disse:
O filósofo Michel Foucault, 1984 (Arte Andreia Freire | Foto Michele Bancilhon / Reprodução)
Por Alessandro Francisco
Em 8 de fevereiro deste ano, foi publicado, pelas Éditions Gallimard, mais um inédito de Michel Foucault (1926-1984): As confissões da carne (Les aveux de la chair). Trata-se do quarto volume de seu projeto de uma História da sexualidade.
O texto, na versão datilografada, fora depositado na editora no
outono de 1982 e, ainda que Foucault tenha falecido em 1984, não fora
publicado. Já no depósito, ele advertiu a editora que a publicação não
seria imediata, pois havia outro escrito que o devia preceder. Este foi
desdobrado em dois volumes – 2 e 3, respectivamente, da mesma História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si, – publicados em 1984, pouco antes de sua morte. O primeiro volume, A vontade de saber, havia sido publicado em 1976, oito anos antes.
Para o estabelecimento do livro, foi realizado um verdadeiro trabalho de pesquisa. Frédéric Gros,
que se dedica ao estudo do pensamento de Michel Foucault ao menos desde
seu doutoramento, é o responsável por esta edição. Gros não somente
recorreu à versão datilografada do texto, mas também ao manuscrito,
depositado na Biblioteca Nacional da França por Daniel Defert – companheiro e um dos herdeiros de Foucault –, em 2014, dois anos após o Ministério da Cultura francês classificar a “obra” de Michel Foucault como Tesouro Nacional.
As confissões da carne, que deve ter em breve uma tradução
para a língua portuguesa, abarca a análise de discursos de filósofos dos
dois primeiros séculos de nossa era, tais como Sêneca (4 a.C. – 65
d.C.) e Caio Musonio Rufo (25 d.C. – 95 d.C.), passando pelo
cristianismo de Clemente de Alexandria (150 d.C. – 215 d.C.) e de
Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.), atravessando os discursos de exegetas
cristãos como Gregório de Nissa (330 d.C. – 395 d.C.), Basílio de Ancira
(ca. 336 d.C. – ca. 362 d.C.) e João Crisóstomo (347 d.C. – 407 d.C.), alcançando, por fim, Agostinho (354 d.C. -430 d.C.).
Em sua análise, Michel Foucault aborda, dentre outros, temas como o
matrimônio e as relações entre esposos, em especial a relação sexual; o
batismo e toda uma série de procedimentos que o preparavam no âmbito do
chamado cristianismo primitivo; a segunda penitência, oferecida aos
cristãos como segundo recurso após o batismo; a virgindade; e a
concupiscência.
Neste escrito, Foucault nos faz ver, por exemplo, que os problemas
que envolviam a prática da virgindade se transferem de um quadro
negativo, presente em alguns tratados da Antiguidade, em que ela era
concebida como interdição ao ato sexual, para um quadro positivo, em que
se faz o elogio da castidade como distinção do “sujeito”, na medida em
que sua prática o aproxima do estado paradisíaco. Toda esta discussão
perpassa tratados destinados aos monges, que já praticavam a castidade –
sequer mencionando a relação sexual ou a dita fornicação – e outros
tantos que visavam a difundir a “vida cristã” a toda uma comunidade.
No dito cristianismo primitivo, o matrimônio (relação entre esposos)
passa de objeto de recusa a “bem positivo” sobre o qual se deve estar
atento e que, portanto, deve obedecer às prescrições de um certo modo de
vida cristão, de uma “vida verdadeira”. O matrimônio se torna elemento
que requer gestão.
Batismo, prática da virgindade, matrimônio, todos envolviam uma
tecnologia, isto é, um conjunto amplo de procedimentos preparatórios, de
um lado, e permanentes, de outro. O exame de consciência era um deles:
uma contínua vigilância do pensamento que, já nos exegetas dos séculos 3
e 4 d.C., tinha por finalidade fazer o “sujeito” acessar uma verdade
interior, os “segredos do coração”, para que fosse purificado.
