Análise dos balanços mostra: focada em
remunerar acionistas, premiar executivos e evitar impostos, empresa
reduziu intencionalmente os investimentos em manutenção e segurança.
Mariana e Brumadinho foram crimes fabricados.
OutrasMídias
Publicado 18/02/2019 às 17:29
Por Luiz Gonzaga Belluzzo e Fernando Sarti, no Le Monde Diplomatique Brasil
A Vale é uma empresa bastante internacionalizada,[1] embora
com uma estrutura produtiva pouco diversificada e concentrada em
atividades extrativas, de metalurgia, energia e logística. Sua estrutura
de propriedade, desde a privatização em maio de 1997, foi pulverizada
entre investidores institucionais, sobretudo estrangeiros.[2] A
estrutura proprietária tem condicionado a adoção de uma estratégia
corporativa financeirizada e de maximização do valor de seus acionistas (shareholders), em detrimento da sociedade e dos demais stakeholders (empregados, fornecedores, governo).
A empresa apresentou uma elevada rentabilidade na última década,
sobretudo pela recuperação do preço do minério de ferro em decorrência
do bom desempenho do setor siderúrgico chinês, puxado pelos setores de
bens de capital, construção civil e infraestrutura, doméstica e externa,
incluindo os projetos da iniciativa “one belt and one road” [um
cinturão e uma estrada — ou BRI,no acrônimo em inglẽs]. No
período de 2008 a 2017, a Vale acumulou um lucro aproximado de US$ 57
bilhões, apesar do estrondoso prejuízo de 2015, de US$ 14 bilhões. Só no
biênio 2016-2017 foram mais de US$ 9 bilhões de lucro. No acumulado dos
três primeiros trimestres de 2018, o lucro líquido atingiu US$ 3
bilhões.
A comparação com uma amostra de 230 grandes empresas de capital
aberto de 35 setores de atividades, doravante denominada de Amostra de
Empresas, copiladas pelo Instituto Assaf,[3] a
partir de dados da CVM, corrobora o argumento da elevada lucratividade
da empresa. Os resultados só foram negativos no período 2013-2015, em
função da queda no preço do minério de ferro, principal produto da
empesa, mas tiveram forte recuperação em 2016-2017 (gráfico 1).
Apesar da Vale atuar em setores bastante intensivos em capital –
mineração, metalurgia, energia e logística –, que exigem uma grande
imobilização de capital (próprio e de terceiros), dados os elevados
lucros obtidos, tem sido possível um retorno expressivo sobre o capital
próprio. O retorno sobre o patrimônio líquido (ROE) tem sido superior ao
dos demais setores da Amostra de Empresas, excluindo-se o período
2012-2015 de baixa lucratividade (gráfico 2). Na média do período
2001-2017, o ROE da Vale foi de 17,1%, (20,2% se desconsideramos o ano
atípico de 2015) contra 9,9% da Amostra de Empresas.
Os dados de distribuição do valor adicionado da Vale e da Amostra de
Empresas comprovam a adoção de uma estratégia agressiva de maximização
do valor de seus acionistas (MVA). Em 2017, a Vale destinou 33% do seu
valor adicionado para os acionistas e 21% para impostos, taxas e
contribuições (governo). A título de comparação, se consideramos a
Amostra de Empresas essa distribuição foi de 10% para acionistas e 42%
para governo (quadro 1). Embora seja uma empresa privatizada em maio de
1997, no governo FHC, com atividades concentradas na área extrativa, a
Vale usufrui de elevados incentivos fiscais por sua atuação no Norte e
Centro-Oeste do Brasil. E também usufrui de um elevado benefício
tributário pelo abatimento dos juros sobre o capital próprio do lucro
tributável. Embora esse benefício tributário se aplique a todas as
empresas, ele é proporcionalmente maior para as companhias com elevados
lucros tributáveis. A título de ilustração, a Vale teve um benefício
tributário sobre os juros sobre o capital próprio de R$ 2,3 bilhões em
2017. Somados aos incentivos fiscais de R$ 1,2 bilhão e a outros
benefícios, o tributo sobre o lucro foi reduzido de R$ 8,4 bilhões para
R$ 4,6 bilhões.
