O menino correu
desengonçado sustentando as pernas enormes com o jeito bruto de adolescente, e
se ria impaciente para encontrar uma das irmãs que fosse, escondida perto do
galinheiro no vasto quintal. A pensão agora era um bar, dando contornos mais
lógicos aquela profusão de bêbados que visitava o estabelecimento outrora da
finada Yolanda. A algazarra era enorme mesmo. Incomodava muito. Era sempre
assim, no fim de tarde: Quando a molecada voltava da escola, as filhas de
Mariana afervoradas pelas travessuras causavam os maiores transtornos. Filhas,
porque o garoto João, parecia mais bobo do que arruaceiro, quase sem maldade.
-Já falei pra parar,
Celeste!!!
O grito foi de Margarete,
tia de João, na verdade prima de Mariana, que era filha única até onde se
sabia. Dona do bar, Margarete era quem ganhava o pão de cada dia na frente do
balcão, contando dinheiro, lidando com bêbados e gente fraca da pior espécie. E
lá foi criado João com as três meio-irmãs.
-Achei!!
E correu estabanado, o
garoto de 14 anos, até o interior da casa dando dois murros surdos na parede,
suado e ofegante. Senta-se para descansar e com o olhar sem foco vê as três
meninas se embaralhando ao longe no quintal, bem perto do pilão. Recosta-se à
parede fresca, e, quase invisível sob as luzes apagadas, não é percebido quando
sua mãe rompe a cozinha sob a mira de um intenso sermão.
- Quer dizer que ainda por cima o Bento não vem pra comer em casa
hoje?! Quando tem que bancar o pai, ele some... Já quase não dá as caras,
dinheiro pra ajudar a manter esse cortiço, muito menos...- constrange-a uma
mulher.
- Não... Já até foi pra rodoviária. Vai
passar esse mês no serviço da capital. - absorve o golpe Mariana, apoiando
as rasas verduras compradas, no balcão
de madeira.
- De novo! Tá gastando mais
fora do que com a comida daqui de casa. A última vez ele ficou quanto? Dois
meses?! - a voz era de Mirtes, outra prima de Mariana, a quem João também
chamava de tia.
- Dois meses...
Mariana não continuou. Tratou logo
de começar a lavar o pouco que trouxe da feira. Era a maneira mais acertada de
contemporizar os arroubos de ira de Mirtes. Um ritual constante, desde muito, e
Mariana já o conhecia. Olhando fixamente para o fundo da pia, lavava tudo com
esforço, sob o barulho irritante do filete de água que saia da torneira. “Até
parece...”. Resmunga para si. - Como se sobrasse tempo nesse miserê todo
pra regular a vida de Bento -.
Mas não era só isso. Mariana
vivia sob um auto-martírio. Culpava-se silenciosamente ao consentir a cada
ironia, por mais fina que fosse. Não havia como exigir muito de quem quer que
estivesse ao seu lado, sobretudo de quem destilava verdades cruas com a certeza
de um credor impiedoso.
- Olha só! E abre o olho, viu
Mariana, veja lá o que esse homem anda fazendo por aí! - destilou Mirtes.
Mariana parou e respirou
fundo. Pensou. Não respondeu e continuou a usar a pia. Por um momento veio na
mente a imagem de Yolanda. A prima, então, seguiu desfiando o Rosário:
- Ele nem falou com as meninas,
falou??
Não. Não havia falado. A
distância de Bento com as meninas era crescente. De pai ausente a um estranho
qualquer, talvez fossem necessários apenas mais alguns meses fora. E o que mais
chateava Mariana era o apego desmedido sobre João.
