Todas as ferramentas conceituais e
experimentais da esquerda estão sujeitas a uma submissão às formas
sociais do capital. Os escritos de Adorno e Kurz nunca fizeram tanta
falta.
Por Thiago Canettieri | Imagem: Marie Spartalli Stillman, Antígona
e deixai que os mortos enterrem os seus mortos (Mateus, 8-22)
A peça Antígona, integrante da Trilogia Tebana, escrita por Sófocles[1],
é, talvez, uma das mais conhecidas passagens da tragédia grega sobre o
luto e a morte. Quando Creonte, rei de Tebas, entrega o trono a Édipo,
que havia derrotado a Esfinge, este também se casa com Jocasta e, com
ela, tem quatro filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismene. Como se
sabe, Édipo havia matado Laio, antecessor de Creonte, seu pai, e se
casou com a própria mãe, Jocasta. Ao descobrir tal infortúnio Édipo se
cega e pede para ser exilado. Com isso, o trono passa para seus dois
filhos homens: Etéocles e Polinices, que prometem revezar no trono. O
primogênito, Etéocles, reina primeiro, mas não cumpre a promessa,
iniciando uma guerra entre os irmãos que, em batalha, se matam. A
maldição de Édipo segue seu curso, mesmo com seu exílio. Assim, Creonte
reassume o trono de Tebas que, por sua vez, determina que todas as
honras da morte, com sua pompa e circunstância, sejam dadas a Etéocles,
enquanto proíbe que Polinices, considerado um traidor, seja sepultado ou
receba o funeral devido. Antígona, então, decide cumprir as exéquias e
sepultar o irmão que teve seu corpo jogado às aves de rapina e outros
animais. Ela acaba sendo detida pelos guardas que vigiavam o corpo, é
levada até Creonte que a condena morrer presa em uma caverna. Lá,
Antígona se mata.
Aqui, me interessa a questão da pena
estabelecida por Creonte para o corpo de Polinices. Impedir o funeral
aparece, então, como a execução contra aquele já sem vida: a pena máxima
não era a pena de morte, mas impedir que a morte não se completasse
devidamente. Parece que o funeral é a continuação “simbólica” da morte –
evidente, diz menos respeito ao morto e mais aos vivos que “ficaram”.
Assim, ao impedir que o enterro se efetive, Creonte priva a memória de
Polinices do processo de luto, o que importunou Antígona de tal forma
que a leva a desrespeitar o comando, a levando até seu desfecho triste.
A história de Antígona tal como tomo
aqui é, talvez, ilustrativa para ajudar a entender – como metáfora – a
que ponto a ideia de esquerda[2]
se encontra. Assim, trata-se do objetivo deste texto uma discussão breve
sobre um trabalho de luto necessário a ser feito pela esquerda, como
uma alma penada que busca fazer o luto pelo seu próprio perecimento que
assombra a si mesma. Vou considerar aqui a hipótese de que a esquerda,
como uma ideia, evitou de forma narcísica, fazer o luto de sua própria
ideia.
Mas por quê? Se afirmo que a
esquerda tem que fazer seu próprio luto, isso significa dizer que ela
morreu? Evidente que sim, esse objeto que chamamos pelo significante esquerda
está tão esgarçado e desbotado quanto um velho espantalho que nem
presta mais a espantar os corvos. Sua morte foi anunciada, primeiro
pelos seus críticos à direita, notadamente o argumento do Fim da História de Francis Fukuyama[3].
Depois disto, a razão capitalista avançou a passos largos. Mas a morte
da esquerda também foi anunciada desde de dentro, como, por exemplo
Robert Kurz[4] que, na verdade,
identificava uma vitória suprema da autoconsciência da modernidade e da
forma-mercadoria sob o registro da política. O capital havia manchado
tudo, mesmo à esquerda do espectro político e, como erva-daninha,
conseguiu se parasitar.
A existência do capital, nesta
modernidade tardia, tem como pressuposto necessário a manutenção deste
espantalho da esquerda. Da mesma forma, muito do que se identifica com a
esquerda não pode prescindir da forma de mediação social do capital. O
parasita se torna o simbionte – ela deve nutrir o hospedeiro, já que sua
existência é condição de sua própria sobrevivência. E agora o
hospedeiro já não vive mais sem o seu antigo parasita.
