Presidente é ignaro, mas órgãos culturais
preservaram certa autonomia. Quem mira em artistas de esquerda, pode
acertar o que não vê: milhares de instituições e coletivos, que obtêm
algum recurso graças às leis de incentivo
OutrasPalavras
Publicado 29/03/2019 às 19:14
A catarse carnavalesca nas ruas e nos sambódromos colocou na berlinda
o atual governo federal, especialmente a figura do presidente que, no
afã de revidar os insultos e críticas de que foi alvo, tentou
desqualificar a festa popular associando o carnaval à pornografia por
meio de vídeo postado em sua conta no Twitter. O episódio,
exaustivamente abordado nas mídias, representou bem o fla-flu que
vivemos hoje no Brasil entre o conservadorismo tosco de uma extrema
direita moralista e punitivista e os adeptos de uma visão mais
progressista e de esquerda que defendem as liberdades de expressão e de
afirmação das diversidades de raça, gênero e sexual.
O foco dessa tensão é menos ideológico e mais cultural pois se
explicita nos comportamentos e costumes. Ao colocar a disputa política
na chave do simbólico e dos valores, as forças conservadoras, que desde
2013 vêm saindo do armário, elevaram as divergências ao nível das
guerras culturais, fenômeno que surgiu no final da década de 1980 nos
Estados Unidos e que permanece ativo até os dias atuais1.
O discurso beligerante e extremado é uma estratégia desenvolvida pela
direita conservadora para combater as minorias que conquistaram
visibilidade e força no pós-modernismo do final do século passado. O
setor oposto, habituado a lidar com a cultura como terreno da liberdade,
da alegria e convivência, encara a disputa com constrangimento em face
da grosseria discursiva conservadora. Por isso vivemos a sensação de que
nesse campo a direita ganha no grito em virtude de sua falta de
escrúpulo na defesa de seus argumentos.
Até bem pouco tempo atrás, as vozes de extrema direita ficavam
restritas aos churrascos das famílias de classe média e nas mesas de
bar. Pouco afeitos à organização política, seja de movimentos ou de
partidos, representantes dessa ala conservadora extremada encontraram
nas redes sociais um campo promissor de difusão de suas ideias,
invariavelmente do contra – ou anti-sistêmicas para usar um termo mais
contemporâneo. As milhões de curtidas se traduziram em votos e hoje
temos na Câmara dos Deputados, inúmeros parlamentares identificados com
essa corrente. O deputado federal Alexandre Frota é a mais perfeita
tradução desse extrema direita, além do próprio presidente, é claro, mas
Bolsonaro teve a seu favor outros fatores para além da internet. Ambos
representam também a ambiguidade desse grupo social. Frota prega
moralismo nos costumes e fala contra a educação sexual nas escolas, mas é
ator pornô com extensa filmografia no gênero. Os conservadores que
defendem o atual governo são contra o aborto, sustentando o princípio
religioso de defesa da vida, mas são a favor da pena de morte.
Trazendo essa polarização para a ação governamental na área da
cultura, o que se vê por parte do Presidente e seus aliados é a
tentativa de desmoralizar e profanar os artistas que lhes incomodam.
Como é de praxe na guerra cultural, não se ataca a crítica e, sim, quem
critica, buscando aniquilar o oponente. Por isso é guerra. Sendo assim,
uma das primeiras medidas do governo foi acabar com o Ministério da
Cultura (MINC). E aqui não foi só a Cultura que foi golpeada. Acabou
também com o Ministério do Trabalho para aniquilar os sindicatos. Queria
fazer o mesmo com os ambientalistas ao tentar diluir as atribuições do
Ministério do Meio Ambiente na pasta da Agricultura. E, na educação,
persegue professores por meio da ideologia da escola sem partido. Um
governo que elege, claramente, quem são seus inimigos: sindicalistas,
artistas, ambientalistas, professores e ativistas de ONGs.