Dentro de sua estratégia de MVA, a Vale adota uma política bastante
favorável de distribuição de dividendos e, mais recentemente, de
recompra de ações. A empresa distribuiu em termos nominais US$ 37,6 bilhões em dividendos para
seus acionistas, majoritariamente na forma de juros sobre o capital
próprio, no período 2008-2017, o que correspondeu a aproximadamente 66%
do lucro líquido acumulado no período. Cabe destacar que o limite mínimo
obrigatório a ser distribuído é de 25%, conforme aponta o Formulário de
Referência 2018 da empresa: “de acordo com o artigo 38 do Estatuto
Social da Vale, pelo menos 25% dos lucros líquidos anuais, ajustados na
forma da lei, serão destinados ao pagamento de dividendos”. Para 2018, a
empresa anunciou uma distribuição de dividendos da ordem de US$ 2,1
bilhões (R$ 7,7 bilhões) e a recompra de ações no montante de US$ 270
milhões (R$ 1 bilhão).
O indicador de endividamento total (relação entre a dívida total e o
patrimônio líquido) da Vale foi inferior ao da Amostra de Empresas ao
longo dos anos 2000. Entretanto, no período 2010-2016, a empresa
aumentou seu endividamento de forma expressiva. Sua dívida líquida
saltou de US$ 16 bilhões em 2010 para US$ 25 bilhões em 2016. O
indicador de endividamento total atingiu o patamar de 1,55 em 2015, ano
em que a empresa teve elevado prejuízo operacional e financeiro (gráfico
3). Desde então, a companhia vem adotando uma agressiva política de
desalavancagem financeira. A dívida líquida da Vale foi reduzida para
US$ 18,1 bilhões em dezembro de 2017 e para US$ 10,7 bilhões no terceiro
trimestre de 2018 (a dívida bruta caiu de US$ 29,3 bilhões em 2016 para
US$ 22,5 bilhões em 2017 e US$ 16,8 bilhões em 2018); ou seja, uma
amortização de mais de US$ 14 bilhões em menos de dois anos (gráfico 4).
Essa estratégia, como veremos, teve forte impacto sobre os
investimentos, uma vez que não foi anunciada e/ou programada uma redução
na distribuição de dividendos.
A redução do grau de alavancagem e a forte geração de caixa, no
período recente, tem permitido uma melhora sensível na relação entre os
encargos financeiros e a receita líquida, que foi crescente no período
2003-2014. O indicador teve um aumento exponencial em 2015, diante da
queda nas receitas líquidas, o que contribuiu para a geração de um
elevado prejuízo. No biênio 2016-2017, observa-se uma expressiva melhora
no indicador, fruto do processo de redução da alavancagem e de expansão
da receita líquida (gráfico 5). Ainda assim, como analisado
anteriormente, em 2017, em função da ainda elevada alavancagem
financeira, a Vale pagou proporcionalmente mais juros que a média das
empresas: 28% contra 23% do valor adicionado. Importante destacar que os
credores da Vale ficaram com uma parcela do valor adicionado superior à
parcela dos empregados (14,5%) e do governo (21%), só perdendo para os
acionistas 33%.
As estratégias de MVA e de desalavancagem financeira têm reduzido os
investimentos totais e, sobretudo, em novos projetos. O patamar anual de
investimento de US$ 3,8 bilhões em 2017 e de mesmo valor projetado para
2018 foi bem inferior ao patamar médio do período 2010-2014 de US$ 14
bilhões e de anos mais recentes (US$ 5,2 bilhões em 2016 e US$ 8,4
bilhões em 2015) (gráfico 6). Outra tendência importante é que os
investimentos em manutenção das operações, também em queda desde 2014,
excederam os novos projetos de expansão em 2017 (52% contra 48%) e em
2018 (76% contra 24%, no acumulado nos três primeiros semestres). Para
2018 foram projetados e aprovados investimentos de apenas US$ 972
milhões para novos projetos e de US$ 2,87 bilhões para manutenção de
operações. A relação investimento / receita líquida (intensidade de
Capex) também se reduziu no período recente (gráfico 6).
Os investimentos de manutenção de operações foram reduzidos
sistematicamente no período 2014-2017: US$ 4 bilhões em 2014, US$ 2,8
bilhões em 2015, US$ 2,3 bilhões em 2016 e US$ 2,2 bilhões em 2017
(tabela 1). Quando esses investimentos são desagregados, observa-se que
os gastos em “pilhas e barragens de rejeitos” foram reduzidos pela
metade entre 2014 e 2017 (US$ 474 milhões para US$ 202 milhões). O mesmo
ocorreu com os gastos em “saúde e segurança” (US$ 359 milhões para US$
207 milhões). Apenas os investimentos nas áreas “social e proteção
ambiental” mantiveram-se relativamente constantes no patamar de US$ 250
milhões, apesar da terrível tragédia humana e ambiental do rompimento da
barragem de Mariana em novembro de 2015. Fica evidente que a nova
tragédia de Brumadinho poderia ter sido evitada e/ou seus impactos
minimizados, poupando dezenas de vidas, se maiores investimentos em
manutenção e segurança das barragens de rejeitos tivessem sido
realizados.