Seja a esquerda
institucional-parlamentar “estadocêntrica”, a esquerda
tradicional-radical, que faz “a crítica com as próprias mãos” ou a
esquerda culturalista “pós-moderna” (ou até mesmo suas formas híbridas)
todas se tornam, quer queira ou não, uma forma de gerência do
metabolismo do capital, as formas de experiência política se
circunscreveram a um certo campo simbólico próprio e interno do
capital[5]. De uma forma mais
direta: as ferramentas conceituais e experimentais para pensar o
comunismo, de certa forma, envolvem, necessariamente, uma submissão à
racionalidade do encadeamento de sentido já existente comandado pelo
capital.
Essa é a crítica radical e negativa
que deve ser levada contra a esquerda e pela a esquerda, para, assim,
pensar a própria esquerda.
A anedota que Slavoj Zizek
frequentemente comenta, sobre a troca de telegrama entre
quartéis-generais da Alemanha e da Áustria na Primeira Guerra Mundial
pode ajudar a pensar nossa questão: num determinado momento o
quartel-general alemão enviou a seguinte mensagem: “aqui, do nosso lado
do front, a situação é séria, mas não é catastrófica”, ao que os
austríacos responderam: “aqui a situação é catastrófica, mas não é
séria”.
A situação inusitada que os
austríacos se refeririam a situação é o que a psicanálise chama de cisão
fetichista: eu sei muito bem, mas . . . (não acredito realmente). O
conhecimento da catástrofe no front austríaco era iminente, mas, de
certo modo, não a levavam a sério. Não é nesta situação, marcada pela
cisão fetichista, que a ação política à esquerda se encontra? Muito de
sua existência não aparece como problema para o movimento do capital, e,
em muito, os fundamentos do movimento do capital de autoexpansão e
reprodução, a saber: trabalho, mercadoria, propriedade e estado passam
sem questionamentos.
Assim, não parece absurdo pensar que a
esquerda está morta. Se no campo das ideias a fantasia ideológica que
se estruturou impede uma reorganização da cadeia de sentido que organiza
as trocas simbólicas e sociais e a esquerda se tornou mais um dos
elementos que sustenta a própria acumulação, não soa catastrofismo
pensar que seguimos fado semelhante ao de Polinices. E sem Antígona para
lhe enterrar.
O tempo presente não nos deixa
mentir: a esquerda parece se debater dentro dos seus próprios limites,
tanto do pensamento como de sua prática correspondente. O recuo da
esquerda fica hoje evidente com os sucessivos fracassos, resultando no
avanço da direita (moderada e radical) ou, quando não, na mimetização da
própria esquerda em direita.
Na verdade, a esquerda de todo o
mundo se tornou mimetizada, em conteúdo, às pautas dos grandes capitais
internacionais e sujeita a pressão colocada pelas determinações próprias
da acumulação. O máximo que parecem avançar é tentar criar um rosto mais humano para o capitalismo[7].
Pouco sobra para se dizer de esquerda exceto alguns símbolos vermelhos,
algumas citações clássicas de Lenin, e, no melhor dos cenários, algumas
políticas de distribuição de renda (que, ao fim e ao cabo, servem para
manter o consumo e, portanto, a efetivação do lucro). Parece ser
evidente a estratégia do que se autodenominam de esquerda: conciliação
de classes, desde que não incomodasse os interesses da acumulação[6]. O
que fica evidente ao lembrar das várias das reformas mais fundamentais
ao funcionamento do capital que foram, em diversas ocasiões, levadas a
cabo por partidos da assim chamada esquerda. O que temos na história
mundial é uma longa lista de capitulações que a esquerda se prestou a
fazer. Blair no Reino Unido era do Partido Trabalhista; Schröder, do
Partido Social-Democrata Alemão; Massimo d’Alema do Partido Comunista
Italiano; François Hollande, do Partido Socialista da França; sem
esquecer é claro a Coligação da Esquerda Radical, abreviado para Syriza.
Olhando desde o Brasil, é irônico perceber que é a esquerda que fecha
todo o novo ciclo da Nova República, logo ela que tanto lutou durante a
ditadura para seu início. Há um que de tragédia na história da esquerda
Não é o Partido Comunista Chinês o
que melhor representa esse axioma? E assim se segue o jogo de aparências
– se a esquerda não parece mais esquerda, é porque efetivamente, não o é
mais. A estrutura lógica do capital se impõe e sobredetermina a prática
política. A esquerda, portanto, é morta.
