Esquerda e Lula recuperaram imagem e influência, mas atitude
hegemonista do PT bloqueia unidade. Direta assanhou-se. Será possível
derrotar o golpe em outubro?
Por Boaventura de Sousa Santos
Estão a acelerar-se as urgências típicas de um ciclo eleitoral que se
vai prolongar entre o fim de agosto e o fim de outubro. Estas urgências
são particularmente desafiadoras para as esquerdas brasileiras porque o
seu principal candidato e, de todos o mais bem posicionado nas
sondagens, está preso e pode vir a ser considerado inilegível.
As irregularidades óbvias do processo Lula da Silva têm tido alguns
efeitos surpreendentes. A obsessão punitiva foi neste caso tão excessiva
que o sistema judiciário degradou a sua imagem e a sua legitimidade,
tanto nacional como internacionalmente, a um nível e com consequências
que, por agora, são dificeis de avaliar. Por sua vez, a imagem política e
humana de Lula saiu desta húbris político-judicial fortemente
fortalecida e melhorada. Vítima de uma flagrante injustiça e, para
muitos, um preso político – talvez o mais famoso preso político do mundo
– Lula da Silva viu aumentar exponencialmente o seu crédito político e a
sua popularidade junto das classes populares. Paulatinamente, os erros
ou desacertos dos governos do PT por ele hegemonizados no período
2003-2016 foram sendo minimizados ou esquecidos — para o que contribuiu
também o agravamento da crise econômica e a política de austeridade que
entretanto desabou sobre as classes populares—e Lula da Silva foi-se
consolidando como o pre-candidato de longe mais bem posicionado para
ganhar as próximas eleições presidenciais. Isto, apesar de estar preso,
não poder dar entrevistas nem gravar videos e ser muito provavelmente
inelegível nos termos da “Lei da Ficha Limpa”.
Se objetivo político-judicial era destruir a imagem do ex-presidente,
tudo leva a crer que a estratégia seguida pela elite conservadora
falhou e foi mesmo contraproducente. Terá, no entanto, atingido com
êxito o seu objectivo principal: retirar Lula da Silva da próxima
contenda eleitoral e fazê-lo sem uma alteração qualitativa do regime
político e sem níveis incontroláveis de perturbação social. Mas mesmo
neste domínio o objetivo pode ter sido apenas parcialmente atingido.
Resta a dúvida sobre a influência que o ex-presidente pode ter na
escolha do próximo Presidente da República e na governação do país no
próximo ciclo político. Para além deste fator de imprevisibilidade dois
outros devem ser considerados: endurecimento geral do regime político; e
as dificuldades de construção de hegemonia tanto à direita como à
esquerda.
O endurecimento geral do regime político
Nos últimos meses o regime político endureceu consideravelmente.
Aumentou a violência política de que a manifestação mais vísivel foi o
assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, em 14 de março deste
ano. Para além disso, ocorreram outras execuções de lideres políticos
locais, aumentou a violência contra lideres sociais sobretudo no meio
rural, acentuou-se o verdadeiro genocídio de jovens negros e pobre das
periferias urbanas, foi decretada a intervenção militar no Estado do Rio
de Janeiro com o pretexto da luta contra o crime organizado, têm vindo a
ser perseguidos judicialmente professores e investigadores com
acusações chocantes contra os resultados da sua pesquisa científica (por
exemplo, no domínio dos efeitos danosos para a saúde pública
decorrentes do uso irregular de agrotoxicos na agricultural industrial).
O golpe institucional que levou à destituição da Presidenta Dilma
Rousseff em 2016, a prisão de Lula da Silva e a condução global da
operação Lava-Jato têm vindo a consolidar um regime de exceção que, à
semelhança do que tem ocorrido noutros países, parece ocorrer em suposta
normalidade democrática. Sem mudar qualitativamente, o regime político
tem vindo a acentuar os seus traços reacionários e autoritários. Tenho
defendido que a democracia brasileira, já de si uma democracia de baixa
intensidade, tem vindo a transformar-se numa democracia de baixíssima
intensidade. Isto significa que o cará ter socialmente excludente e
politicamente restritivo das liberdades democráticas se acentuou nos
últimos tempos. Sem se transformar num regime ditatorial de tipo
fascista, tem vindo a abrir espaço para forças políticas neofascistas,
forças de extrema-direita que usam os instrumentos políticos que restam
da democracia para fazer a apologia de práticas típicas da ditadura
(apologia da tortura, justificação da violência extrajudicial contra
populações pobres racializadas, retórica de violenta intolerância contra
lideres políticos de esquerda, etc). A face mais visível desta pulsão
neofascista é Jair Bolsonaro, militar na reserva, deputado federal.
