De forma distorcida e caricata, provocação do Cabo Daciolo aponta
a necessidade de entender o que é política externa e o que são os
processos de integração regional
Por Julia de Souza Borba Gonçalves e Lucas Eduardo Silveira de Souza
O termo URSAL, acrônimo de União das Repúblicas Socialistas da
América Latina, veio à tona no debate televisivo entre os candidatos à
presidência realizado pela Band. Na ocasião, o candidato Benevenuto
Daciolo (Patriota), conhecido como “Cabo Daciolo”, acusou o seu
concorrente Ciro Gomes (PDT) de ser um dos articuladores da referida
URSAL. O fato repercutiu sobremaneira em redes sociais e levantou a
questão do que é a URSAL.
Acredita-se que URSAL representa um projeto político de unificação da
América Latina, o que implicaria na transformação de todos os países da
região em uma única grande república. Como todo projeto político, essa
unificação corresponderia a etapas progressivas até a consecução de seu
objetivo final. Desse processo de integração regional estaria suposta a
criação de uma nova entidade política que englobaria a referida área
geografia sob o comando de um poder centralizado.
Em evidente tom de reprovação, o candidato se refere à URSAL como
um plano que está atrelado ao Foro de São Paulo, à ideia de Pátria
Grande e ao comunismo. No dia seguinte ao debate, Cabo Daciolo reforçou
seu rechaço à URSAL em uma postagem no Facebook, atrelando a crítica à
existência da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e seu suposto
plano de transformar a América do Sul em um único país. O artigo 4º da
Constituição Federal, cujo parágrafo único estipula a busca pela
integração regional e a formação de uma comunidade latino-americana de
nações como um dos princípios que regem as relações internacionais do
país, é também alvo de críticas por parte do candidato. Segundo Daciolo,
o texto abre uma brecha para que “o Brasil deixe de ser Brasil”.
A acusação de ares conspiratórios teve uma repercussão massiva em
redes sociais, mas de tom contrário ao do candidato: memes, páginas,
eventos e grupos específicos para apoiar a criação da URSAL. O apoio à
sátira ficou por conta das vantagens que a unificação agregaria: uma
maior variedade musical, cultural, ambiental, representatividade
religiosa (o Papa seria nosso), e, claro… uma seleção de futebol
composta por Neymar, Suárez, James Rodríguez e Messi – além de ser a
única a contabilizar nove títulos mundiais.
Brincadeiras à parte, por trás de toda essa movimentação, fica o
questionamento: o que é de fato a URSAL? A primeira menção a ela de que
se tem notícia remonta à socióloga Maria Lucia Victor Barbosa, que
também reivindica a autoria do termo. Em 2001, a professora sugeriu a
sigla fictícia como um gesto de deboche aos discursos integracionistas
de movimentos de esquerda. Desde então, a invencionice vem sendo
apropriada e propagada por interesses diversos. Sob a perspectiva de
estudos sérios na área de regionalismo e integração, é preciso responder
a absurdos como esse do modo mais conclusivo possível: a URSAL é fruto
de devaneios de parte de setores políticos da sociedade brasileira que
maldizem as iniciativas do governo brasileiro e dos vizinhos
sul-americanos para a integração regional.
A “Pátria Grande” é uma quimera do pensamento latino-americano cuja
semente remonta a movimentos independentistas e de estruturação dos
Estados nacionais da região no século XIX. Defendida por líderes
revolucionários como Simón Bolívar e José de San Martín e exaltada por
romancistas modernos tal qual Francisco Otaviano, o ideal de integração
tem adquirido distintos significados, sentidos e formatos no delongo da
história.
Atualmente, o que existe na América Latina são diversos organismos
regionais que intentam promover tanto a cooperação entre os países, como
nos casos da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comunidade de
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a Unasul; o
desenvolvimento econômico da região em diferentes contextos
histórico-políticos, como a Comissão Econômica para a América Latina e
Caribe (CEPAL), e o próprio processo de integração entre os mesmos, como
no caso do Mercado Comum do Sul (Mercosul), Mercado Comum
Centro-americano (MCCA), Comunidade Andina (CAN) e os mais recentes
Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), Aliança do
Pacífico.