Isso se dá em um movimento de espantoso deslizamento semântico[8]. Entre uma crise de significado ou um discurso propriamente cínico[9],
a esquerda se viu embolada neste deslizamento, ficando sem uma “bússola
das palavras significativas que lhe permitam balizar o caminho da
emancipação”[10]. Além da
significativa perda de rumo obviamente decorrente desta ontologia de
produzir insignificância do capital, a esquerda, quando imagina ter de
alguma maneira “recuperado suas referências normativas para sua ação,
estas são engolidas ato contínuo pelo redemoinho dos simulacros”[11] do capital.
A falta de efetividade da esquerda é
tributária à própria falta de negatividade das esquerdas frente às
categorias burguesas que buscou, um dia, dissolver. A esquerda parece
ter abjurado de alguns dos princípios mais fundamentais do que Marx
colocou em questão para se apegar numa certa forma de Programmatismo, como o que o próprio Marx[12] criticou duramente em Gotha.
Esse processo é resultado da
consolidação das formas de mediação social próprias do capitalismo. A
forma-mercadoria se tornou um fato social total, completamente
impregnado na vida cotidiana. Como organizador geral da sociedade, as
implicações não significam outra coisa senão a adoção do mercado como o
espaço de produção das verdades. Os desdobramentos são vários.
Lembra-nos Paulo Arantes[13] que
estamos, e em especial, a esquerda, diante de uma era de expectativas
decrescentes. O horizonte de expectativa está comprimido, resta apenas
alguns milímetros acima do mar de lama que se estamos afundando.
E diante disso o máximo que a
esquerda pode almejar é lutar para que o futuro não seja pior. Afinal,
na sociedade securitária do risco, não lutamos para um futuro melhor. E,
assim, a esquerda sufoca sob o peso paradoxal do estado calamitoso do
mundo desde que as forças autonomizadas do mercado reassumiram o
comando”, nos diz Arantes. A
autonomização das formas sociais do capital (mercadoria, trabalho,
valor, Estado) já se realiza de tal forma que são indiferentes à vida
humana. Mais especificamente, aquilo que Marx chamou de fetichismo de
mercadoria se colocou na prática para nossa vida.
Assim, a esquerda se torna uma
coadjuvante no teatro marcado pela reprodução ampliada do capital. Mas
mais preocupante é se contentar com o papel menor relegado junto a uma
massa disforme de figurantes na baila expansiva das formas sociais
autonomizadas.
A inserção da esquerda na totalidade
social fraturada e antagônica do capital esqueceu das contradições para
desempenhar o papel de gerência da crise. Esse é o sentido mais forte de
pensar o metabolismo simbiótico desenvolvido entre esquerda e capital.
Sua existência é tão necessária ao capital quanto o “proletariado”. Isso
porque a esquerda passa, mesmo que inconscientemente, a racionalizar as
irracionalidades da acumulação de capital – seja pelo discurso
protopolítico da caridade e do assistencialismo, seja pela presença das
ONGs, mas, até mesmo, nos movimentos sindicais, dos sem-teto, de reforma
agrária e os partidos de esquerda em geral.
Assim como uma grande parte da
esquerda historicamente se assentou sob um fetiche do trabalhador, como
um desdobramento do fetiche da mercadoria, a esquerda contemporânea se
coloca no mundo a partir do fetiche da pobreza. Evidente, não poderia
ser outra coisa: num mundo com o aumento do pauperismo (hoje a população
sem teto aumento a passos alarmantes nos Estados Unidos) e que a
pobreza aparece como uma presença irremediável, são necessárias
desenvolver formas de lidar com essa pobreza, subjetiva e objetivamente.
A esquerda talvez seja a melhor forma de fazer isso.
Nicolas Malebranche, teólogo francês
do século XVII, se perguntava: Por que Deus criou o mundo? Sua resposta
pouco provável, lembra Slavoj Žižek[14],
é perturbadora: para que Ele pudesse se regojizar na glória de ser
louvado por Sua criação. Deus, portanto, desejava reconhecimento e, para
isso, precisaria de um outro que O reconhecesse. Malebranche vai até o
ponto central e conclui que Deus criou o mundo por pura vaidade
egoística. Com isso, Žižek elabora que “uma figura santa que se
sacrifica para o benefício dos outros, para livrá-los de seus
sofrimentos, quer secretamente que os outros sofram para que possa
ajudá-los”. Ou seja, o sofrimento dos outros é mobilizado na satisfação
narcisista.
