disse:
Out of Bounds, 2015, Ibrahim Mahama (Foto: Divulgação/Alex John Beck/Artsy)
Quando o mundo está de pernas para o ar e há quem ranja os dentes,
babe de ódio ou até enalteça armas de fogo na vida política, não raro
imagina-se que a melhor forma de resistência seja pender, tão rápido
quanto possível, para outro lado, no qual ainda restam intactos sinais
de bom-senso e sanidade. Renuncia-se às sutilezas, aos detalhes, à
complexidade e aceita-se de pronto tudo que preserve feições
civilizadas. Dito de forma sucinta: ante circunstâncias tão insólitas,
advoga-se a irrelevância das minúcias. Primar pela reflexão cuidadosa ou
atentar para pequenas diferenças emerge, então, como sinal de
futilidade – não é incomum que tenazes análises da situação sejam vistas
como veleidades. O que passa a interessar é um bem maior, contrário a
qualquer marca de barbárie.
Falar sobre arte parece ainda mais grave – luxo descabido, disparate
excêntrico. Violar juízos dessa natureza, porém, é uma das razões deste
texto. Outra é uma aposta de que o gesto de zelar pelos pormenores
torna-se, em si, espécie de antídoto contra a barbárie. Igualar
arbitrariamente diferenças ou simplificar dificuldades implica renunciar
à árdua tarefa de garimpar os mais preciosos afetos e ideias – o medo
do pior pode levar tudo de roldão, até as melhores coisas.
Falemos, pois, sobre arte. Tratemos, em verdade, de aspectos ainda
mais particulares: certas sutilezas psíquicas em processos de produção e
recepção de obras artísticas e algumas diferenças formais atreladas às
peças de arte que resistem à barbárie ou que se pretendem mesmo
revolucionárias.
*
Depois de ter sido duramente criticado por Theodor Adorno em sua Teoria estética (1970), o conceito freudiano de sublimação atravessa as balizas exclusivamente clínicas da psicanálise; ainda que atacado, penetrou irreversivelmente o campo da Estética.
O conceito de sublimação era, como Freud fora em termos de arte,
anacrônico até mesmo para as primeiras décadas do século 20. Guardava
sabores conservadores que, junto ao ar novo, também compunham o gosto da
Belle Époque. Seu mérito, de todo modo, foi radiografar, pela
primeira vez, detalhes da engenharia psíquica no ato da criação ou da
recepção da obra.
Mas traçar o conceito de sublimação não foi o último passo dado por
Freud no campo da Estética. Logo após a guerra, Freud desenhou uma nova
categoria que, ao contrário da sublimação, vibra potente ainda hoje: das Unheimliche.
Talvez não seja exagero considerar que o grupo de críticos americanos, reunido em torno das publicações da revista October,
seja aquele que mais sistematicamente utilizou conceitos da psicanálise
para suas análises da arte contemporânea. Coordenada por Rosalind
Krauss e Annette Michelson, a revista conta, entre outras, com a
contribuição de Hal Foster, proeminente nome da crítica de arte. A
articulação entre obras artísticas e as teorias freudiana e lacaniana
abriu caminhos verdadeiramente inéditos no campo da Estética. Entre o
vasto trabalho de Hal Foster, o fenômeno unheimlich ganha lugar especial no estudo sobre o surrealismo em Beleza Compulsiva.
Seguindo Freud, Foster percebe a íntima relação entre trabalhos surrealistas e a experiência do trauma: “se o maravilhoso como leitmotiv do surrealismo envolve o Unheimliche, e se a experiência unheimlich, como o retorno do reprimido, envolve trauma, o trauma deve, de alguma forma, estar no interior da arte surrealista […]”.
Na psicanálise, o trauma está ligado à temporalidade (Nachträglichkeit)
e ocorre em dois estágios: seguindo a ordem cronológica, o tempo 2
ocorre antes e se refere às marcas do recalque originário, e o tempo 1 é
o do après–coup ou o da nachträglich
(só-depois). O trauma é a única maneira de estabelecer elos entre
impressões mnemônicas do infantil e a força do presente. Ou seja, para
que seja possível conceber alguma ordem temporal, o tempo 1 – que ocorre
só-depois – deve incidir sob a forma de um golpe sobre os nós psíquicos
do tempo 2 – que ocorre cronologicamente antes. Só pelo golpe do trauma
estabelece-se a lógica psíquica do antes e depois, só ele torna possível a articulação de uma representação temporal.