Não é diferente o caso das chamadas “provas de exorcismo”: para
aceder à iluminação se deve extirpar os males – neste caso, os pecados
–, sendo a fornicação o pior de todos, pois, conforme a leitura que
Foucault faz de diversos tratados dos primeiros séculos de nossa era,
ela seria o primeiro dos males na ordem causal. Todos os pecados
estariam apoiados na fornicação, pois é ela que enraíza o “sujeito” no
mundo terreno.
No que se refere à confissão, são ainda as noções de purificação e de
iluminação que estão em jogo. Uma vez realizado um exame da própria
consciência, por meio de contínua vigilância dos pensamentos – não basta
ocupar-se do corpo, é preciso buscar igualmente a limpeza da alma –, é
necessário enunciar as faltas cometidas e aquelas presentes “em ato” na
consciência. Sim! Segundo diversos tratados antigos, o pecado reside em
ato nos pensamentos, daí ser indispensável um incessante exame de
consciência.
A penitência, por sua vez, também é ato de purificação e é evocada,
por vezes, não como uma simples prática, mas como uma vida inteiramente
penitente. Se o batismo lava e purifica pela água, a penitência não é
distinta: o faz pelas lágrimas do “sujeito”. Se, de uma parte, ela
requisitava práticas privadas – a penitência tem lugar, por exemplo, a
partir da confissão realizada privativamente a um sacerdote –, de outra,
exigia a manifestação pública do “estado de pecador” do catecúmeno.
Exemplo disso é o rito de andar vestido com um saco e coberto de cinzas,
referência à Bíblia (Ester 4,1).
Todos, como vimos, são procedimentos que lavam, purificam o corpo e a
alma, conduzem à iluminação e, portanto, a uma relação direta da alma
com Deus. Entretanto, ainda na esfera do dito cristianismo primitivo tal
como analisado por Foucault, nada se pode fazer sem uma adequada
direção de consciência. Toda esta tecnologia – esta coleção de técnicas,
portanto – deve se dar no quadro da orientação de um mestre. Esta
direção de consciência requer a renúncia total da própria vontade e se
funda na obediência global ao mestre-diretor.
É, então, que, nos últimos dois capítulos do texto, Foucault se
debruça sobre escritos de Agostinho, na passagem do século 4 para o 5
d.C.. Aí, o problema da concupiscência ganha uma nova configuração.
Antes do aparecimento daquilo que Foucault denomina “teoria da libido”,
presente no discurso de Agostinho, a atração entre os sexos se dava
pela manifestação de um desejo natural que, exercido pelo corpo,
confundia a alma e a fazia pesar. A libido – concebida como
desejo, vontade, prazer, se considerarmos o complexo composto por seus
sentidos antigos – aparece, no exemplo do discurso de João Cassiano (360
d.C. – 435 d.C.), como algo que se desdobra nas profundezas da alma.
Assim, pouco antes de Agostinho e em alguns de seus contemporâneos, o
problema da libido se organizava no quadro de uma partição alma-corpo: a concupiscência está inscrita na alma e é motivada pelo corpo.
Consideremos ainda que alguns pensadores anteriores a Agostinho
defendiam que o ato sexual não era realizado no Paraíso, antes da queda,
enquanto, para este, o ato era efetuado, mas sem concupiscência, sem libido. Isto promove a transformação de todo o complexo de ingredientes presentes no discurso ocidental.
No discurso de Agostinho, a libido não aparece mais
assentada na distinção alma-corpo, mas fundada no próprio “sujeito”: é
somente após a queda que o ato sexual se torna libidinoso. A libido,
segundo Agostinho, habita a natureza do próprio homem, o modo como ele
faz uso de sua vontade. Ele não deve desejar o que quer a concupiscência
que nele reside. O homem surge, assim, no discurso de Agostinho, como
“sujeito de desejo”, de modo que sua vontade não se relaciona
diretamente com o objeto desejado, mas com o desejo inscrito em seu
próprio ser. Segundo esta compreensão, no ato sexual, pode-se buscar a
satisfação da concupiscência ou conceber filhos. Destarte, conforme o
discurso de Agostinho, a libido estará sempre presente, pois
faz parte da natureza decaída do homem. Cabe ao “sujeito” querer o que
ela quer ou fazer outro uso de sua vontade.