A mesma estrutura narcísica pode ser
encontrada nos ativismos de toda sorte que hoje se colocam como opções
de esquerda. Seja com textos ou com trabalho de base, esta ação se
aproxima perigosamente da caridade egoística de nosso tempo. Pouco
separa esses militantes de bilionários como Bill Gates (a conta corrente
no banco é, com certeza, uma das que separa). O ponto é que a estrutura
da ação é orientada para um gozo do indivíduo. Não que isso fosse, a
priori, qualquer problema. A questão é o registro de reforço positivo
que se pode entrar, operando em sempre robustecer a fantasia ideológica
que deveria ser enfrentada.
Por outro lado, encontramos também na
esquerda uma enorme timidez, disfarçada sob o manto do discurso de
“correlação de forças”. O cenário desfavorável que costumeiramente é
colocado em evidência serve menos como “análise concreta da realidade
concreta” e mais como uma forma de justificar as ações de baixa
intensidade que estão empreendendo. Parecem perder de vistas que somente
a esquerda é ela própria o que está esperando.
E, por fim, a esquerda, de maneira
mais evidente, aquela moderada, mas também a própria esquerda radical e a
culturalista, se convertem num progressivismo tímido que aceita a regra
do jogo. E ambas adotam o famoso lema de ninguém menos que Margareth
Tatcher: There is no alternative. Ironia refinada em que a esquerda de baixa negatividade se meteu: refém do “poder ofuscante da falsa imediatidade”[15].
Os imperativos de sua atuação, manutenção do poder nas estruturas institucionais para fazer o que dá para fazer não é tão diferente da esquerda radical, dentro e fora das instituições, que se atem em fazer o que dá para fazer. A esquerda, um dia, desejou fazer exatamente o que não dava para fazer.
Porque fazer o que não dá para fazer – de certa forma, fazer o
impossível – significa partir de algo que não se circunscreve dentro do
universo simbólico dado. Essa situação resulta numa espécie de política
barrada: como não existe a possibilidade para fazer uma mudança radical a
ideia de uma revolução é retida e circunscrita pelo campo simbólico
instituído: ela sobra, mas sem o seu conteúdo fundamental que a possa
efetivar como mudança radical.
Evidente que a esquerda chegou a sonhar alto. Os communards,
os bolcheviques, os camponeses chineses, os guerrilheiros de Cuba, os
estudantes europeus de 68, os militantes sulamericanos à época das
ditaduras. A esquerda, sonhou com a revolução[16].
Houve o momento que, de fato, o espectro do comunismo rondava a Europa
(e depois o mundo). Entretanto, o colapso do comunismo internacional e
bem sua forma pervertida forçou a tomada de posições defensivas e
entrincheiradas por parte da esquerda.
Depois de duas guerras mundiais, do
holocausto, dos sucessivos golpes militares, do neoliberalismo, da era
pós-ideologica, esse espectro parece ter sido exorcizado. A revolução
como mudança social radical não está em pauta – soa quase lunático falar
em revolução e, quando não – no meio das organizações políticas – esse
significante se encontra completamente destilado e desubstancializado.
Um significante vazio para um significado morto. É isso que Slavoj Žižek
chamou de “narcisismos da esquerda pela Causa perdida”. Algo que se
perdeu, mas não foi completamente descolado. A insistência perturbadora
deste objeto assombra.
A esquerda conseguiu manter em um
certo nível, a real crítica da sociedade capitalista. Entretanto, sua
existência não é externa ao problema político colocado pela esquerda à
ela própria. Mas o desenrolar da infinitude espúria do capital
encaminhou para uma superficialidade de seu conteúdo em uma profunda crise de práxis, afirma Sabrina Fernandes[17].
O resultado disso, de ambos os lados da esquerda,
moderada-institucional ou radical, é que depois do breve avanço dos
momentos áureos rumo a um horizonte de águas não conhecidas, este foi
rapidamente desfeito e a esquerda, em quase todas as experiências,
compelidas a um triste retorno do mais do mesmo. Seja por balas de
canhão, seja por limitações próprias, a esquerda retornou as formas
sociais que criticara: forma-trabalho, forma-dinheiro, forma-valor,
forma-Estado, forma-capital.
O mais triste disso, lembra Badiou[18], c’est le desert que se formou: busca-se mais alternativas dentro do sistema capitalista, e não a ele.
Não existe um campo de pureza para onde se busca inspiração para levar ao fim do capitalismo.
Diante deste cenário, Slavoj Žižek,
no contexto do evento Marxismo 2009 em Bloomsbury, no dia 02 de julho de
2009, em uma fala que ele nomeou de: “What does it mean to be a revolutionary today?”
Žižek reflete sobre as aporias da esquerda para a transformação social.