- Assim fica fácil!! Bancar
o pai do garoto que é um encosto, pobre coitado... mas na hora de ser o pai que
as meninas precisam, de ser o homem dessa casa... Aí não... deixa com a
Margarete, ou com a Mirtes! Gritar com a mulherada aqui dentro é mole, agora
encarar aquele bando de abusados do bar, é com a gente! Celeste já está uma mocinha, daqui a pouco
não vai mais poder atender ninguém lá na frente. Quer que ela faça igual a
você!?!? Aliás, e o João? Fica de olho que a hora que Bento perceber que aquele
bicho não contribui com nada aqui dentro, não sei não, heim!! Não sei, não...
Se ele acertar esse garoto do jeito que ele costuma resolver as coisas por aí!!
Mirtes falava e Mariana ouvia.
Silenciosamente media o respirar. Não queria polemizar, mas era quase
impossível. João, invisível sob a báscula do corredor, também ouvia, resignado.
Por vezes se doía pelas acusações ao pai. Culpava-se por não saber o que fazer
nessas horas. Em muito a admiração e o respeito pelo padrasto era mais forte do
que uma expressão de afeto que fosse pela mãe. Não queria que a mãe assimilasse
as críticas ao pai, e acabasse através de brigas e cobranças com os poucos
momentos de alegria de João naquela casa. O homem a quem aprendeu a chamar de
pai trazia as cores para um mundo chiaroscuro. Muito por essa conta, via
nas tias uma má influência quase intransponível para a mãe. A frágil mãe.
Absorvia, então, a duros golpes como esse, o que significava para toda aquela
gente sua presença, o seu nascimento. E permanecia sem ação.
- Mirtes para de falar
por favor!! - Ergueu
a cabeça, sua mãe.
- Meu Deus!! Será que a vida
toda você vai seguir querendo ser o centro de tudo? Até quando?! Acabou com a
minha família pra que a gente cuidasse da sua, agora quer que a gente sustente
vagabundo?! Você acha que não tenho direito de falar, disso?! Que Margarete não
tem o direito de reclamar? Você acha que sofre mais do que eu sofri? Meus
filhos nunca tiveram o cuidado que a gente dá aos seus!! Mercedes foi viver a
vida dela, sumiu logo pra não ficar nessa merda de vida!! Essa falta de
comando! Agora quando eu falo de seu marido que só sabe chegar, encostar
naquela merda de bar e beber a despensa da Margarete, você banca a perseguida!!
- Mirtes! Pode falar o que quiser!
Mas não me acusa de mais nada não, porque sei que isso é coisa sua! Isso é
culpa! - Explode Mariana, esbravejando
enquanto seca a mão com um pano velho.
Para João a imagem de Bento era o
fiel da balança contra qualquer ressentimento que pudesse nascer contra todos
naquele lugar. Mantinha os sonhos infantis ainda conservados, como o de
trabalhar nas forças armadas. Quando via o pai sair fardado com o cabelo e
bigode irretocáveis, João também ia, por alguns instantes, em pensamento.
- Bêbado!!! - Vomitou Mirtes,
saindo da cozinha como um raio.
Recôndito, João olhou para a ela
secamente.
- Vem João!! - gritou
Celina, a irmã mais nova, lá de fora.
João estava diferente.
Entrou na cozinha. Viu a
mãe de cócoras com as mãos no rosto como que se não quisesse enxergar mais
nada.
- Mãe.
Ela não respondeu. João
aproximou-se, abaixou, e deitou a mão pesada sobre seu ombro. O barulho que
saia da torneira aberta regia uma música bizarra.
- Mãe. Não fica
chateada com o pai. A tia Mirtes tem raiva de mim.
- Não estou nem um
pouco preocupada com seu pai, João. - murmurou Mariana num tom bem abaixo do normal.
João não gostou. Retirou
a mão e levantou-se. Ia sair, mas disse, antes:
- A senhora deveria
estar pensando no que falam do pai sim, mãe. Você está aqui, você tem que
defender ele. E se ele não quiser voltar mais??
Mariana suspirou.
Era demais pra ela. Mesmo
assim respondeu:
- João. Me deixa em
paz... por favor. - permanecia
abaixada a mãe, embora falasse com um pouco mais de vivacidade.
