Filme Nós, de Jordan Peele, é um
“formidável pesadelo”: apresenta o mundo subterrâneo e bruto que está do
outro lado do reflexo – e quase nunca enxergamos. O recado, ao final, é
punitivo: estamos devendo e esse mundo virá nos cobrar
OutrasPalavras
Publicado 29/03/2019 às 15:57 - Atualizado 29/03/2019 às 15:58
Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Cinema
A frase de Rimbaud que serve de título a este texto poderia ser uma das chaves de leitura de Nós.
O que faz do filme de Jordan Peele um dos mais fortes e inquietantes da
temporada, entretanto, é justamente o fato de não se deixar enquadrar
numa única interpretação, mas deixar uma porção de possibilidades em
aberto. Não é uma alegoria de sentido unívoco, é um formidável pesadelo.
Tudo começa quando uma família negra de classe média vai a um parque
de diversões à beira-mar, em Santa Cruz, Califórnia. A filha pequena do
casal, Adelaide (Madison Curry) se desgarra dos pais e, para se proteger
da chuva, entra na sala de espelhos do parque. Ali se defronta com seu
próprio duplo. Há então uma elipse brusca e vemos Adelaide (Lupita
Nyong’o) já adulta, partindo para férias de verão com o marido (Winston
Duke) e dois filhos, uma pré-adolescente e um menino de uns oito anos.
É difícil falar sobre o que acontece então sem cometer alguns spoilers,
mas vamos tentar. Basta dizer que entram em cena duplos dos personagens
– não só da família de Adelaide, mas também de seus amigos brancos, os
Tyler, que estão um degrau acima na escala socioeconômica. São versões
incultas e malvadas de cada um deles, o que suscitou a inevitável
leitura da “personalidade perversa que trazemos dentro de nós”, como
reedições da eterna polarização Jeckyll e Hyde.
Através do espelho
Mas o filme de Peele permite pensar em outras referências, em outras
possibilidades. Descobrimos, a certa altura, que existe todo um outro
mundo do lado de lá do espelho, um mundo subterrâneo e de pouca luz em
que tudo parece um rascunho bruto, grosseiro, do que se passa aqui na
superfície da terra. Nesse lugar vivem seres que são como versões não
lapidadas de nós mesmos.
Lembremos de alguns antecedentes. No conto “The Jolly Corner”, de
Henry James, traduzido no Brasil como “A bela esquina” ou “A esquina
encantada”, um homem que passou toda a sua vida adulta na Europa
retorna, na meia-idade, ao sobrado de sua infância, em Nova York. Aos
poucos, na casa semivazia, se depara com um fantasma, que acaba por se
revelar seu “outro eu”, ou melhor, o “eu” ressentido e violento que ele
teria se tornado caso tivesse ficado na América.
Em Through the Looking-Glass, de Lewis Carroll, Alice rompe a
superfície do espelho e encontra do outro lado um universo em que tudo
ocorre ao contrário, ou de modo paródico e ensandecido. Desde a
antiguidade, nas mais diversas culturas, o espelho é um signo potente e
virtualmente inesgotável – e o cinema soube tirar partido de suas
possibilidades plásticas, psíquicas e simbólicas.
O que há de mais perturbador no filme de Jordan Peele, a meu ver, é
que as breves cenas que vislumbramos desse mundo especular se assemelham
ao que ocorre nas franjas mais pobres e deterioradas do mundo real, da
sociedade globalizada atual.
Juntem-se a isso as imagens, bem no início, de um anúncio televisivo
de campanha da fraternidade (todos de mãos dadas, “ninguém solta a mão
de ninguém”), mais o alerta de “Jeremias 11:11” reiterado ao longo da
narrativa, e chegamos talvez ao seguinte: nós, que temos todos os dentes
(ou quase), uma educação básica, roupas decentes e um teto a nos
abrigar, tomamos isso por garantido e esquecemos de onde provimos, desse
magma humano, desse barro informe que pode se desenvolver de uma
maneira ou de outra, de acordo com as condições objetivas e subjetivas
de cada um.
Profecia punitiva
Soltamos a mão desse nosso “outro eu” que poderia ter sido, mas que
ficou para trás, no subsolo da vida, num território ínfero tão parecido
com o inferno. Essa leitura, digamos, social não exclui – na verdade,
reforça – uma intepretação moral, religiosa, judaico-cristã, que chama o
indivíduo à responsabilidade pelo seu irmão do “lado sem luz”.
O tal versículo recorrente do profeta Jeremias afirma: “Por isso diz o
Senhor: Eis que farei vir sobre eles calamidades, das quais não poderão
sair; clamarão a mim, e eu não os ouvirei”. É uma profecia punitiva, um
flagelo coletivo impingido aos que não seguiram a palavra divina.
Tal flagelo vem com um ataque repentino, silencioso e inexplicado dos
“duplos”. A maneira como eles se comportam e como são filmados remete
aos filmes de mortos-vivos de George Romero, cujo sentido
político-social se explicita sobretudo em Terra dos mortos (2005),
em que os zumbis tentam invadir a cidade-redoma onde vivem
confortavelmente os privilegiados. Só que aqui há uma inversão: em
Romero os monstros são gente que já viveu e morreu; em Nós é como se eles não tivessem chegado a viver, tal como concebemos a ideia de “vida”.
O fato é que eles vêm se vingar por causa de tudo o que lhes foi
negado, como o protagonista do conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, que
diz: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito,
sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola
de futebol”. Estamos devendo. E eles (ou “nós”) vêm cobrar.
A vertiginosa virada narrativa, perto do final (à maneira de O sexto sentido,
de M. Night Shyamalan), obrigando-nos a repensar tudo o que vimos
antes, mostra que Jordan Peele, diretor do também extraordinário Corra!,
domina como poucos os códigos e recursos convencionais para criar um
universo próprio, onírico, desconcertante, que nos lança violentamente
para dentro de nós mesmos.
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