A bravata anti-cultura, porém, não se realiza plenamente na prática. O
que era o MINC passou a ser a Secretaria Especial da Cultura do
Ministério da Cidadania, que incorporou também o esporte e o
desenvolvimento social. Toda a estrutura do antigo MINC foi mantida,
inclusive o orçamento. Entregue ao MDB, o ministério está sendo chefiado
pelo deputado federal gaúcho Osmar Terra, quadro histórico daquele
partido e ex-ministro do desenvolvimento social do Governo Temer. Terra é
alinhado com Bolsonaro, mas não é um troglodita de direita. Nomeou para
o cargo de secretário especial da cultura seu conterrâneo, o sociólogo
Henrique Medeiros. Embora pouco conhecido, ele tem uma atuação
importante na cultura, apesar de restrita ao Rio Grande do Sul e, mais
especificamente, à sua cidade natal, Pelotas. Discreto, Medeiros tem se
movimentado com uma lucidez que contrasta com as declarações do
Presidente.
Taca pedra na Rouanet
Em
recente postagem no Twitter, Bolsonaro afirmou que “(…) nossa
cultura foi destruída por décadas de governos com viés
socialista”. Vejam que tal afirmação cobre não só os governos
petistas, mas também, é possível afirmar, as gestões de FHC e até
mesmo do seu antecessor Michel Temer. Curiosamente, mas coerente com
o perfil contraditório dos direitistas extremados, o alvo de
Bolsonaro é a Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como
Lei Rouanet2.
Essa lei é justamente um mecanismo liberal de apoio à cultura
amplamente utilizado por grandes empresas3,
muitas delas apoiadoras dele. Um mecanismo muito favorável aos
patrocinadores já que eles escolhem os projetos que mais lhe
interessam, via de regra, com artistas consagrados e obras mais do
campo das artes cênicas4.
O
que o Bolsonaro quer mesmo é combater o Chico Buarque, Caetano
Veloso, Daniela Mercury e outros da mesma estirpe. Mas esses artistas
pouco usam a Rouanet. Mas por conta dessa caçada obsessiva, a Lei
poderá sofrer modificações e isso prejudicaria organizações como
a Ação Educativa, Vocação, entre outas que captam recursos para
seus projetos nas periferias por meio da Rouanet. Grupos da cena
independente e periféricos também chegaram nessa forma de captação
depois de terem passado por todos os editais e leis estaduais de
incentivo. É o caso da Cooperifa, cuja Mostra de 2018 foi financiada
pelas Casas Bahia via Rouanet. Bolsonaro vai atirar no que viu e
acertar no que não viu e colocará organizações e movimentos
populares na incômoda condição de defender a Lei de Incentivo à
Cultura.
Essa contenda em torno da Rouanet gera uma situação insólita e pode
aproximar as posições de direita com as de esquerda. As críticas dos
reacionários são infundadas em boa parte, mas pertinentes em outras.
Bolsonaro se queixa que artistas consagrados são os que mais se
beneficiam da Lei e que há uma concentração de projetos no eixo Rio- São
Paulo. É verdade. Acrescente-se a isso, o fato de eventos de caráter
eminentemente comercial serem beneficiados como, por exemplo, o Rock in
Rio, caso que já foi notificado pelo TCU em recente auditoria. No final
do Governo Lula, o então ministro Juca Ferreira tentou reformar a Lei,
propondo o Pró-cultura, um fundo que receberia recurso de empresas por
meio de incentivo fiscal, porém, estas não poderiam escolher o projeto. O
Pró-cultura também buscava descentralizar os recursos, oferecendo maior
incentivo para projetos no Norte e Nordeste e em linguagens pouco
apoiadas. Ou seja, por caminhos diferentes, Bolsonaro e PT se encontram
na crítica à Lei. O problema é o interesse que está por trás de cada
concepção. Um é persecutório e outro republicano.