O escrito póstumo de Michel Foucault é de uma riqueza sem tamanho,
trazendo elementos que interessam, dentre outras áreas, à História, à
Sociologia, à Antropologia, à Psicologia, ao Direito, à Teologia. Não
podemos menosprezar a relevância que os temas abordados suscitarão no
campo da prática psicanalítica. Entretanto, devemos destacar que, numa
perspectiva dita foucaultiana, seu escrito contribui menos a desenvolver
a Psicanálise como prática terapêutica e mais a compreender os
ingredientes que tornaram possível o aparecimento do discurso
psicanalítico. Estaria a psicanálise, ainda hoje, devotada a analisar um
certo sujeito cuja emergência se faz ver, até certo ponto, já na
passagem entre os séculos 4 e 5 de nossa era?
No que compete à filosofia, o texto aporta muitos elementos. Mormente
no quadro dos problemas que envolvem as relações entre a subjetividade e
a verdade. Os inúmeros procedimentos de purificação-iluminação
presentes no chamado cristianismo primitivo não somente permitem ao
“sujeito” uma relação com Deus, e, portanto, um certo modo de relação
com a verdade divina, mas também o acesso à sua própria verdade,
incrustada – segundo os discursos dos primeiros séculos de nossa era –
em nossos pensamentos. É preciso vigiar os pensamentos, extirpar os
males, purificar-se pelas águas do batismo e das lágrimas, confessar a
verdade mais secreta àquele que dirige nossa consciência, para alcançar a
mais íntima e própria verdade de si. Triste percurso trilhado pela
história da experiência da subjetividade ocidental, cujos resquícios
ainda ressoam aqui e ali em nossos saberes e em nossas práticas.
Por fim, para atenuar esta discussão um tanto quanto densa, não sem
recorrer à tradição penitencial em que os cristãos se cobriam de cinzas –
é preciso lembrar que estas permanecem presentes na chamada Quarta-feira de cinzas
–, partilho, aqui, uma curiosidade. Em julho de 1977, as mesmas cinzas
foram evocadas ao final de uma sessão organizada por normalistas – como
são chamados os estudantes da École Normale Supérieure de Paris –, com a
presença de Michel Foucault. A reunião reservada – publicada em forma
de texto originalmente num boletim freudiano francês e posteriormente na
série que reúne alguns ditos e escritos de Michel Foucault – tinha por
objetivo discutir o primeiro volume da História da sexualidade,
publicado um ano antes. Na ocasião, um dos normalistas era o querido
amigo e mestre Alain Grosrichard – atualmente Professor Emérito da
Universidade de Genebra, onde sucedeu Jean Starobinski –, que recordou a
citada reunião ainda em março deste ano quando estivemos juntos.
Na época, próximo de Foucault e conhecendo seu senso humor, Alain
Grosrichard não perdeu a oportunidade de lançar a isca: em meio a uma
discussão sobre o desenvolvimento de métodos contraceptivos no século
18, ele diz “É a época em que se inventa a mamadeira moderna”. Foucault
exclama: “Não conheço a data”. E Grosrichard, por seu turno, assevera:
“1786”, indicando seu inventor italiano e a tradução francesa do texto.
Num clima de companheirismo entre normalistas, Foucault arremata
“Renuncio a todas as minhas funções públicas e privadas! A vergonha se
abate sobre mim! Cubro-me de cinzas! [grifo nosso] Eu não sabia a data da mamadeira!”. E a sessão se encerra numa sinfonia de risos.
Alessandro Francisco é doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, é professor dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UNIFAI e pesquisador associado à Université Paris 8 e à École Normale Supérieure de Paris, em nível de Pós-Doutorado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário