Número de assassinatos no campo é o triplo da média registrada
entre 2007 e 2010. Mineradoras, ruralistas e madeireiros envolvidos.
Autoridades calam-se
Por Daniel Camargos, em Repórter Brasil
Antes das 19h, Osvalinda Pereira tranca a porta, fecha as janelas e
não sai mais de casa no Projeto de Assentamento Areias, em Trairão, no
Oeste do Pará. Ela e o marido, Daniel Pereira, estão jurados de morte.
“A expectativa é de chegar alguém aqui e fazer o pior”, diz a assentada.
Há duas semanas, cavaram duas covas e fincaram duas cruzes, uma para
ela e outra para o marido, na última ameaça feita pelos madeireiros que
exploram ilegalmente o local onde o casal vive. O ato macabro foi
deixado no quintal deles.
Osvalinda e Daniel não são coniventes com o crime ambiental dos
madeireiros. Pelo contrário, ela preside a associação de mulheres e
desenvolve atividades que buscam diversificar as formas de renda das 300
famílias do Projeto de Assentamento Areias, criado em 1998.
A militância incomoda os criminosos, que usam as estradas do
assentamento como rota para o contrabando de madeira. As ameaças são
constantes nos últimos seis anos. Motocicletas com homens armados e
encapuzados rodeiam a casa do casal.
Assim como Osvalinda e Daniel, em todo o Brasil lideranças rurais que
lutam pela terra e pela água são ameaçados por madeireiros, grileiros,
fazendeiros e até mesmo por grupos ligados a empreendimentos privados e
do Estado. A Repórter Brasil reuniu 10 depoimentos no vídeo
Jurados de Morte. São relatos de pessoas que vivem sob risco constante
na Bahia, Maranhão, Amazonas, Tocantins e Pará.
As ameaças estão inseridas em um contexto de aumento da violência no campo nos últimos anos. De acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
em 2017 foram registrados 1.431 conflitos no campo com 71 mortes. É o
maior número de assassinatos desde 2003, quando 73 morreram por
conflitos rurais.
O período de 2015 até 2017 é classificado pela CPT como “ruptura
política”, que inclui o primeiro ano do turbulento segundo mandato de
Dilma Rousseff (PT) e o atual governo de Michel Temer (MDB). A média de
morte em conflitos no campo neste período é de 60 por ano. Entre 2007 e
2010, no segundo mandato de Lula (PT), a média foi de 28.
Série de mortes em Anapu
Um dos locais onde a violência cresce é Anapu, no Sudoeste do Pará,
onde foi assassinada a missionária norte-americana Dorothy Stang em
2005. Em um acampamento na região conhecida como Gleba Bacajá, onde a
freira foi executada, uma sequência de assassinatos já tirou a vida de
três pessoas da mesma família. O último crime ocorreu neste domingo,
quando o assentado Leoci Resplandes de Souza foi morto a tiros em frente
da sua casa.
Em janeiro, o tio de Leoci, Valdemir Resplandes, foi executado com
tiros nas costas. Em 2015, o primo de Leoci, Hércules Santos de Souza,
também foi morto ao sair de uma festa em Anapu. “Todas as mortes
precisam de uma linha comum de investigação, pois são crimes ligados à
disputa pela terra”, afirma a defensora agrária de Altamira, Andrea
Barreto.
O assassinato não foi uma surpresa. Na terça passada, portanto seis
dias antes da morte de Leoci, a sua mãe, Iraci Resplandes, procurara a
defensora. Ela comunicou que observava a movimentação de pessoas
suspeitas, algo semelhante ao que ocorreu antes da morte de Valdemir.
“Foi dado sinal verde para o poder privado soltar as asas e pegar o
que puder”, afirma Jeane Bellini, integrante da coordenação nacional da
CPT. Bellini avalia que há uma relação direta entre a falta de ação do
Estado e a violência no campo. “O governo tem se ausentado”, afirma.
O antropólogo e pesquisador dos conflitos fundiários na Amazônia,
Igor Rolemberg, destaca algumas medidas, como a redução orçamentária à
reforma agrária e o bloqueio do acesso ao crédito rural por parte de 500
mil famílias assentadas, como fatores que acirram a violência no campo.
“Se por um lado o governo deixa de criar assentamentos, por outro a
demanda por terra não deixa de existir por parte das famílias acampadas
ou em ocupações”, explica.
A política do governo de Michel Temer é ampliar a emissão de títulos
individuais de propriedade, em detrimento de apoio aos assentamentos.
Entre 2015 e 2016, enquanto a emissão de títulos individuais aumentou de
1.222 para 7.356, a quantidade de famílias assentadas caiu de 26.335
para 1.686 no mesmo período.
Com essa política, o governo deixa de investir na infraestrutura e o
apoio para que o pequeno agricultor permaneça e produza na terra, pois
assentamentos exigem a construção de estradas, escolas e postos de
saúde, além de financiamento para o plantio.
Conflitos podem piorar
“Se não houver mudança política eu não vejo como mudar esse quadro”,
entende Jeane Bellini, da CPT. Na análise da coordenadora da comissão, a
situação pode piorar. “Quem mandou pistoleiros e ameaçou no ano passado
pode consumar o fato em 2018”, afirma.
Esse é um dos temores de Ednaldo Padilha, da comunidade quilombola
Camaputiua, em Carajari, no Maranhão. “Cabeça”, como Ednaldo é conhecido
por todos na região, é um líder comunitário e já participou de diversas
ações de resistência contra a entrada dos latifundiários nas terras
quilombolas.
As lutas renderam diversas ameaças veladas até que, em setembro do
ano passado, dispararam três tiros na casa dele. “Cabeça” procurou a
polícia e chegou a ficar dois meses fora em um programa de proteção à
pessoas ameaçadas de morte. Ele não tem dúvidas sobre a origem das
ameaças. “Quem ameaça são fazendeiros e políticos locais que querem
tomar a terra da gente”, afirma.
A CPT divide os conflitos em quatro tipos: por terra, pela água,
trabalhistas e a última categoria que envolve outros casos: confrontos
em tempos de seca, os ligados à política agrícola e ao garimpo.
Em Minas Gerais, 66 pessoas estão inseridas em um programa de
proteção aos ameaçados de morte do governo estadual. O maior grupo, com
17 pessoas, é de conflitos com empresas mineradoras.
O casal Vanessa e Reginaldo dos Santos integra a lista. Eles tomaram a
frente na luta contra o empreendimento da mineradora Anglo American.
Após a construção do mineroduto, tiveram que deixar o sítio onde viviam
na comunidade Cabeceira do Turco, pois a casa passou a tremer. “O
minério passa a 24 metros da minha casa. Todas as propriedades próximas
tremem”, afirma.
O casal mudou para um imóvel alugado pela mineradora em Conceição do
Mato Dentro e, ao se oporem a um projeto expansão da mineração
solicitando judicialmente o cancelamento de uma audiência pública,
passaram a ser perseguidos.
Um jornal local publicou matéria com o nome deles e dos outros três
autores da ação. Depois disso, passaram a receber ameaças sob o
argumento de que estariam atrapalhando o desenvolvimento econômico da
cidade. Um dos autores da ação junto com o casal, Elias Souza, chegou a
ser agredido fisicamente.
“Recebi um bilhete dizendo que eu seria a próxima”, afirma Vanessa,
que relata ser constante motoqueiros buzinarem na porta da casa dela de
madrugada. Além das ameaças, Vanessa reclama de não conseguir emprego na
cidade. “Somos taxados de ser contra a mineração. Não somos. Nós somos
contra as violações de direitos que a mineração faz”, afirma.
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