Como efeito do trauma, muitas obras expressionistas, dadaístas ou
surrealistas embaralharam a narrativa temporal que prevalecia na
tradição e pressionaram antigos contornos formais e discursivos para
novas configurações. Daí que seja possível observar como a engrenagem
psíquica entre aqueles que produzem obras expressionistas ou
surrealistas e aqueles que com ela se defrontam está muito próxima da
descrita por Freud em das Unheimliche.
Não é difícil notar, que o recurso do estranhamento traumático
ainda integra fortemente obras artísticas contemporâneas. Basta lembrar
de alguns dos elementos agrupados por Freud em seu texto para
reconhecê-los também no campo das artes – o duplo, o palhaço, a boneca,
os autômatos, os fantasmas, os animais, a vagina etc. Por mais
diferentes que sejam, Eduardo Berliner, Cindy Sherman, irmãos Chapman,
Jane Alexander são alguns artistas que poderiam entrar no registro unheimlich.
Cenas ou imagens que provocam asco, terror, medo, repulsa, mas que ao
mesmo tempo atraem o olhar e incitam à reflexão – ao contrário do que
atestava Gotthold Ephraim Lessing, essas peças grotescas ou monstruosas
impactam e exigem mais da imaginação justamente ao escancararem
violentamente os limites do repertório previamente existente.
O vigor dessas obras é incontestável, mas talvez caiba hoje a pergunta: como elas, guardando esse teor vanguardista de choc
traumático, se posicionam no cenário contemporâneo da produção
artística? Talvez quem melhor expresse esse impasse seja Ricardo
Fabbrini, que inspirado nos escritos de Otília Arantes, expõe a seguinte
passagem:
Não é possível restituir à imagem o seu poder de choc […] no sentido da modernidade artística, pois no correr do tempo esse efeito de choc rotinizou-se, perdendo assim todo efeito emancipatório – ou seja, “não liberou os potenciais cognitivos supostamente aprisionados nos domínios confinados da cultura afirmativa”. A “estética do choc”, em síntese, não configurou […] “o embrião materialista de um novo iluminismo” visado pelas vanguardas artísticas internacionais, “que finalmente desaguaria na conformação de uma ordem social superior”, a Utopia.
Vanguardas e modelo etnográfico: questões atuais
Levando em conta o quadro apresentado, cabe a questão: será mesmo que
tudo o que restou hoje foi o fracasso das vanguardas? Voltemos alguns
passos antes de responder à essa pergunta. Alguns críticos (Arthur Danto
e John Roberts) sugerem que, após a proliferação dos ready-made nos anos 1960, finalmente tivemos o que Hegel antecipou ainda no século 19: o fim da arte.
Para John Roberts, nas últimas décadas esse anúncio tornou-se uma
espécie de fantasma tenebroso. Em Hegel, argumenta, o fim da arte
corresponderia a dois pensamentos, nenhum deles muito terrível: 1) sob
novas condições pós-românticas, a força centrípeta anteriormente ligada à
beleza e à mimesis acaba liberada para a abstração
(conceituação) nas artes; 2) destrói-se qualquer noção de arte ligada a
algo natural e, com isso, nasce um idioma próprio ao reino artístico.
De qualquer maneira, serenidade não é o que acompanha a ideia de uma
arte pós-histórica. Ora vista como libertação, ora como pesadelo de
declínio absoluto, o fim da arte é tópico inebriante, do qual
dificilmente se escapa.
Fugindo dos termos articulados por John Roberts ou Arthur Danto e,
por outro lado, admitindo como incontornável o anúncio sobre o “fim da
arte”, impasses atuais podem ser divididos da seguinte maneira: 1)
aqueles que interpretam o “fim da arte” como algo emancipatório,
exaltando o “pluralismo estético” e o fim da lógica da autoria como
conquistas a serem expandidas até a implosão do sistema capitalista,
baseado no imperialismo de viés identitário e; 2) outros que veem advir,
com o fim da arte, um percurso condizente com os interesses do mercado
e, portanto, um retrocesso em relação ao momento anterior, no qual
estava estabelecida a autonomia da arte. Vejamos melhor esses dois
diferentes prismas.
Pela ótica daqueles que comemoram a queda da redoma de vidro que
preservava a arte em sua condição de autonomia formal, bem como a
suposta eliminação dos últimos restos heroicos do artista, fundados na
ideia de autoria-criadora, a arte está a poucos passos de integrar-se
aos destinos políticos e sociais compartilhados pelos demais cidadãos do
mundo. Fazer cada vez mais parte da experiência cotidiana e do domínio
da técnica não-artística seria, por conseguinte, caminho desejável.
