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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A nova obscuridade , por Rubens R. R. Casara.

A nova obscuridade
Aliança entre neoliberalismo e neoconservadorismo faz analistas identificarem 'revolução conservadora' em curso (Reprodução)

Em 1985, Jürgen Habermas publicou na Alemanha um livro intitulado A nova obscuridade – pequenos artigos políticos. Dentro do projeto de enfrentamento político e teórico das ameaças à democracia, o autor procurou refletir sobre as tensões e os problemas de um período marcado por uma crise do Estado social, permanências de um passado autoritário, políticas de rearmamento e repressões policiais a manifestações e protestos públicos. Todos esses sintomas do que Habermas chamou de “nova obscuridade” estão presentes e potencializados no Brasil de hoje.
Aqui o quadro é bem mais grave. Nunca chegamos a construir um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social e, hoje, vivemos um momento de profunda regressão social, política e ética. O sistema de proteção dos direitos individuais e sociais foi extremamente fragilizado a partir da crença de que não podem existir limites intransponíveis ao lucro de uns poucos e à acumulação do capital pelos detentores do poder econômico. Instalou-se um Estado conservador e voltado à realização dos desejos dos super-ricos.
Os direitos e garantias fundamentais passaram a ser tratados como objetos negociáveis e, portanto, descartáveis. O poder político voltou a se identificar sem pudor com o poder econômico, desaparecendo as mediações que caracterizavam o Estado moderno. Os valores democráticos perderam importância ao mesmo tempo em que o egoísmo foi elevado à virtude.
A aliança entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, responsável pela nova obscuridade, faz com que alguns analistas passem a identificar uma espécie de “revolução conservadora” em curso. Essa aliança pretende integrar a partir da racionalidade neoliberal, que faz com que tudo e todos sejam tradados como objetos negociáveis, o projeto de um mercado sem limites e o controle social através da moralização e da repressão estatal da população. No Brasil, essa aliança produziu, por exemplo, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Nessa tentativa de síntese entre os interesses do mercado e a necessidade de compensar os efeitos socialmente destrutivos do neoliberalismo com promessas de ordem,  tenta-se criar um imaginário no qual seja compatível a expansão capitalista das grandes corporações econômicas e a priorização do capital financeiro (capital improdutivo) com uma sociedade estável e segura, de pequenos proprietários independentes e responsáveis pelos seus bens, em uma espécie de retrotopia (uma mistificação tola de um passado seletivamente reconstruído). Para tanto, o “mercado” é apresentado como um modo de existência fundamental, como uma realidade natural e inescapável, enquanto os direitos e garantias fundamentais, os valores democráticos e o projeto de liberdade, igualdade e fraternidade passam a ser vistos como óbices transponíveis tanto à realização dos fins do mercado quanto à eficácia repressiva do Estado.
A nova obscuridade é, em resumo, a antítese da democracia.
A contribuição da direita e da esquerda à nova obscuridade
A racionalidade neoliberal está na base do que chamei de Estado Pós-Democrático, forma jurídica em que desaparecem os limites rígidos ao exercício do poder econômico. Com o empobrecimento subjetivo e a mutação do simbólico produzidos pela razão neoliberal, os valores democráticos (como, por exemplo, a “liberdade” e a “verdade”) passaram a ser desconsiderados. Basta pensar na aceitação, em parcela da população, de linchamentos, prisões ilegais ou notícias falsas (fake news) que passam a produzir efeitos de verdade.
Correlato ao enfraquecimento do projeto da modernidade, deu-se a adesão a uma lógica pautada por meios linguisticamente empobrecidos (“dinheiro” e “poder”), mas adequados ao projeto de Estado desejado pelos grupos, partidos e movimentos de “direita”.
Não se pode esquecer que o neoliberalismo é um modo de ver e atuar no mundo que se mostra adequado a qualquer ideologia conservadora e tradicional. O projeto neoliberal é apresentado e vendido como uma política de inovação, de modernização, quando não de ruptura com práticas antigas. A propaganda neoliberal, de fórmulas mágicas e revolucionárias, torna-se no imaginário da população a nova referência de transformação e progresso. O neoliberalismo, porém, propõe mudanças e transformação com a finalidade de restaurar uma “situação original” e mais “pura”, onde o capital possa circular e ser acumulado sem limites.
Os movimentos neoconservadores, que sustentam as teses que levam à nova obscuridade, aparecem como fundamentais ao projeto neoliberal porque se torna necessário “compensar” os efeitos perversos (e desestruturantes) do neoliberalismo através de uma retórica excludente, moralista e aporofóbica, bem como de práticas autoritárias de controle da população indesejada.
Diante dessa tendência da “direita” à nova obscuridade e, em consequência, à destruição dos valores democráticos, poderíamos pensar que as forças progressistas (partidos e movimentos de “esquerda”) estariam unidos em defesa do que restou da democracia no Brasil. Mas, isso ainda não se deu.
Com uma retórica sectária e moralista (nesse sentido, muito próxima da encontrada nos adversários da direita), parcela dos partidos e movimentos de esquerda preferiram reafirmar narcisicamente as pequenas diferenças e os projetos pessoais ou partidários de poder, em vez de unir forças para atuar concretamente em defesa da democracia. Mesmo diante do crescimento do pensamento autoritário e das ameaças concretas aos direitos fundamentais, esses coletivos de “esquerda” preferiram o isolamento e apostaram na fragmentação das forças progressistas, na crença de que assim cresceriam de importância no jogo político.