- Ele que paga tudo
aqui dentro, mãe. Se não fosse ele, depois que a vó morreu a gente tava na rua.
Se a senhora trabalhasse no bar, ou me deixasse ficar no balcão, pelo menos.
Ficaria menos pesado pra ele...
Mariana olhou para o
filho:
- Menos pesado pra
ele?
João engoliu a voz.
- E pra mim João? Não
existe peso pra mim?? Pesado pra ele??!!! Ele fica dias aqui e some meses, e
fica pesado pra ele??!! E quem vai te defender desse povo maldoso dessa cidade?
Quem vai te tratar como eu trato? Quem vai cuidar de mim, João?!! Sabe por que
eu não fico lá no balcão?? Sabe porque Margarete não me quer na porta do bar??
- Levanta-se
Mariana, elevando a voz tardiamente.
Não se ouviu nada por
instantes.
- Porque ninguém quer
comprar de uma mulher que fez pacto com o diabo pro filho nascer...
A voz novamente era de
Mirtes. Acabava de chegar e completou venenosamente a resposta de Mariana.
Mariana sentiu seu sangue
subir.
- Eu não disse isso!!
João, entre as duas,
ouviu em sossego. Não era incomum ouvir esse tipo de coisa seja pelas ruas,
seja dentro de casa, principalmente da tia. As duas iniciavam mais um dura
discussão enquanto ele sublimava. Lembrou de Bento. Lembrou de seu lugar
naquela casa. Lembrou dos inúmeros pesadelos que o perseguiam e que não tinha
coragem sequer de contar. Uma cozinha velha, carente de água limpa, pintura,
luz descente, onde os móveis velhos mal escondiam os ratos e insetos que
porventura apareciam. Ali era seu espaço desde que nascera, mas nunca, sequer
por alguns instantes se sentira completamente familiarizado. Os gritos das
mulheres já começavam a incomodá-lo.
- Você é mãe desse
monstro, você que devia cuidar dele sozinha!!! - gritou Mirtes colericamente.
Um tapa explodiu no
rosto, desferido por Mariana. As duas chegavam então às vias de fato.
Mirtes, pelo tapa, foi
instantaneamente impulsionada a partir pra cima da prima.
Foi contida pelo braço
por João.
João olhou por alguns
segundos nos olhos da tia que não poderia sequer tentar se desvencilhar dada
sua força.
- Tá me machucando
João! Me larga! Eu sou sua tia!
Sua mão apertou então com
mais força o braço da mulher.
Era uma sensação estranha
que ele sentia. Uma calma profunda e um ódio que se avassalava aos poucos.
João aproximou seus olhos
negros do rosto da tia e viu finalmente o mesmo que via no rosto daquela gente
toda. O que via na cidade inteira quando se permitiam aproximar: Pavor.
Foi o estopim.
João sentiu, então, pela
primeira vez o cheiro do medo.
Os olhos esbugalhados da
tia e o braço arroxeando rapidamente fizeram com que Mariana interviesse. “Larga
ela, filho!”, ponderou com uma voz maviosa, talvez já com a receita certa
para acalmá-lo. Nunca antes vira João se destemperar desse jeito. Sem abrir a
boca, só com o olhar, mortífero.
- Me solta, sua
aberração!! gritou
Mirtes.
A frase reverberou dentro
das paredes do seu corpo como um grito em uma catedral. O garoto cegou para
tudo, inevitavelmente.
Com uma força
desproporcional arremessou a tia em direção as cadeiras de palha, ímpares, que
sobravam perto da mesa. João encurralou como um tigre o corpo da mulher no
canto da cozinha, enquanto ela deitada no chão, ainda sem saber se machucada ou
não, tentava reagir. Acuada estava como uma presa. “Margareeete!!!” bradou,
quase em choro.