Inversamente a esse viés, há aqueles que veem nas ruínas da l´art pour l´art um fatal desastre, do qual só pode resultar a mais completa decadência.
Trocando em miúdos: no primeiro caso, a perda da autonomia da arte é
vista como conquista, apesar do mercado de arte; no segundo, trata-se de
recuperar a força inerente à autonomia da arte, supondo sua validade,
enquanto o sistema burguês persiste em vigor. Seguindo este último
argumento, a resistência aos moldes atualmente defendidos – contrário ao
caráter heroico do artista e favorável a certo “pluralismo estético” –
se deve ao pressuposto de que ainda haveria um poder da arte, quando
preservado o seu lugar de autonomia. Só deste espaço isolado, supõe-se,
seria possível forçar a tensão negativa contra o sistema burguês e
assegurar a força revolucionária capaz de se opor a ele.
Do outro lado, o “pluralismo estético” é tratado como uma das
realizações mais importantes do período pós-histórico nas artes. Como
Andy Warhol, Arthur Danto comenta que todos os estilos são de igual
mérito. Nenhum deles poderia se sobrepor ao outro. Claro que reconhecer
tal pluralismo não significa limitar o papel da crítica – a questão do
“pluralismo estético” se opõe, em verdade, à normatividade inerente à
lógica ainda presente no período das vanguardas. Com elas, era comum que
um estilo ou um manifesto sempre se sobrepusesse a outros. Compreender a
arte como pós-histórica, como fez Arthur Danto, implica substituir a
noção de sucessão temporal pela ideia de simultaneidade.
Nessa espécie de relativismo cultural e de valores, a ideia de
universalidade se dilui e, por outro lado, abrem-se canais inéditos para
a arte de outras culturas, distantes dos cânones colonialistas
ocidentais.
Dentro desse espectro, O artista como etnógrafo (1993),
escrito por Hal Foster há mais de vinte anos, preserva sua vigorosa
atualidade. Out of Bounds de Ibrahim Mahama (2017), exibido na última
Bienal de Veneza ou Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016) de Bené Fonteles na
última Bienal de São Paulo, são apenas dois exemplos de trabalhos
recentemente produzidos com estratégias e temas que poderiam ser
abrangidos pela categorização estabelecida por Hal Foster. Ou seja, a
técnica etnográfica ou antropológica permaneceu sólida nas artes
visuais.
Essa reviravolta etnográfica na arte contemporânea, marcada
principalmente pelos estudos pós-coloniais, pelos debates em torno do
biopoder, pela segunda e terceira ondas feministas e movimentos LGBT,
assim como pela pesquisa material no mundo artístico, não se restringe
mais às instituições clássicas (estúdio, galeria, museu etc.) e
amplia-se como uma rede discursiva de práticas voltadas para outras
subjetividades e comunidades, bem como intervenções em espaços
geográficos inusitados. O texto de Hal Foster é uma tentativa de
delinear um novo paradigma, correspondente atual ao que foi o modelo da
esquerda avançada, desenhado por Walter Benjamin em O autor como produtor (1934).
Foster expõe a ideia do artista como um etnógrafo trabalhando em nome
de um Outro cultural ou étnico. Para Foster, “embora possa parecer
extremamente sutil, essa troca de um assunto definido em termos de
relação econômica por outro definido em termos de identidade cultural é
bastante significativa”.
Parece que, como Benjamin queria, a arte transbordou, em muitos casos, os limites circunscritos da l´art por l´art.
Tornou-se um modo de estudo cultural. Depois das ousadas rupturas das
vanguardas que atacavam critérios e cânones nascidos na Europa, o campo
artístico ousou ultrapassar suas fronteiras, tendo como norte essa
modalidade de pesquisa, a etnográfico-antropológica.
O problema do modelo etnográfico de produção artística reside no fato
de que ele pode ser a mera repetição do trauma e não sua ruptura
temporal, como era a produção vanguardista de teor unheimlich.
Ou seja, ao invés de a arte etnográfica abrir o circuito temporal dentro
da lógica do trauma, para rearticular traços reprimidos, essas
tentativas de lidar com o passado oprimido repetem inadvertidamente a
violência traumática no presente.
Dito com todas as letras: o viés etnográfico pode ser uma reiterada
colonização traumática do Outro – mulheres, povos indígenas, africanos,
LGBTs. Apresentá-lo como um objeto exótico dentro das instituições,
cujos quadros foram criados para promover obras clássicas ou de
vanguarda tanto do período europeu quanto do tardio, pode ser não apenas
regressivo, mas extremamente violento. O risco não é menor quando
artistas-mulheres ou artistas-africanos, por exemplo, recebem uma
aura-fetiche ao entrarem nos sistemas de exposição e mercado artísticos.
Essas poderiam ser, aliás, algumas das razões pelas quais existem
resistências legítimas e justificadas ao modelo etnográfico nas artes
visuais.
Recentemente, por exemplo, Ernesto Neto foi à Bienal de Veneza
acompanhado por indígenas para fazer o que chamou de “ação coletiva” em
uma das mais regressivas e violentas “obras”. Não se trata de exceção –
muitas seguem esse método. O problema pode ser sintetizado nos seguintes
termos: por um lado, é feita uma tentativa de restaurar nos ambientes
artísticos uma imagem ou situação anterior à incidência da opressão –
tarefa impossível, uma vez que o trauma já aconteceu (colonização,
genocídio, violência misógina, racismo, etc.). Por outro lado, a defesa
de um retorno ao modelo disruptivo e revolucionário das vanguardas não
deixa de ser também uma posição conservadora, dado que a insurreição
inerente às obras estava visivelmente voltada contra os códigos
burgueses europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Como disse Peter P. Ekeh sobre a África: “Nosso presente pós-colonial
foi moldado por nosso passado colonial”. Nessa breve frase, fica claro
como não é possível simplesmente apagar o que já aconteceu, assim como
também não é possível voltar às velhas estratégias subversivas, quando
os problemas já foram colocados sob novos prismas – o que foi mérito,
diga-se, de trabalhos vanguardistas.
Daí que o olhar tem que ser ainda mais fino. Não se trata, então, de
descartar o modelo etnográfico. Ainda que guarde alguns problemas, ele
preserva uma potência vigorosa nas estratégias artísticas atuais. Por
outro lado, deve-se repensar a função do trauma incrustado nas bases
formais das obras artísticas/intelectuais.
Em O autor como produtor (1934), Benjamin trata como
infrutífera a velha polêmica em torno das relações entre forma e
conteúdo – permito-me aqui ousar outro prisma. Longe de ser infecunda, a
articulação dialética entre forma e conteúdo exige que se considere
esses dois elementos separada e alternadamente, observando atentamente
ora um, ora outro em suas intenções, mediações e contradições. Com isso,
são engendradas as cruciais questões: a forma de uma determinada obra
contradiz o conteúdo revolucionário que ela pretende trazer? A intenção
revolucionária do artista é observável também nas mediações da produção e
na forma assumida pelo trabalho? A forma de exposição da obra, por sua
vez, elimina ou fortalece aquela intenção?
Como diz Walter Benjamin: o trabalho [do intelectual ou do artista
revolucionário] “não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas
sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção.”. Acresce ainda que a
“utilidade organizacional [das obras bem como de suas técnicas de
produção] não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. […]. Aliás,
diz ele, “a melhor tendência é falsa se não prescreve a atitude que o
escritor deve adotar para concretizar essa tendência”. Longe da
propaganda barata, o artista ou intelectual “só pode prescrever a
atitude [revolucionária] em seu próprio trabalho, isto é, escrevendo [ou
produzindo obras de arte].
Justamente essa passagem contradiz a afirmação, feita por Benjamin,
sobre o caráter estéril do debate forma-conteúdo. Dito de maneira
simples: tratar da técnica implica necessariamente observar o caráter
formal assumido por uma obra e sua relação com o conteúdo nela
trabalhado. Forma emerge aqui como resultado da própria técnica ou meio
de produção da obra. Se, como diz Benjamin, é na técnica de produção que
o artista ou o intelectual tem que operar para que a obra seja tida
como efetivamente revolucionária, é necessário que o olhar crítico se
volte detidamente para a forma assumida por uma peça de arte ou para a
obra escrita.
Deixar de olhar para os meandros da produção e tratar a obra somente
enquanto produto último são atitudes que também trazem certos riscos. Um
deles é a estratégia equivocada de fazer da “miséria um objeto de
consumo” ou pior: transformar “em objeto de consumo a luta contra a
miséria”. Ao escrever essa observação, Benjamin tinha em mente artistas
da Neue Sachlichkeit que, em sua visão, exemplificam bem a
aparência revolucionária a serviço da diversão ou da distração burguesa.