O fato é que toda essa tensão paralisou o fomento via Rouanet. Após
dois meses sem CNIC (Comissão Nacional de Incentivo Cultural),
finalmente seus membros foram nomeados no dia 28 de fevereiro. Sua
composição, porém, é preocupante. Boa parte de seus membros foi indicada
pelo ministro Osmar Terra o que não significa, necessariamente, que o
perfil do parecerista seja ruim. Mas os membros da área de audiovisual,
por exemplo, são todos ligados à indústria de vídeo games. Isso não é
recomendável. A impressão que passou numa primeira mirada é que são
pessoas mais ligadas ao mercado e não ao meio acadêmico como já foi
outrora. Há que se ficar atento aos projetos que serão aprovados ou
rejeitados para se ter uma noção melhor do conjunto da CNIC.
Espera-se que o secretário Medeiros, respaldado pelo ministro Osmar
Terra, contenha os ímpetos do déspota e seus asseclas. Ele, pelo que se
observou, interceptou indicações do deputado Alexandre Frota.
Ventilou-se na imprensa que o biógrafo do ator pornô ocuparia a
secretaria de audiovisual e um correligionário chefiaria a pasta da
diversidade. Entretanto, a secretaria do audiovisual continua sem
titular, a exemplo da secretaria de economia criativa5, e a da diversidade está ocupada por Magali Guedes de Magela Novaes. As demais secretarias6
estão com seus titulares nomeados, assim como estão as sete entidades
vinculadas ao MINC que são da maior importância: FUNARTE, Biblioteca
Nacional, Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Palmares, IBRAM, IPHAN e
a ANCINE. Esta última tem gestão independente e uma diretora colegiada
com cargo definido por mandato. Todos os nomeados, até onde podemos
observar, são pessoas com vinculação profissional com as respectivas
áreas e de perfil mais técnico. Alguns dos diretores das entidades são
mais notáveis do que os secretários. Miguel Proença, com longa carreira
na música erudita, preside a FUNARTE e a Marta Severo, ex-secretária de
cultura da cidade e do Estado Rio de Janeiro, ficou com a Biblioteca
Nacional, para dar dois exemplos. Tecnocratas, porém, costumam ser
pragmáticos. Navegam ao sabor dos ventos. Se houver pressão da
sociedade, podem se inclinar para as demandas dos movimentos culturais
ou, pelo menos com eles estabelecerem diálogo. Caso contrário, podem
sucumbir às pressões da tropa bolsonarista.
Três tons de uma mesma cor
Se Osmar Terra e Henrique Medeiros forem fiéis aos ideais do velho
MDB do qual fazia parte o economista Celso Furtado que chefiou o MINC
quando ele foi criado, em 1985, talvez possamos ter uma área de cultura
que destoa do perfil mais geral do governo. Algo assim aconteceu no
governo do Estado de São Paulo durante os longos anos da gestão tucana.
Na maior parte do período que vem desde 1995, estiveram na Secretaria de
Cultura figuras progressistas e de alta capacidade de gestão, como a
administradora Claudia Costim e o sociólogo Marcelo Mattos Araujo.
Avalio que o atual governador João Dória Jr. seguiu a mesma linha ao
nomear, como secretário da cultura, o jornalista Sergio de Sá Leitão,
que foi ministro de Michel Temer, mas também foi chefe de gabinete e
secretário de política cultural do Gilberto Gil quando o músico baiano
respondeu pelo MINC no Governo Lula. O mesmo pode-se dizer do empresário
Alexandre Youssef, recentemente nomeado para a secretaria municipal de
cultura da cidade de São Paulo.
Os
três secretários têm perfis distintos. Medeiros é gaúcho de
Pelotas, ligado a museus e a eventos do livro e leitura. Leitão é
carioca e sua atuação é mais ligada ao cinema. Alê Youssef é
paulistano, advogado de formação, empresário da área de música e
atua no carnaval de rua. O primeiro é mais discreto e tem perfil de
gabinete. O segundo é dado às articulações políticas e está
sempre em cargo alto em diferentes governos. Já o terceiro é mais
jovial, midiático e se preocupa com a cidade e a ocupação do
espaço público. Mas os três têm um ponto em comum que é a
defesa da economia da cultura. Sá Leitão, inclusive, já incorporou
a economia criativa no próprio nome de sua secretaria.