Entre elas está a tentativa – fadada ao fracasso, ou, mais
precisamente, a perpetuação (e portanto, vitória) do capital – de
transformar o capitalismo num regime mais justo, atribuindo-lhe um rosto humano (mas foi exatamente contra isso que Marx e Engels lutaram à sua época para transformar a Liga dos Justos numa Liga dos Comunistas).
Assim, a maior parte da esquerda passa por um duplo fetichismo: o
primeiro é uma espécie de nostalgia do passado, na crença absurda de que
houve um passado puro (seja Stalingrado, seja a Comuna de Paris, seja,
ainda, as tribos primitivas da América Latina); o segundo é um
fetichismo que poderíamos chamar de espacial,
voltado a tentar encontrar algum lugar onde “as coisas estejam
realmente acontecendo”. Em geral países da América Latina como
Venezuela, algum squatting ou nas periferias urbanas como espaços comuns.
Me faço claro: cada um dos três tipos
de esquerda que mencionamos anteriormente acredita ter encontrado a
sua. A esquerda tradicional-radical leva até as últimas consequências a
figura eleita de sujeito-revolucionário. Os pobres periféricos, os
trabalhadores de fábricas, seja qual “fração” for, ela passa a ser o
metro revolucionário. A esquerda culturalista passa por dois outros
registros que, não raro, são complementares. O primeiro, é a crença de
um retorno pré-moderno que não pode ser mais absurdo do que o desejo de
se retornar ao útero materno, numa história fetichizada das tradições
(ameríndias, africanas ou do extremo oriente). O segundo movimento da
esquerda culturalista está a elevação da identidade e do lugar de fala
como princípio máximo da política que não faz outra coisa senão uma
versão positiva da conjuntura de exceções, transvestida de crítica
estrutural. Por fim, a esquerda institucional-parlamentar talvez seja
aquela que aparece e se afirme mais ‘pragmática’: já que não existe
campo de pureza, temos que jogar as regras do jogo. Só que este
movimento coloca a realpolitik exatamente no lugar de onde saí como crítica: único campo possível.
Assim, temos um grande problema pela
frente: Todas as ferramentas conceituais e experimentais da esquerda
estão sujeitas ao o que poderíamos chamar de uma submissão as formas
sociais do capital. Fetichismo do sujeito, fetichismo da identidade,
fetichismo da política. Aqui os escritos de Adorno e Kurz nunca fizeram
tanta falta.
Cabe, portanto, reconhecer que
estamos diante de uma aporia: existe uma limitação, interna e absoluta,
de se circunscrever as ações e ideias possíveis num campo de
significações já instituído. Claro que as manifestações, as notas de
repúdio, o confronto, os manifestos, os molotovs, o trabalho de base, as
barricadas e a urna de eleição possuem uma função. Todavia, em que
medida essas ‘formas-de-luta” já não foram incorporadas à uma fantasia ideológica
que nos impede de refletir sobre o que realmente importa: o que fazer
no dia depois? Essa pergunta é na qual a aporia aqui descrita se
assenta. Se o que fazer no dia depois precisa existir num encadeamento
de significados compartilhado, como ele é criado? Como pensar sobre o
fora do capitalismo se o que se tem é a completa ausência de conceitos e
experiências que indiquem um ‘fora do capitalismo’?
O ponto que interessa é exatamente
ressaltar como a esquerda, hoje, está adoecida pelo bloqueio do trabalho
de luto de sua própria derrota. Se mantendo em pé mais como um zumbi do
que como sujeito ativo, totalmente ‘vampirizada’ pelas determinações
abstratas do capital. Isso significa uma redução da atividade militante
e, mais, uma incapacidade de dar as respostas que precisamos – sua forma
incompleta de luto diante das suas derrotas do século XX criou, para o
século XXI, uma esquerda que não é mais esquerda, uma esquerda que
abjura seu próprio fundamento, uma esquerda sem esquerda. O que parece
ser o zeitgeist
de nossa época de cervejas sem álcool, café descafeinado, sorvete sem
gordura, sexo virtual como o sexo sem sexo, e a guerra sem baixas (do
nosso lado, é claro!).[19]
Em Luto e Melancolia[20], Freud
busca esclarecer a diferenciação que existe entre a “natureza da
melancolia” e o “afeto normal do luto”. Segundo ele, a melancolia
configura um processo patológico decorrente de uma incapacidade de se
efetivar o luto. A diferença da clínica psicanalítica entre as duas é
pequena, mas fundamental. Em ambas, diz Freud, é possível encontrar no
indivíduo um profundo abatimento doloroso, a cessação do interesse pelo
mundo exterior, a perda da capacidade de amar e até uma inibição das
atividades cotidianas. O que difere é que na melancolia Freud observa um
rebaixamento da autoestima, levando a recriminações e ofensas à própria
pessoa e chega, até mesmo, a uma delirante expectativa de punição.
