Foi engraçado como Celeste o acordou
nesse dia. Nunca ela fizera antes tal molecagem, esperou ele virar de barriga
para cima, dormindo, e encheu seu rosto de penas de galinha. Resquício da
vítima da canja magra que sua mãe produzira no almoço do dia anterior. Acordou
aos espirros, assustado procurando se desembaraçar das penas. As gargalhadas da
irmã chamaram as outras duas meninas para que entrassem no quarto e pulassem em
cima dele ainda todo coberto.
Realmente foi engraçado. O jovem
João colheu aos poucos um sorriso sem-graça enquanto segurava as duas irmãs nos
braços. Olhou para Celeste como se agradecesse. Um sorriso verdadeiro pela
manhã é sempre bom.
- Qualquer hora eu não vou conseguir segurar
mais vocês duas! - Disse João segurando Celina e Paixão, uma com cada
braço.
- Aguenta sim! - Respondeu Celeste sentada a sua cama ainda se recompondo das
gargalhadas.
O garoto então, com
orgulho, levantou as duas o mais alto que pôde. As meninas se divertiram quando
conseguiram tocar o madeirame exposto que sustentava o telhado da casa. Celina tinha dez anos e Maria da Paixão oito. Mesmo não
estando acima do peso, não eram leves, puxaram ao pai principalmente na altura.
Não eram tampouco pequenas. Celeste olhou admirada até perder-se e abrir a boca
sem perceber. João perguntou:
- Cadê o pai, Cel?
- E eu sei?... Respondeu-lhe com uma leve ironia.
João percebia já do alto de
seus quase dezoito anos que a adolescente Celeste tinha uma imagem construída
do pai a partir da distância que sempre existiu entre eles. Talvez por isso
João tenha sentido a irmã nos últimos tempos mais doce, mais brincalhona, mais
carente de atenção. Uma transferência de expectativas a menina poderia estar
fazendo da imagem do pai ausente, para o quase-adulto irmão. Mesmo diante do claustro que vivia João em
relação a cidade, dentro daquela casa ele era a alternativa na referência
masculina para as irmãs.
João desceu as duas
dos braços e as viu partir para o corredor. A sós com Celeste procurou
contemporizar:
-
Cel, o pai deve estar cheio de serviço. Para de implicância.
-
Quando ele tá de serviço ele tá fora de casa. Quando ele tá aqui, ele só bebe e
briga com a gente.- desabafou
a menina.
-
Vocês todas pegam muito no pé dele. Tem dar um desconto, pô. Imagina você
trabalhar viajando o tempo todo, cheio de responsabilidade lá no batalhão que
ele fica? Tem que chegar em casa e descansar um pouco. Ele tem direito. A mãe
regula muito a vida dele. Deixa ele lá! - Exaltou-se um pouco João enquanto ajeitava sua própria
roupa de cama.
A menina
de braços cruzados apenas olhava.
-
Você também quase não fica em casa...
João
cresceu estudando fora da cidade. A mãe com medo de matriculá-lo nas
vizinhanças do bar, por conta da perseguição do povo, inscrevia-o sempre na
cidade vizinha. Mais de vinte quilômetros de ida e mais de vinte para voltar
para casa. Não era todo mundo que gostava de dar carona, pra falar a verdade
quase ninguém, por isso na maioria das vezes fazia o percurso a pé. Transporte
público ainda era artigo de luxo no interior. Nessa toada o garoto saia de
manhã e chegava quase sempre de tardinha. Na mesma toada quase não passava de
ano na escola. Aos finais de semana João enfurnava-se em casa. Assim foram os
dias em sua infância e adolescência. O episódio da perda dos primos, netos
conhecidos que eram da finada Yolanda, o isolou ainda mais de tudo e de todos.
Dessa forma pode-se dizer que ele não se misturou a própria cidade, os
vizinhos, etc. Embora os vizinhos o conhecessem muito bem, ou pelo menos
achavam que o conheciam. Celeste continuou:
-
Você que tinha que ser o pai da gente, João...
O garoto
levantou-se de sua cama e sentou-se ao lado da irmã:
-
Você não ia gostar de ter um pai que nem eu. - brincou João esfregando os olhos ainda sob efeito
do sono.
- Mas
pelo menos quando você está aqui você fica com a gente. - disse a menina descruzando os braços.
