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segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O liberalismo escravocrata de João Amoêdo, por Justificando




Foto: João Amoêdo/Facebook
A liberdade do homem livre é a causa da grande opressão dos escravos”, concluiu Adam Smith em suas Leituras da Justiça. Na mesma ocasião, o pai do liberalismo econômico não se acanhou em expor a nudez monárquica dos adeptos da vanguarda iluminista de sua época, chegando a afirmar que a escravidão poderia ser mais facilmente suprimida em um governo despótico que em um governo livre ou democrático cujos organismos representativos estão exclusivamente reservados aos proprietários brancos: “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vão deixar passar uma medida desfavorável a eles”. Ao tratar do assunto, o historiador Domenico Losurdo dá mais uma volta no parafuso ao questionar se poderia ser considerado um liberal alguém que, numa situação específica, exprime sua preferência por um governo tirânico.
Todos os homens foram criados iguais”, grita a Declaração de Independência dos EUA. É necessário “salvaguardar para nós mesmos e para os nossos descendentes o dom da liberdade”, declara a Constituição de 1787 do mesmo país. Uma leitura menos preguiçosa, contudo, é suficiente para fazer notar que ainda no seu artigo 1º há a diferenciação entre “homens livres” e o “resto da população” (otherpersons). Quem seria este “resto da população”? Os escravos.
O domínio mais opressor jamais exercido pelo homem sobre o homem, fundado na mera distinção de cor, se impõe no período mais iluminado”. Um entusiasta de milícias como o MBL, herdeiros morais dos Confederados do Sul, poderia muito bem atribuir esta frase a algum daqueles que costumam chamar de “extrema esquerda” em suas redes sociais. Seu autor, no entanto, é ninguém menos que James Madison, pai da Constituição norte-americana. O próprio Madison era proprietário de escravos, assim como boa parte dos chamados “Pais Fundadores”.
A ascensão do liberalismo e a difusão da mão-de-obra escrava com fundamento na raça estão umbilicalmente ligadas. Não há incompatibilidade moral ou filosófica entre a escravidão e o arcabouço filosófico liberal. “Meus sentimentos são do tamanho de uma moeda”, explica um despachante de escravos em uma emblemática cena de 12 Anos de Escravidão, vencedor do prêmio de melhor filme no Oscar de 2014. “O homem faz o que quer com sua propriedade”, brada Edwin Epps, senhor de escravos que fundamenta seu direito a ser proprietário de gente tanto na lei como na Bíblia.
As experiências históricas levam à conclusão de que a defesa da liberdade por parte de liberais quase sempre se deu de acordo com as conveniências políticas e econômicas das classes dirigentes de suas épocas, conforme já apontamos em outras[1] ocasiões[2].
John Locke, enquanto defendia a liberdade com entusiástico radicalismo em seus escritos, investia em ações da Royal African Company, monopolista do tráfico de escravos.
Em 1819, um projeto de lei apresentado no parlamento inglês que proibia o trabalho de crianças de 9 anos de idade e restringia a 12 horas por dia o trabalho de crianças de 10 a 16 anos era confrontado pelos liberais da Câmara dos Lordes por atentar contra a “liberdade de contrato”. Em 2008, o então presidente dos EUA, George W. Bush, defendeu a estatização do sistema financeiro norte-americano e as injeções de bilhões de dólares para salvá-lo como uma medida de livre mercado.
Aqui no Brasil, os principais idealizadores da Revolução Constitucionalista de 1817 pretendiam, seguindo a boa tradição norte-americana, implantar uma república na qual a escravidão ainda permaneceria viva e forte.
A própria abolição formal da escravidão foi realizada na esteira dos interesses da elite econômica e do sufocamento da proposta de reforma agrária. A implantação de um imposto sobre terras improdutivas e a desapropriação em favor de ex-escravos eram bandeiras defendidas por líderes abolicionistas como André Rebouças e Joaquim Nabuco. A finalidade era óbvia: não fazer da abolição um mero formalismo, conferindo, assim, um mínimo de condições para que os recém-libertos não fossem despejados à míngua nas ruas. Liberais, republicanos e abolicionistas moderados foram contra, fechando com latifundiários para que a abolição não mexesse no modelo excludente previsto pela Lei de Terras de 1850.
As conclusões de Adam Smith reproduzidas linhas acima explicam, um pouco, o desalento de Nabuco com a república que acabara de nascer.[3]

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