Freud ainda vai mais longe: afirma que a escuta clínica de um
melancólico, marcado pelas autoacusações, não se adequam muito a própria
pessoa, mas, talvez, com pequenas modificações, àquela que o doente
ama, amou ou devia amar. Ou seja, as recriminações a si mesmo, são, na
verdade, recriminações a seu objeto amoroso. Essa situação patológica da
melancolia define que o “o próprio Eu se torna pobre e vazio”, carente
de sentido e marcado por uma identificação do Eu com o objeto que foi
abandonado.
Este é o quadro de um luto que não se
completou devidamente, se tornando nocivo. Este “diagnóstico” parece
valer para todas as três esquerdas: melancolia.
Diante das sucessivas derrotas e a incapacidade de se fazer o luto
deste processo, a esquerda em geral se tornou melancólica[21]. O que
Freud descreveu nas suas análises clínicas – como bom psicanalista –
também diz respeito à um quadro de crítica social. Essa esquerda
melancólica – que, sobretudo, evita falar de suas derrotas como vampiro
foge de cruz – passa a fazer autoacusações: ora pela fragmentação, ora
pelo déficit de práxis, ora pelas estratégias. Enfim, a esquerda se torna pobre e vazia.
Em seu estudo, Freud descobre que a
melancolia tem que ver com uma escola objetal ocorrida sobre uma base
narcísica, ou seja, na crença da total semelhança entre o eu e o objeto. Quando se perde este objeto a sensação é que o próprio eu
foi perdido. Se a esquerda escolheu como seu objeto de identificação
algo que se perdeu, à saber, sua capacidade de mudar alguma coisa, lhe
sobra nada deste objeto, exceto uma profunda melancolia de sua derrota.
Mas Freud, mais uma vez como um clínico perspicaz se transforma num
crítico social de primeira ordem, percebe o peculiar desdobramento da
melancolia, em que parece existir a tendência de se transformar em
mania, num estado com sintoma opostos ao dela própria. O que, visto hoje
no quadro da esquerda auto-identificada não seria um total absurdo de
aproximar.
A esquerda não é, portanto, de alguma forma, melancólica (e com sintomas de mania)? Por quê?
A resposta é óbvia: perdemos.
Está é uma visão pessimista, admito
que sim, mas os últimos anos – ou melhor, o último século, não deixa
margem para outra tonalidade a não ser esta.
Desta maneira, parece ser necessário começar a pensar sobre os limites da esquerda, ou do que entendemos de esquerda. O horizonte rebaixado e o encurtamento das expectativas criaram uma forma sui generis de esquerda: devemos lidar com uma escolha-sem-escolha:
entre o fascismo e um capitalismo de rosto humano. Mas, cinicamente,
sabemos que qualquer um dos dois lados não aparece qualquer oportunidade
de emancipação humana.
Se houve um tempo de altas
expectativas, que a construção do comunismo parecia possível (Marx e
Engels, provavelmente viram este espectro rondando
a Europa, mesmo de relance em 1848 e 1870) agora não resta dúvidas que a
autoconsciência do capital jogou a pá de cal neste sonho. Restou, ora
uma ação estatal sob a forma de política pública, ora uma ação direta,
ora o apego as identidades positivas. Todas elas sem um significado
substancial de mudança, sem força o suficiente para mudar a inércia do
trem da história. Parece que o freio de emergência que Benjamin comentou
um dia está avariado e não consegue segurar este trem rumo ao abismo.
É difícil fazer este luto. É difícil descartar a ideia – que no fundo se mantem refém de um certo fetichismo do sujeito[22] – de que alguma classe ou grupo social é o sujeito
de uma transformação, alocando uma responsabilidade histórica de trazer
o comunismo à terra em uma substância que não existe de fato e só
aparece como ilusão transcendental. Mais difícil ainda é perceber que
tudo o que acreditamos servir como medidas intermediárias para a transição entre o mundo em que vivemos em direção ao mundo que preferimos estão falidas[23].
Como nada do capitalismo são flores, mas se desenvolve como uma casa em
chamas, outra dificuldade que temos de enfrentar – talvez a maior delas
– é que realmente o mundo em que vivemos está se colapsando, mas em seu
lugar toma forma um mundo ainda mais desigual, violento que encaminha a
todos para a barbarização da sociedade.
Diante desta realidade que não pode
ser descrita senão como traumática a esquerda melancólica assume a
posição fetichista com o passado. É irônico como aqueles que falam sobre
o futuro de promessas emancipatórias tenham resolvido colocar a
lanterna de sua pequena embarcação na popa. O fetichismo da esquerda
assim aparece: Seja a revolução russa ou a comuna de Paris e até mesmo
povos tradicionais são evocados a ocupar o seu lugar na ciranda de
fantasmas que comprimem os cérebros dos vivos. Assim como Marx[24], no 18 de Brumário, alertou, somos obrigados a viver a história como farsa, buscando novos Lenins, novos communards e novas formas de organização no passado morto.
E, aproximando-se um escriba,
disse-lhe: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores. Respondeu-lhe
Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do
homem não tem onde reclinar a cabeça. E outro de seus discípulos lhe
disse: Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Jesus, porém,
respondeu-lhe: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios
mortos. (MATEUS, 8, 19-22)
Em que consiste o trabalho realizado
pelo luto: O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais
existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com
esse objeto. Esta é a maneira de lidar com a perda do objeto, para que
se possa novamente investir a pulsão em um outro. É deixar que os mortos
sepultem os seus próprios mortos. O eu que havia no momento daquela
identificação com o objeto morre junto com o objeto. A orientação de
cristo é deixar o eu que se identificava com o objeto que morre, afinal,
esta parece ser a condição para um novo eu. Não é exatamente este o
resultado da paixão de Cristo, como uma sombria atualização do que o
próprio Jesus falará anteriormente, agora como se o próprio Deus o
fizesse? Deus, para se fazer a Santíssima Trindade, teve que fazer o
luto do Deus que morria na cruz. Só depois deste luto, de Deus abandonar
Jesus na cruz é que foi possível aparecer a Santíssima Trindade em sua
forma mais sublime.
O ensinamento bíblico pode ser
transferido para que a esquerda aprende algo com ele. As três formas de
organização da esquerda se acabaram. Muito embora a maior parte ainda
insista em seguir os puídos espantalhos, é preciso reconhecer o que
perdemos. Antes, é preciso reconhecer que perdemos. Assim, deixar que
nós, os mortos da esquerda, enterremos nossos mortos, já que, só assim,
parece haver espaço para alguma reformulação da prática e ação rumo a
transformação. Parece que, talvez, este seja um dos grandes insights que Marx lança no 18 de Brumário.
Cada momento histórico, para ser definitivamente genuíno, “precisa
criar para si mesma o ponto de partido revolucionário”. Como afirma Marx
logo no começo do seu texto, os homens fazem a sua própria história,
mas não a fazem de livre e espontânea vontade. O passado transmite as
condições para o presente. “Como um pesadelo que comprime o cérebro dos
vivos” – diz Marx[25]. Isso
significa que as possibilidades do presente são dadas pelo passado. E,
com isso, a história se repete. Se repete, pois, o campo simbólico dado,
o que é necessário para encadear discursivamente uma ação e uma
determinada prática, já nos são legados nelas “gerações mortas do
passado”. Existe uma limitação, interna e absoluta, de se circunscrever
as ações e ideias possíveis num campo de significações já instituído e
herdado. A revolução, então, é mudar esse grande-Outro. Portanto, o que
necessitamos é do ato em si. Que ele seja capaz de revirar as
coordenadas do Grande-Outro (discurso hegemônico)[26]. Só é possível o ato em si se destituído for o lugar do objeto perdido. Evidente, o que Freud[27] explica
é, exatamente, que o investimento do eu em outro objeto e a elaboração
simbólica das perdas serem possíveis e evidenciadas no trabalho de luto e
não na melancolia.
Voltando ao recuo, a esquerda, se
quiser se colocar em posição de fazer algo novo tem que aceitar as
consequências e implicações de sua derrota. O recuo absoluto que Hegel
usara marginalmente é crucial na construção de sua lógica: “designa a
coincidência especulativa dos opostos no movimento pelo qual uma coisa
emerge de sua própria perda”. Como operar esse movimento que possa
emergir algo de sua própria perda? Freud, ao tratar do luto pode ser de
serventia. Assim, “dado que a esquerda quer mudar a sociedade à qual
pertence, então o melhor índice de seu acúmulo de força é sua capacidade
de mudar aquilo que, na própria esquerda, marca sua inserção social” e
para que isso seja feito, é pressuposto uma forma madura de se lidar
com a perda do objeto amado, deslocar a libido para um outro objeto e, a
partir daí, iniciar uma nova construção do Eu.