Depois de Lula da Silva é o pre-candidato a Presidente da República mais
bem posicionado nas sondagens. Trata-se de um populista de
extrema-direita tão mal preparado para dirigir o país e tão improvável
como vencedor das eleições como era Donald Trump poucos meses antes das
eleiçoes nos EUA em 2016.
Outros traços do endurecimento do regime político referem-se ao modo
como se tem acentuado o protagonismo do sistema judicial em detrimento
do Legislativo e do Executivo e à consequente judicialização da
política. O Judiciário é hoje no Brasil o fator principal da insegurança
jurídica que atinge todos e sobretudo as grandes maiorias que mais
precisariam de um sistema judicial acessivel e comprometido com os
objectivos constitucionais da defesa dos direitos civis, políticos,
econômicos e sociais. Este endurecimento não se pode explicar sem
considerar o papel da crise econômica, uma crise de rentabilidade do
capital que impôs o fim da política de conciliação de classes que os
governos do PT e muito particularmente Lula da Silva, tinham vindo a
defender e a praticar (o chamado lulismo ou lulapetismo).
As elites dominantes, com o apoio ativo do imperialismo
norteamericano e do capital financeiro global, estimularam (quando não
provocaram) a crise financeira e política do Estado para impor uma
versão mais agressiva do capitalismo, socialmente mais excludente e mais
dependente da criação de populações descartáveis, na prática,
sub-humanas, por via do recrudescimento da dominação colonialista
(racismo, extermínio de jovens negros, colonialismo interno, violência
contra os que lutam pela terra e pelo território, sejam eles camponeses,
povos indígenas e afro-descendentes, populações ribeirinhas e
piscatorias) e da dominação patriarcal (aumento da violência contra as
mulheres, tantativa de liquidação das conquistas pela igualdade e pelo
reconhecimento da diferença dos anos mais recentes).
Esta foi a condição imposta pelas elites nacional e
internacionalmente dominantes para não recorrer a um regime
explicitamente ditatorial. Note-se que o contexto em que ocorreram os
fascismos na Europa eram muito distintos. Tratava-se então de conter um
movimento operário muito militante e muito organizado ou de neutralizar o
“perigo” comunista. As ameaças à dominação capitalista eram então
perecebidas como tendo uma dimensão existencial que não tem hoje. Pelo
contrário, a dominação capitalista e colonialista parece hoje temer
menos do que nunca possíveis inimigos. Conseguiu, pelo menos
aparentemente, uma hegemonia por via da qual o slogan das esquerdas dos
anos de1920 “socialismo ou barbarie” foi substituido pelo slogan
“capitalismo ou barbárie”, ao mesmo tempo que as barbaridades cometidas
pelo capitalismo se tornam cada vez mais evidentes e perigosas,
atentatórias do mais elementar direito humano, o direito à vida, para
nem sequer falar do direito à vida digna.
Dificuldades de construção de hegemonia tanto à direita como à esquerda
Historicamente, as forças políticas de direita sempre mostraram mais
unidade nos momentos decisivos que as forças políticas de esquerda.
Frequentemente, nem sequer tiveram de se preocupar em detalhar as
condições da sua unidade porque contaram sempre com um apoio
surpreendente para a conquista ou manutenção do poder político: a
divisão entre as forças de esquerda. Esta assimetria não decorre de uma
qualquer deformação intrínseca que impeça as esquerdas de fazer
diagnósticos
corretos nos “momentos decisivos” e de contabilizar as perspectivas
do médio prazo nas urgências da auto-preservação no curto prazo. Decorre
antes de uma outra assimetria que é constitutiva das sociedades
capitalistas e colonialistas em que vivemos desde que a opção
(consensual) pelo regime político democrático deixou de poder contemplar
a opção por um regime económico alternativo ao capitalismo, o
socialismo. A partir de então, a direita, quando governa, detém o poder
político, econômico e social, enquanto a esquerda, quando governa, detém
o poder político mas não o poder econômico nem o poder social. Esta
assimetria permite à direita ter, em geral, mais certezas nos “momentos
decisivos”, por exemplo, a de manter intacto o poder econômico e social
mesmo quando se vê obrigada a perder o poder político.
Pelo contrário, as forças de esquerda tendem a sobrestimar o seu
poder quando estão no governo (como se o poder político acarretasse, por
si, o poder económico e social) e a subestimá-lo quando estão na
oposição (a perda do poder político é vista como perda total e convida a
um refúgio em estratégias isolacionistas de sobrevivência partidária).
Este desequilíbrio é fator de confusão e miopia oportunista nos momentos
em que seria mais importante a clarividência de objetivos estratégicos
hierarquizados.
