com 4 a 7% de votos. Seu crescimento recente tem a ver com a boa campanha que vem fazendo, mas talvez não se sustente quando Haddad for se tornando mais conhecido (o que está sendo muito mais rápido do que se previa) e com as próprias trapalhadas de Ciro, que tem gosto em morrer pela boca.
* * *
O PT é o único partido grande de fato no Brasil, com militância engajada, capilaridade, e se há poucos anos ele estava em declínio, a parlamentada de 2016 e a prisão do ex-presidente contribuíram para coesionar o partido de uma maneira que ninguém apostaria. Com o crescimento do petismo, avança também o antipetismo, e hoje o ocaso do PSDB deixou essa metade da população entregue a pessoas que falam abertamente em autogolpe, nova Constituição feita pelos amigos, em metralhar adversários.
Não parece haver nenhuma alternativa de terceira via com chances de chegar ao segundo turno. Se a vida já não era fácil para Marina em 2010 e 2014, quando disputava sozinha a segunda vaga, agora que essa disputa se dá entre três candidatos competitivos, a labuta é no limite do impossível.
Marina e Ciro precisariam estar juntos e com muito mais musculatura para fazer frente ao cenário de extrema polarização que vem aí. Não aconteceu, infelizmente – porque a possibilidade de uma terceira via faria muito bem ao país. Despolarizar ajuda a pensar e focar nos verdadeiros problemas (que são muitos e graves) que assolam o povo brasileiro.
A abertura do próximo alçapão indica que teremos uma eleição mais polarizada e mais violenta do que em 2014, com risco de eleger aqueles que podem fazer com que fiquemos algumas décadas sem conhecer eleições, liberdade individual, posts como este no facebook. Mesmo que isso não aconteça, a tendência é passarmos outros anos calcados no ódio, no flerte com golpes, na burrice enraizada e na proposta fascista surfando na onda da oposição ao governo.