Ao se fecharem para o diálogo com outros partidos do mesmo campo, não admitindo sequer receber apoio de outras forças políticas de esquerda (nesse particular, o caso do PSOL fluminense é exemplar), esses partidos e movimentos ajudam na consolidação da nova obscuridade. Ao reafirmarem diferenças, resgatarem ressentimentos e repetirem o discurso do “monopólio da pureza” (que também estava presente na infância do Partido dos Trabalhadores), esses grupos aproximam-se mais das experiências totalitárias (desnecessário lembrar dos grupos de extrema-direita que pretendiam purificar a sociedade ao mesmo tempo em que utilizavam o significante “corrupção” para destruir os inimigos políticos e a democracia) do que de um projeto libertador. Os recentes aplausos de lideranças dessa esquerda moralista e sectária a posturas autoritárias, contrárias à legalidade democrática, e à neutralização do direito – e do sistema de garantia corporificado no rol de direitos e garantias fundamentais – pela moral são muito significativos e preocupantes.
Em busca de um comum democrático
No campo da “direita”, os diferentes grupos de poder (os partidos políticos, os agentes conservadores entranhados nos poderes do Estado, as grandes corporações econômicas, dentre outros) que, unidos conseguiram a queda do Governo Dilma, apresentam fortes contradições, em especial porque cada um desses grupos de poder não deixou de conspirar contra os demais em favor de seus próprios interesses, pretendendo crescer sem ceder espaço, poder ou status.
A “direita”, a partir de uma racionalidade comunicativa empobrecida que gira em torno dos significantes “dinheiro” e “poder”, reúne partes tão diferentes que não conseguem apresentar uma estrutura estável, um projeto político coerente ou parir um candidato competitivo para as próximas eleições presidenciais (o que faz aumentar as apostas de que as eleições podem não ocorrer).
A nova obscuridade brasileira (que se apresenta na aproximação entre o poder político e o poder econômico, no desaparecimento dos limites ao exercício do poder, no crescimento do pensamento autoritário, nas tentativas de controle ideológico de professores e funcionários públicos, no desmantelamento da rede de proteção trabalhista, no controle e a manipulação da informação pelos meios de comunicação de massa, na divulgação de noticias falsas e a demonização dos inimigos políticos, na destruição de determinados setores da economia nacional, no desmantelamento dos instrumentos para uma política econômica soberana, na substituição da política pela religião e na intervenção militar na segurança pública) expressa bem essa pluralidade de interesses da “direita”.
Felizmente, a ausência de uma estrutura coerente, os interesses antagônicos e as contradições que envolvem os grupos de poder da “direita”, uma vez compreendidos, revelam a possibilidade de superação, resistência e reação à ofensiva antidemocrática e ao movimento neo-obscurantista. A briga por poder e status não vai acabar. Os interesses antagônicos no interior do Estado brasileiro são muitos e evidentes. Como conciliar os desejos nacionalistas de parcela das forças armadas (chamadas para conter os “indesejáveis” às lentes dos ideólogos neoliberais) com os desejos das grandes corporações internacionais? Como frear a onda conservadora e os discursos de ódio que não mais interessam à parcela “civilizada” dos meios de comunicação de massa? Como compatibilizar os interesses dos empresários produtivos com os da burguesia bancária? Como reduzir a carga de impostos, se há a necessidade de um Estado forte tanto para conter os pobres e os inimigos políticos do projeto de acumulação ilimitada neoliberal quanto para resgatar as instituições bancárias das crises que elas mesmo geram ao, na busca ilimitada por lucros, emprestar dinheiro que não possuem e que sabem (ou deveriam saber) que não poderá ser devolvido?
Há um claro limite para a propaganda e a violência, que foram os instrumentos até o momento utilizados para promover esse movimento de distanciamento com os valores da modernidade e da democracia. A propaganda e a violência não são capazes de melhorar as condições políticas e sociais, ao contrário, elas geram mais violência, ressentimento e ódio. A própria aliança entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo apresenta limitações evidentes: os atores sociais neoconservadores procuram compensar os efeitos sociais  típicos do projeto neoliberal com uma retórica moralizante e discriminadora somada à defesa de práticas autoritárias e repressivas adequadas à tradição brasileira, porém o poder de enganar a população, vendendo a imagem de que o “mercado” e os lucros absurdos das instituições financeiras são uma realidade natural e compatível com a nostalgia de uma sociedade estável e “pura”, não dura para sempre.
Está aberto um campo de disputa. Seria importante contar com todos aqueles dispostos a superar a racionalidade neoliberal, resgatar os valores democráticos e defender a modernidade cultural. Não é o momento de se contentar com cirandas ou frases de efeito. Não é o momento para o narcisismo das pequenas diferenças. É hora de fraternidade, não de egoísmo, de reconstrução da democracia, não de ficar preocupado com interesses menores. É hora de resistência democrática.
A democracia é uma experimentação do comum. Deve-se, para construir esse comum, desvelar a artificialidade do mercado e os interesses das oligarquias, ao mesmo tempo em que se busca a coordenação das lutas tanto no nível local quanto no nível nacional, sem esquecer a necessidade de se criar também um bloco democrático internacional. Contra a nova obscuridade, a defesa da democracia. E isso exige efetiva participação popular na tomada das decisões políticas, eleições livres e o respeito incondicional aos direitos e garantias fundamentais, que são exteriorizações do comum e, portanto, inegociáveis.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

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