No Brasil, esta assimetria é hoje mais visível do que nunca embora se
devam ter presentes os antecedentes que levaram ao suicídio de Getúlio
Vargas em 1954 e ao golpe militar dez anos depois. Na crise que se
instaurou depois das eleições de 2014, a direita esteve sempre mais
unida que a esquerda. No momento em que, devido à crise internacional,
se apercebeu que o seu poder econômico estava em perigo, decidiu que,
para o salvaguardar, seria preciso reconquistar em pleno o poder
político, ou seja, pôr fim à política de alianças com os governos do
Partido dos Trabalhadores que tinha mantido desde 2003. Daí, o golpe
institucional que levou ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff, à
prisão atrabiliária de Lula da Silva e ao desmantelamento rápido e
agressivo das políticas mais emblemáticas do periodo anterior. A
facilidade com que a direita tirou do caminho o petismo mostra que o
período anterior assentou num equívoco. O que para o PT era uma política
de conciliação de classes mais ou menos duradoura, era para a direita
uma mera política conjuntural de alianças. O ódio classista e racista
que se propagou de imediato como gasolina incendiada é prova disso
mesmo.
Mas também ficou evidente que a unidade das forças de direita era
sobretudo uma unidade negativa, isto é, uma unidade para eliminar a
presença do petismo da cena política. A unidade para construir uma
alternativa positiva (a configuração específica das relações entre o
poder político, o poder econômico e o poder social) teria de ter outro
ritmo, o ritmo do ciclo eleitoral de 2018. Tomadas de surpresa (o que,
em si, já é significativo), as forças de esquerda levaram algum tempo a
reagir, tanto mais que já vinham divididas no que respeita à avaliação
das políticas e das práticas da governação dos governos petistas. No
entanto, os “excessos” da contra-reforma facilitaram a emergência de uma
unidade entre as forças de esquerda, também ela uma unidade negativa: o
consenso no repúdio do ritual sacríficial de que foi vítima Lula da
Silva e, consequentemente, o consenso na campanha do “Lula Livre” e na
reivindicação do seu direito a ser candidato no ciclo eleitoral de 2018.
O ciclo eleitoral está a entrar na sua fase decisiva e as assimetrias
anteriormente anotadas estão, de novo, bem presentes. No que respeita à
direita, muitos analistas salientam a falta de unidade positiva patente
na ausência de um candidato óbvio à liderança política do próximo
período político. Em meu entender essa análise está equivocada. A
aparente falta de unidade é uma armadilha bem urdida para garantir que
no segundo turno das eleições presidenciais seja decidida entre dois
candidatos de direita. No momento em que isso ocorrer a direita saberá
tornar claras as suas escolhas. A destruição do candidato rejeitado pode
ser brutal.
A menos que as condições econômicas internacionais se deteriorem
acentuadamente, optará por uma política conservadora sistêmica em
detrimento de uma política de ultra-direita com uma pulsão
anti-sistêmica. Obviamente que não está garantido que esta estratégia
resulte plenamente. As dinâmicas da política do ressentimento atualmente
em vigor podem soltar os demônios do populismo de extrema direita. De
todo o modo, esta solução garantirá o principal, a congruência mínima
entre o poder político democrático de baixíssima intensidade e o poder
econômico e social de cariz particularmente excludente e repressivo.
No que respeita às forças de esquerda, à medida que se intensifica a
lógica eleitoral, a falta de unidade positiva (para garantir uma
alternativa politica minimamente de esquerda) torna-se cada vez mais
patente. A lógica taticista de sobrevivência partidária a curto prazo
domina e o paradoxo mais chocante a qualquer observador atento parece
escapar às lideranças partidárias: o paradoxo de se apregoar a unidade
das esquerdas no segundo turno e, ao mesmo tempo, fazer tudo para não
haver candidatos de esquerda no segundo turno. Neste domínio, a
responsabilidade do PT é particularmente forte por ser o principal
partido de esquerda e ter como pre-candidato o político mais adiantado
nas sondagens, ainda que essa pre-candidatura não se possa eventualmente
converter em candidatura. As assimetrias entre esquerda e direita que
assinalei acima são agora particularmente dramáticas.
Se é verdade o que afirmei acima – que o que o PT viu como
conciliação de classes era, para a direita, uma mera aliança política
conjuntural – resulta particularmente incompreensível que se insista em
políticas de aliança com as forças de direita que apoiaram o golpe
institucional quando é evidente que não há agora quaisquer condições
para a conciliação de classes, nem mesmo como ilusão credível. Ou seja,
as condições que permitiram ao PT ser a esquerda hegemônica no período
anterior deixaram de existir. Faria, pois, sentido que a hegemonia fosse
reconstruída sem alianças com a direita e, pelo contrário, com alianças
construídas horizontalmente com outras forças de esquerda e
centro-esquerda. Em vez disso, impera o taticismo da sobrevivência
partidária no próximo ciclo político, mesmo que isso implique
desperdiçar a oportunidade de eleger um Presidente da República que
estanque a vertigem de exclusão e repressão que se abateu sobre as
maiorias empobrecidas e racializadas. Esta posição é, no entanto, mais
complexa que o puro taticismo. Constitui o cerne da identidade política
que Lula da Silva costurou para o PT nas últimas décadas. O fato de
estar agora preso faz com que Lula a Silva seja agora mais do que nunca o
fiador dessa identidade. O pós-lulismo e o lulismo não podem coexistir.