Além de acesso a financiamento externo, a Vale contou com
financiamento público doméstico. A empresa foi a quarta maior tomadora
de empréstimos junto ao BNDES no período 2007-2018, mesmo não tendo
tomado nenhum novo empréstimo no período mais recente de 2016-2018. No
total, a Vale contratou empréstimos no montante de R$ 22,5 bilhões (US$
11,2 bilhões). Os maiores projetos financiados foram a modernização do
complexo produtivo de Itabira, a implantação de unidade de extração de
minério de ferro em Canaã dos Carajás e a construção do ramal
ferroviário no sudeste do Pará.[4]
A remuneração variável dos diretores, que representa quase 75% da
remuneração total, está em grande medida associada à evolução do preço
das ações. Por sua vez, a precificação das ações pelos agentes do
mercado financeiro está associada aos resultados financeiros da empresa e
à adoção da estratégia de MVA. Portanto, a junção de interesses de
diretores e acionistas (e credores) reforçam a adoção da estratégia de
MVA e de suas remunerações, em detrimento dos interesses dos demais
atores (funcionários, fornecedores e governo) e da sociedade em geral. A
tabela 2 permite observar a expressiva valorização das ações da Vale
desde sua privatização: suas ações se valorizaram dez vezes mais que a
média das demais ações do Ibovespa. No período 2016-2018, as ações da
Vale quase quadruplicaram de valor, enquanto o índice Bovespa duplicou.
Os ganhos recentes com as ações da Vale (no período 2016-2018) mais que
compensaram as perdas do período 2011-2015. Os acionistas e gestores da
Vale, remunerados em ações, agradecem.
Comentários finais
Uma empresa que tem a oportunidade e a concessão de explorar as
riquezas minerais de um país deveria contribuir para o seu
desenvolvimento econômico, regional e social juntamente com sua
estratégia de crescimento, acumulação e de remuneração de seus
acionistas. Esse desenvolvimento deveria vir da geração de empregos e de
renda, de encadeamentos produtivos e tecnológicos, da transferência à
sociedade de renda excedente, na forma de pagamento de tributos
superiores aos das demais atividades econômicas produtivas e da
realização dos investimentos, inclusive em segurança e proteção
ambiental. Ao adotar uma estratégia agressiva de maximização do valor de
seus acionistas, que compromete e/ou limita seus investimentos e que
reduz as transferências de renda à sociedade, a Vale deixa de contribuir
para o desenvolvimento do país e se limita ao enriquecimento de seus
acionistas e gestores.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp; e Fernando Sarti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit).
Notas
[1] A
Vale tinha um montante de US$ 37,4 bilhões de ativos no exterior em
2016, o que corresponde a 37,7% dos seus ativos totais. O exterior ainda
é responsável por 92,5% das vendas, com destaque para as vendas para a
China; e por 21,3% do emprego total. Ver a respeito Unctad – World
Investment Report 2018. Investment and New Industrial Policies.
[2] Segundo
o departamento de relações com os investidores da Vale, a composição
acionária em 28 de dezembro de 2018 era: investidores estrangeiros
(47,74%), investidores nacionais (13,24%), ações vinculadas ao Acordo
até 2020 (20,28%) e ações não vinculadas ao acordo (18,75%). O acordo de
acionistas está associado à incorporação da Valepar em agosto de 2017.
Segundo informações do relatório de Demonstrações Financeiras da Vale,
“os acionistas anteriormente controladores da Valepar celebraram um novo
acordo de acionistas (‘Acordo Vale’) que vincula somente 20% do seu
total de ações ordinárias emitidas pela Vale, e terá vigência até 9 de
novembro de 2020, sem previsão de renovação”.
[3] Instituto Assaf. Finanças Corporativas e Valor no Brasil.
[4] Ver a respeito: BNDES. Quem são os nossos 50 maiores tomadores de recursos. www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/consulta-operacoes-bndes/maiores-clientes.
[5] O
Formulário de Referências da Vale S.A. tem uma descrição bastante
detalhada da política ou prática de remuneração da diretoria
estatutária. A remuneração fixa representou apenas 27% da remuneração
total em 2018, o restante foi remuneração variável de curto-prazo (28%) e
de longo prazo baseada em ações (46%), ou seja, “73% da remuneração da
diretoria executiva está diretamente associada ao retorno aos
acionistas”. Ainda segundo a empresa o “objetivo principal é incentivar o ‘sentimento de dono’, alinhando os esforços dos gestores aos interesses dos acionistas” (grifo nosso) (p.432-433).
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