No entanto, é importante salientar que nessas propostas de integração
latino-americanas subsiste uma lógica intergovernamental, ou seja, uma
lógica em que o processo político e suas dinâmicas estão passíveis de
grande controle governamental, evitando, assim, a conformação de uma
estrutura decisória acima dos Estados nacionais. É uma característica da
integração regional na América Latina que perfaz dois outros elementos:
o presidencialismo e o nacionalismo na diplomacia. Em outras palavras, a
transferência da soberania do Estado para um novo ente não está
realmente em jogo na região. O fato de essas iniciativas não apontarem
evidências concretas de constituição de uma supranacionalidade torna
ainda mais improvável a acusação de que as mesmas pavimentariam o
caminho rumo a uma espécie de URSAL.
É bastante provável que as ideias recentes por trás da URSAL tenham
sido impulsionadas no bojo de movimentos reacionários às iniciativas
governamentais levadas a cabo pelo ciclo petista no poder. Durante a
Onda Rosa, que representou o momento de ascensão de governos de esquerda
na região durante a primeira década do século XXI, houve uma profusão
de organismos regionais críticos destinados à articulação política
interestatal. É o caso da ALBA, fundada em 2004, da Unasul, criada em
2008, e da CELAC, de 2010. Essas organizações vieram a florescer em um
contexto sociopolítico mais crítico aos postulados do regionalismo
liberal que vigorou na região durante a década de 1990.
Contudo, nenhum desses organismos conta com uma instância decisória
acima dos Estados. O panorama geral é dado pelo Observatório do
Regionalismo, vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e
Regionalismo (REPRI). Atualmente, a Unasul se encontra em um momento de crise. A CELAC não vem expressando relevância aos Estados-partes; não se avançou na conformação de um Mercado Comum pleno previsto no Tratado de Assunção em 1991, além do bloco estar se empenhando para estabelecer acordos
com a Aliança do Pacífico. Além do mais, os organismos de caráter
pós-liberal criados durante esse período representaram mais um modelo de
defesa da capacidade de atuação do Estado do que um impulso rumo à
dissolução de suas fronteiras.
Assim ponto, pode-se dizer que a URSAL representa uma visão extremada
e deturpada de um processo de integração regional que se suporia
socialista. A menção à URSAL soou uma atitude insensata e ilógica, além
de, em certa medida, representativa de uma visão pueril e ingênua por
parte do candidato novato.
Em tempos de sociedade em rede, a propagação massiva dessas
narrativas através de postagens e compartilhamentos torna mais complexa a
tarefa de discernir entre o que é fato e o que é fake. Teorias da
conspiração como a URSAL podem ainda ganhar certo status de veridicidade
se amparadas em inúmeros resultados de busca na internet. Basta uma
rápida procura pelo termo para se ter acesso a um rol de informações
entre website, textos jornalísticos e imagens. Dentre estas, a mais
importante se encontra no próprio site intitulado Dossiê URSAL.
O dossiê traz uma listagem dos procedimentos e etapas que o Partido
dos Trabalhadores estaria colocando em prática para “transformar o
Brasil num país comunista”. Dentre os 10 pontos para a instalação de uma
ditadura perpétua no país estão a implantação de uma reforma que
extinguisse a propriedade privada no país e a instauração da reeleição
de Lula de forma perpétua. Não há dúvidas de que o antipetismo alimenta
visões como essa, sem a mínima razoabilidade dos fatos.
O que é motivo de chacota para uns pode ser algo muito sério para
outros. O fato preocupante não diz respeito à improvável organização,
como discutimos acima, mas ao fato de tal absurdo vir à tona em um
debate dos pleiteantes ao mais alto posto do Executivo nacional. De
forma viral, distorcida e caricata, o assunto URSAL aponta para a
necessidade de se discutir ainda mais e entender o que é política
externa e o que são os processos de integração regional, tendo em vista
que são assuntos que há muito tempo estão na agenda governamental e que
compõem as obrigações do chefe de Estado, seja quem for.
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