De algum modo, o PT está refém do Lula e o Lula está refém … do Lula.
Deve, no entanto salientar-se que Lula da Silva é um lider político
de gênio. A partir de uma cela está a influenciar de maneira decisiva a
condução da política brasileira. Não é fácil encontrar na história
contemporânea outro líder carismático que consiga ampliar a sua
aceitação popular (subir de maneira tão espectacular nas sondagens)
apesar de preso há vários meses e depois de uma campanha de demonização
mediática e judicial sem precedentes. Diz certamente muito sobre Lula da
Silva mas também revela algumas complexidades insondáveis da estrutura
social brasileira e do modo como as mensagens mediáticas são recebidas
pelo público a quem se destinam.
A aposta de Lula da Silva é a mais arriscada de todas as que fez até
agora. Consiste em permanecer na disputa eleitoral o mais tempo possivel
e confiar que, no caso de ser declarado inelígivel, haverá uma
transferência massiva de votos para o candidato que ele indicar,
certamente o candidato a vice-presidente na sua chapa, Fernando Haddad.
Provavelmente só assim se garantirá a presença de um candidato de
esquerda no segundo turno. A hipótese mais segura de tal acontecer seria
a de ter havido um entendimento entre Lula da Silva e Ciro Gomes (PDT),
uma hipótese que foi descartada (definitivamente?). Se a aposta de Lula
tiver êxito, a direita vai ter de reavaliar a eficácia e os custos
políticos do golpe institucional, uma vez que sem ele talvez assumisse o
poder nestas eleições de maneira mais segura e limpa. No caso de
decidir não adulterar ainda mais o jogo democrático, terá certamente de
investir tudo em agravar os custos políticos da reversão das leis (a
contra-reforma) que entretanto conseguiu aprovar durante o interregno do
golpe institucional.
Se a aposta de Lula falhar e um candidato de direita for eleito, as
classes populares vão ver ainda mais agravadas as suas condições de vida
e com isso o gênio político de Lula não poderá deixar de ser
questionado. Seguir-se-ão intensas disputas no seio do PT e
provavelmente algumas cisões. Abrir-se-á então o período pós-Lula. Em
face disto, tudo indica que, com base no PT, não será possível, por
agora, pensar numa renovação das forças de esquerda a partir de uma nova
política de construção de hegemonia.
Fora da esquerda hegemonizada pelo PT, o PSOL está a construir uma
alternativa junto com o movimento Vamos, oriundo da Frente Povo Sem
Medo, o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Tecto), a APIB (Associação
dos Povos Indígenas do Brasil) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Os candidatos à presidência da República são Guilherme Boulos
(presidente) e Sonia Guajajara (vice-presidente). Esta candidatura
aposta na renovação das esquerdas com base em novas lógicas de aliança e
de articulação programática e com exclusão de alianças com as forças de
direita. Parece, pois, estar a tirar as conclusões corretas de tudo o
que aconteceu nos últimos anos. No entanto, deve estar cada vez mais
consciente que tal renovação só é pensável depois das eleições de 2018 e
a sua construção é totalmente contingente, na medida em que dependerá
de resultados eleitorais, por agora imprevisíveis, e das consequências
sociais que dele decorrerem. No plano da contingência, deverá estar
certamente incluida a possibilidade da criação de um novo partido, um
partido que seja também um partido novo, um partido-movimento,
construído internamente por mecanismos de democracia participativa para
ser verdadeiramente novo e inovador no plano da democracia
representativa.
Na base desse partido estarão eventualmente movimentos e organizações
sociais, bem como secores mais movimentistas do PSOL e setores de
esquerda do PT e de outros partidos. Para esta aposta fazer sentido é
preciso que o trabalho político de base das forças sociais e políticas
de esquerda continue a ser possível no próximo ciclo político. A
ausência das ameaças ao capitalismo que exitiam há cem anos parece
indicar que se manterá o regime democrático mesmo que de baixíssima
intensidade. Deve, no entanto, considerar-se uma incógnita perturbadora.
Afinal o fascismo e o neofascismo têm razões que a razão desconhece.
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