Nesse caso, a vontade de decidir no interior da luta política
converte-se em artigo ofertado como objeto de consumo – nada diferente
disso poderia ser dito sobre algumas obras contemporâneas.
Por isso, seria necessário analisar singularmente cada obra, vendo-a
em relação ao conjunto de trabalhos do artista e, ainda, como tal
produção se articula no campo no qual se situa. Tudo isso em zonas de
atritos e tensões dialéticas permanentes.
Há um elemento suplementar, porém, que a estratégia etnográfica
introduziu no campo cultural contemporâneo e que definitivamente deve
ser levado em conta: a voz concreta daqueles que antes integravam as
obras apenas como objetos-temas.
Para dizer da forma mais simples possível: pode ser que, vivo hoje,
Paul Gauguin tivesse que responder a delicadas questões levantadas pelos
espectadores, representados na própria pintura. Questões sobre
colonização, sobre lugar de fala e de representação, sobre limites da
atual configuração acadêmica de arte e de produção intelectual estão na
ordem do dia. São incontáveis os exemplos recentes de embates entre
público e artista/intelectual (tensões como as vividas a partir dos
debates entre Daniela Thomas e Juliano Gomes, Dana Schutz e Hannah
Black, Mirna Anaquiri Kambeba Omágua-Yetê e Lúcia Hussak van Velthem,
Erinma Ochu e Judith Butler são apenas poucos exemplos).
Falas que brotam da plateia de forma profundamente intensa e
vibrante, muitas delas cheias de dores e marcas traumáticas que
ultrapassam a experiência singular do enunciador. Palavras às vezes
desarticuladas, outras vezes visceralmente engajadas, trazem a carga de
histórias compostas de feridas atuais e longínquas – catástrofes
incalculáveis. Do lado do palco, a inquietação não é menor – ante os
limites de suas categorias, de seus olhares, de suas palavras, aqueles
que detêm poder de fala espantam-se, defendem-se, fragilizam-se,
estremecem. E desde que prevalece o “pluralismo estético”, vozes antes
inauditas irrompem e ganham os palcos, mostrando os limites vergonhosos
de algumas análises que preservam resquícios colonizadores, misóginos ou
racistas. É verdade que desencontros acontecem, é verdade que os
endereços das falas nem sempre são precisos, é verdade que são momentos
delicados, mas vamos mesmo querer defender outros modelos depois de
termos alcançado patamar tão fundamental?
O estrangeiro como horizonte
Correspondentemente ao campo etnográfico da Estética, a esfera
psíquica talvez precise ser reajustada, agora em outra inscrição,
diferente da noção freudiana de Unhemliche. Surge, ainda no
velho Freud, outra categoria que, entrelaçada ao âmbito estético,
permite observar a engenharia psíquica nos atos de recepção e produção
artísticas na atualidade: o estrangeiro, tal como aparece em O homem Moisés e a religião monoteísta. Com ela, ao contrário do trauma psíquico ante o choc
da imagem, há o gesto de encarar fantasmas, arriscar passos imprecisos
em territórios indeterminados, fazer soar, ainda incerta, uma voz de
contestação – como é cada palavra do espectador que se dirige ao
autor/artista ante as tensões que brotam a partir da obra. São ímpetos
de uma racionalidade oriunda das marcas do inconsciente – eles penetram
espaços fronteiriços, atuam em tempos anacronicamente sobrepostos e
articulam balbucios que se esforçam por traduzir os mais intensos afetos
e marcas históricas. A estrutura formal dessas manifestações não é
menor por carregar, junto de si, sua precariedade – ao contrário, seu
vigor está alocado exatamente aí.
Conceder estatuto de cidadania aos rudimentos da obra e ao que dela
ainda vibra impreciso é uma das características do caráter etnográfico,
que opera pelas funções do estrangeiro pensado por Freud. Do lado do
espectador, fagulhas e tensões na recepção das obras são partes centrais
do próprio encontro com elas – como, aliás, já previra, de certo modo,
Marcel Duchamp. Nesses registros, cabe a cada um abandonar elementos
narcísicos e arriscar formas inconsistentes daquilo que estremece
desconhecido em nós e na cultura que sustenta pilares, muito
frequentemente, nada confiáveis.
Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP
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