Um arrepio incomum na
nuca ele passou a sentir. A visão ameaçava embaralhar, e vozes descontinuadas
como em um radio velho roubavam sua audição.
Mariana abraçou com força
o filho pelas costas, quase sem conseguir. Pequenina que era apertou-o como se
procurasse acalmar um bebê:
- Meu amor!! Por favor
se acalma...
Colou a face nas costas
do filho e trancou os olhos em oração. João pareceu retomar a lucidez. A tia
ofegante e em prantos reclamava dores nas costas. O que tinha acontecido? O
garoto piscou algumas vezes até reconhecer tudo aquilo. Sentiu o coração
disparado de sua mãe colado a si. João então abandonou a posição de ataque e
embargou os olhos.
A sua frágil realidade
havia desmoronado de vez.
- Tia... A culpa não
foi minha!
A voz trêmula acusava o
peso da afirmação. Mariana não abandonava o corpo do filho. Mirtes permanecia
no chão em prantos. Os soluços vieram naturalmente, e o cenho infantil ainda se
transformava aos poucos em expressão de angústia. Olhava para as próprias mãos
trêmulas, mas um desabafo fortuito pareceu resumir toda a rejeição que sentia
nos olhos de sua tia.
- Eu não matei
ninguém, tia...
Mais uma lembrança era
inevitável, mas não apenas para João. Para todos.
Em silêncio permaneceram
por alguns segundos.
- Termina de fechar o
bar pra mim, João! - a
voz que o assusta dessa vez é a de Margarete, que ao ouvir aquela balburdia
toda, abandonara o balcão do bar para encerrar a discussão. Fria e sem se
envolver com que acabava de acontecer a mulher entrou na cozinha e rapidamente
foi ajudar Mirtes no chão. Margarete era com certeza a principal herdeira da
autoridade de “sua avó” Yolanda. Sua presença inspirava obediência.
João desvencilhou-se dos
braços da mãe e de cabeça baixa não teve coragem de olhar nos olhos das tias.
Preocupou-se com Mirtes internamente, mas a vergonha roubou-lhe até as
desculpas. Ao sair fitou a mãe e disse baixo:
- Não deixa o pai
ficar sabendo, por favor...
João saiu, então, pelo
quintal à tempo de ver ainda Celina e Maria da Paixão pegarem uma em cada braço
seu, protegendo-se de si mesmas, em suas típicas brincadeiras. Ainda tentou
secar as lágrimas. Mas ouviu Celeste ao longe perguntar:
- Tá chorando de novo
João?
- Não, Cel! - Abandona as irmãs acelerando o
passo.
O menino entra pelo bar ainda sob
meia-porta. Apoiou-se no balcão em reflexão. Mais calmo, olha aquele espaço desorganizado do bar e ocupa
sua mente com a missão dada pela sua tia. Abaixa-se rapidamente, e ergue uma
pilha de engradados de cerveja que estava no chão com uma facilidade que chama
a atenção de um último cliente. O coração ainda batia forte, lembrou mais uma
vez de sua tia Mirtes. João inicia o trabalho, limpa a bancada rapidamente com
um escovão, varre o chão por trás das estufas. Nessa meia hora em silêncio o
último cliente não pareceu querer se retirar. O velho bêbado desconhecido
olha-o, hipnoticamente. João intimidado começa a recolher as cadeiras sobre as
mesas bem devagar, com intenção de já começar a lavar o chão. O velho, por sua
vez, custava a encerrar a saideira. Ainda sem ostentar músculos, João exibia
uma agilidade e força incomuns a meninos daquela idade. Principalmente aos
olhos de estranhos. “O bar fechou...” avisa com o olhar baixo João,
imitando muito mal o jeito duro de Margarete, para “expulsar” o último cliente.
O velho, sem freios, e com uma ironia que o marcou para o resto da vida,
olhando bem no meio dos olhos do garoto, disparando:
- E quem sou eu pra
peitar o filho da pomba-gira?
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