Eu vim ao Rio para um evento no Museu do Amanhã. Então descobri que não tinha mais passado
Então descobri que não tinha mais passado.
Diante de mim, o Museu Nacional do Rio queimava.
O crânio de Luzia, a “primeira brasileira”, entre 12.500 e 13 mil
anos, queimava. Uma das mais completas coleções de pterossauros do mundo
queimava. Objetos que sobreviveram à destruição de Pompeia queimavam. A
múmia do antigo Egito queimava. Milhares de artefatos dos povos
indígenas do Brasil queimavam.
Vinte milhões de memória de alguma coisa tentando ser um país queimavam.
O Brasil perdeu a possibilidade da metáfora. Isso já sabíamos. O
excesso de realidade nos joga no não tempo. No sem tempo. No fora do
tempo.
O Museu Nacional em chamas. Um bombeiro esguichando água com uma
mangueira um pouco maior do que a que eu tenho na minha casa. O Museu
Nacional queimando. Sem água em parte dos hidrantes, depois de quatro
horas de incêndio ainda chegavam caminhões-pipa com água potável. O
Museu Nacional queimando. Uma equipe tentava tirar água do lago da
Quinta da Boa Vista. O Museu Nacional queimando. A PM impedia as pessoas
de avançar para tentar salvar alguma coisa. O Museu Nacional queimando.
Outras pessoas tentavam furtar o celular e a carteira de quem tentava
entrar para ajudar ou só estava imóvel diante dos portões tentando
compreender como viver sem metáforas.
Brasil, é você. Não posso ser aquele que não é.
O Museu Nacional queimando.
O que há mais para dizer agora que as palavras já não dizem e a realidade se colocou além da interpretação?
Diante do Museu Nacional em chamas, de costas para o palácio, de frente para onde deveria estar o povo, Dom Pedro II
em estátua. Sua família tinha tentado inventar um país e o fundaram
sobre corpos humanos. Seu avô, Dom João VI, criou aquele museu no
Palácio de São Cristóvão. Dom Pedro II está no centro, circunspecto, um
homem feito de pedra, um imperador. Diante da parte esquerda do museu,
indígenas de diferentes etnias observam as chamas como se mais uma vez
fossem eles que estivessem queimando. Estão. É o maior acervo de línguas
indígenas da América Latina, diz Urutau Guajajara. É a nossa memória
que estão apagando. É o golpe, é o golpe. Poderiam ter salvo, e não
salvaram, ele grita.
Nunca salvaram. Há 500 anos não salvam.
As costas de Pedro ferviam.
Quando soube que o museu queimava, eu dividi um táxi com um
jornalista britânico e uma atriz brasileira com uma câmera na mão. “Não é
só como se o British Museum
estivesse queimando, é como se junto com ele estivesse também o Palácio
de Buckingham”, disse Jonathan Watts. “Não há mais possibilidade de
fazer documentário”, afirmou Gabriela Carneiro da Cunha. “A realidade é Science Fiction.”
Eu, que vivo com as palavras e das palavras, não consigo dizer. Sem
passado, indo para o Museu do Amanhã, sou convertida em muda. Esvazio de
memória como o Museu Nacional. Chamas dentro de todo ele, uma casca do
lado de fora. Sou também eu. Uma casca que anda por um país sem país.
Eu, sem Luzia, uma não mulher em lugar nenhum.
A frase ecoa em mim. E ecoa. Fere minhas paredes em carne viva.
“O Brasil é um construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.”
A frase reverbera nos corredores vazios do meu corpo. Se a primeira brasileira incendiou-se, que brasileira posso ser eu?
O que poderia expressar melhor este momento? A história do Brasil
queima. A matriz europeia que inventou um palácio e fez dele um museu.
Os indígenas que choram do lado de fora porque suas línguas se incineram
lá dentro. E eu preciso alcançar o Museu do Amanhã. Mas o Brasil já não
é o país do futuro. O Brasil perdeu a possibilidade de imaginar um
futuro. O Brasil está em chamas.
O Museu Nacional sem recursos do Governo federal. Os funcionários do
Museu Nacional fazendo vaquinha na Internet para reabrir a sala
principal. O Museu Nacional morrendo de abandono. O Museu Nacional sem
manutenção. O Rio de Janeiro. Flagelado e roubado e arrancado Rio de Janeiro. Entre todos os Brasis, tinha que ser o Rio.
Ouço então um chefe de bombeiros dar uma coletiva diante do Museu
Nacional, as labaredas lambem o cenário atrás dele. O bombeiro explica
para as câmeras de TV que não tinha água, ele conta dos caminhões-pipa. E
ele declara: “Está tudo sob controle”.
Eu quero gargalhar, me botar louca, queimar junto, ser aquela que
ensandece para poder gritar para sempre a única frase lúcida que agora
conheço: “O Museu Nacional está queimando! O Museu Nacional está
queimando!”.
O Brasil está queimando.
E o meteorito estava dentro do museu
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