O momento mais fundamental então
está, neste momento de luto, investir na produção de novas relações e,
para isso, é necessário criar um espaço de experimentação, mais do que
espaços de imaginação de mundos por vir. Para experimentar algo é
necessário ter os instrumentos necessários para o fazer. Um microscópio
de Pasteur não ajuda em nada sobre a física quântica. Da mesma forma, o
mundo mudou, a própria forma de sobrevivência do capital mudou, o mundo
do trabalho mudou, as formas de subjetivação mudaram. Temos que mudar
também o aparato pelo qual se organiza a experiência de esquerda, senão,
vamos estar fadados a perder de vistas exatamente o que pode nos
salvar.
O que resta fazer é o luto, em seus
tons sombrios de cores, das vitórias negadas. Isso não significa o recuo
triste para nossas casas, o uso de braçadeiras pretas e véus escuros.
Fazer o luto não é não fazer nada. Pelo contrário. É saber que muito do
que orientou nosso pensamento e ação de esquerda não faz mais sentido
hoje. É preciso largar destes objetos, deixar os próprios mortos
enterrarem seus mortos, e investir em novas experiências. Mas isto só
será possível na medida em que formos capazes de pensar e criar
organizações coletivas capazes de fazer circular o afeto – angustiante –
do luto.
A esquerda está morta! Vida longa à esquerda!
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[1] Sófocles, 1999 [420 a.C.] Antígona (Porto Alegre: L&PM); 2007 [420 a.C.] Édipo em Colono (Porto Alegre: L&PM).
[2] “Por esquerda, entendo uma oposição radical ao capitalismo”. Clark, 2013 [2012], Por uma esquerda sem future (São Paulo: Ed. 34), p.18.
[3] Fukuyama, 1992 The end of history and the last man (Nova York: Free Press)
[4] Kurz, 2001 [1997] Ler Marx. Disponível em: http://www.obeco-online.org/livro_ler_marx.htm
[5] Cf. Paraná, 2017. Tres dimensõe da tragédia da esquerda no início do séulo XXI. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/29/tres-dimensoes-da-tragedia-da-esquerda-no-inicio-do-seculo-xxi/
[6] Safatle, 2018. Só mais um esforço (São Paulo: três estrelas).
[7] Cf. Žižek, 2009. The sublime object of ideology. (Nova York: Verso).
[8] Telles, 1998. No fio da navalha. Polis, fev-mai.
[9] Arantes, 2004. Zero à esquerda (São Paulo: Conrad).
[10] Arantes, 2004, p.179. op cit.
[11] Arantes, 2004, p.179. op cit.
[12] Marx, 2012 [1875]. Crítica ao programa de Gotha (São Paulo: Boitempo).
[13] Arantes, 2014. O novo tempo do mundo. (São Paulo: Boitempo).
[14] Žižek, 2012. Vivendo no fim dos tempos. (São Paulo: Boitempo) p.105.
[15] Adorno; Horkheimer, 2010 [1944], Dialética do Esclarecimento. (São Paulo: Zahar) p.186.
[16] Cf. Arantes, 2004 op cit/
[17] Fernandes, 2012. Crisis of práxis: depoliticisation and left fragmentation in Brazil (Tese). Ottawa: Carleton University).
[18] Badiou, 2012. A hipótese comunista (São Paulo: Boitempo).
[19] Žižek, 2003. A cup of decaf reality disponível em: http://www.lacan.com/zizekdecaf.htm
[20] Freud, 2010 [1915]. Luto e melancolia. (São Paulo: Cia das Letras)
[21] Fernandes, 2012 op cit.
[22] Cf. Bonifácio, 2017. Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e a necessidade do mal no Brasil contemporâneo (dissertação). Belo Horizonte: UFMG.
[23] Sobre isso, lembra-nos Kurz,
como o significado de “reforma”, era usado, sobretudo, pela esquerda
para referir a conquistas para a maioria da população se transformou no
principal aparato para a ação da direita. Basta ver as recentes reformas
trabalhistas e reformas da previdência que ocorrem em todo o mundo e,
em especial destaque, aqui desde o Brasil.
[24] Marx, 2011 [1851] 18 de Brumário de Louis Bonaparte (São Paulo: Boitempo) p.25.
[25] Marx, 2011 [1851], op cit, p.25.
[26] Cf. Žižek, 2012 [2010], op cit.
[27] Freud, 2010 [1915], op cit.
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