Colocando um ao lado do outro, temos um degradê. São tons
diferentes de uma mesma cor do ponto de vista dos governos, ressalvando
características pessoais de cada um que destoam dos governantes aos
quais são subordinados. Ou seja, é possível dialogar e disputar com os
três em níveis distintos de expectativa. Em São Paulo, Alê Youssef já
distensionou a relação com as ocupações, se encontrou com o Movimento
Cultual das Periferias e abriu a Virada Cultural para os saraus, slams
e demais movimentos culturais das quebradas. Leitão já se reuniu com a
Frente Única da Cultura e garante que viabilizará os Pontos de Cultura,
cuja verba está aguardando liberação do governador. Medeiros sinalizou
que levará em conta as metas do Plano Nacional de Cultura, o Sistema
Nacional de Cultura e o Programa Cultura Viva.
Para viver da cultura
Da parte da sociedade civil, os movimentos estão se rearticulando.
Isso é visível na Capital e no Estado de São Paulo, que acompanho mais.
Em nível nacional deve haver uma busca por liberação de editais,
ocupação do Conselho Nacional de Cultura e fortalecimento das autarquias
e fundações do MINC, por onde é possível pressionar por políticas
públicas. Da Rouanet, os artistas consagrados cuidam. Sempre que há
ameaças à Lei, aparecem globais ligados ao teatro para defende-la. O
movimento tem de garantir financiamento para os pontos de cultura que
não chegam a cinco mil quando deveria, de acordo com as metas do PNC,
serem quase 20 mil.
Outra frente dos movimentos é a disputa pelo significado da economia
da cultura ou economia criativa. A diferença aqui é menos conceitual e
mais política. Os que defendem o termo economia criativa estão
associados, mas nem sempre, à defesa dos direitos autorais e os que
levantam a bandeira da economia da cultura estão mais ligados à cultura
livre. O que temos que defender aqui é um conceito que se adapte às
formas mais horizontais e cooperadas de economia, os pequenos
empreendimentos como bares, pequenas casas de show, teatros, cineclubes,
livrarias, produtoras, estúdios, confecções, etc. Os artistas já não
querem mais só viver com cultura. Querem viver da cultura. Esse é
desafio. Já que nos três níveis de governo fala-se do potencial
econômico da cultura, vamos trazer essa premissa para chão da periferia.
E
Notas
1
De acordo com o filósofo Pablo Ortellado, em artigo publicado no Jornal
Le Monde Diplomatique Brasil, na edição 89 de dezembro de 2014, o
conceito foi formulado pelo antropólogo estadunidense James D. Hunter
que publicou, em 1991, o livro “Guerras Culturais – A luta para definir a
América”, obra que não tem tradução no Brasil.
2
Lei 8313 sancionada em 23 de dezembro de 1991 pelo então Presidente
Fernando Collor de Mello que institui o Programa Nacional de Apoio à
Cultura (PRONAC) que tem como um de seus mecanismos o desconto do
imposto de renda por parte de empresas e pessoas de recurso investido em
projetos culturais devidamente aprovados pela CNIC (Comissão Nacional
de Incentivo à Cultura). Ficou conhecida como Lei Rouanet porque o
Secretário de Cultura (Collor também acabou com o MINC – retomado depois
pelo seu sucessor Itamar Franco) na ocasião era o diplomata Sergio
Paulo Rouanet.
3 Somente empresas de lucro real ( com mais de 60 milhões de reais de faturamento anual) podem fazer uso da Rouanet.
4
De acordo com a Lei Rouanet, somente espetáculos de artes cênicas,
patrimônio, música erudita e livros podem ter incentivo de 100%,
ou seja, as empresas podem abater tudo que investem. Na música
popular por exemplo, onde entraria o Chico Buarque, alvo preferido
das críticas conservadoras, as empresas só podem abater 40% do
investido.
5 Última consulta feita ao site da Secretaria Especial da Cultura, no dia 20 de março de 2019
6 Secretaria de Fomento à Cultura; Secretaria de Difusão e Infraestrutura Cultural e Secretaria de Direitos Autorais.
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