- Mas
eu só tenho isso pra fazer... - confidenciou o garoto enquanto esticava os braços
espreguiçando-se.
A menina
então rapidamente abraçou o irmão pela cintura e encaixou a cabeça em seu peito
quase pegando-o no susto:
-
Tive o sonho horrível hoje... - murmurou bem baixinho, Celeste.
O rapaz
sorriu.
João
largou o peso dos braços sobre o corpo leve da irmã e pareceu querer sufocá-la
com um abraço. Disse:
- Então
é isso, né? Por isso que você está toda manhosa assim! Já não basta os meus
pesadelos, você tem que ter os seus agora é?!
A menina
deixou-se apertar. E não procurou se desvencilhar. Ambos permaneceram assim
alguns segundos. E aquele foi o último abraço que João recebera da irmã.
O dia corria
naturalmente com seu calor de fim de tarde e o pouco movimento de costume. Para
um fim de semana os pés descalços que sortidamente riscavam a rua empoeirada
davam impressão ao que poderia ser um quadro, estático que pareciam aqueles
transeuntes em suas modorrentas rotinas. A casa sempre escura escondia vultos
aqui e ali, e o silêncio era prova viva de que “não se podia conversar para
não espantar os fantasmas”. Esse era mais um bordão de finada Yolanda,
quando questionada pelo silêncio da casa. Bordão esse adotado por qualquer uma
das filhas em situações similares.
“Até
que enfim uma missão!”. Pensou o garoto quando viu Margarete romper a sala com uma pequena
lista para comprar. Pondo-se de pé diante de Margarete, João parecia um titã a
frente de uma jovem senhorinha:
- Vai
até a Fazendinha pra mim e compra isso aqui lá naquela mercearia do lado da
Casa de Macumba! Lá no Inácio! É bastante coisa, vai de bicicleta! Não esquece
a notinha de fiado, que eu tenho que bater com as minhas contas aqui!! - intimou a voz forte de Margarete.
Esse
tipo de ordem deveria sempre ser dada às costas de Mariana, uma vez que a cada
saída de seu filho de casa, sua mãe ficava extremamente nervosa. João, já
irrequieto com o passar do tempo lodoso daqueles idos, apenas procurou
constatar:
- A
senhora falou com a mãe?
- Já
sim, por que?
- Por
nada...
- Vai
logo garoto!! - gritou
erguendo os braços obesos, Margarete.
João
andando rápido pegou a bicicleta do padrasto. Velha, mas útil. E chegou a
conclusão que levaria a tarde toda para trazer tudo, uma vez que a mercearia do
Inácio ficava a pelo menos meia hora de bicicleta depois de sua escola! E lá
foi o gigante saindo do quintal com a bicicletinha abrindo espaço na poeira da
rua. Olhou pra trás e viu sua tia Mirtes varrendo a porta do bar. Um cão
sarnento começou a latir perseguindo-o, e tratou de pedalar mais forte. O que
não era uma dificuldade pra ele, logicamente. Após um arranque vigoroso, ficou
de pé sobre os pedais e logo pôde sentir o vento da rua bater no rosto negro e
amenizar o calor daquelas bandas.
Passou
por algumas casas e o que era de costume se repetiu. Alguns olhares, alguns
comentários. Cumprimentos nem pensar! Salvo alguns bêbados, mas isso não contava
pra ele. O filho do capeta então riscava a cidade de bicicleta cuidando-se
apenas de não atropelar ninguém. João se lembrou: “Imagina se soubessem que
estou indo a mercearia do lado da casa de Macumba!”. E se ouviu rir
enquanto pedalava.
Sofrera
tanto na vida com aquela rejeição toda que agora se ocupava de fazer piadas.
Quebrava-se então um sentimento de autopiedade. A ironia é certamente uma das
saídas mais inteligentes de um ser humano para lidar com uma condição
desproporcionalmente inferior. João estava começando a perceber isso. Só não
poderia saber, até pela pouca idade, que sua conseqüência direta é um
descomprometimento ácido. Uma atitude blasé que resseca o coração aos
poucos.
O calor
distorcia imagens distantes, mas começou a reconhecer que a pessoa que vinha
andando no meio da estrava em sua direção era seu padrasto. Freou com os pés
cascudos no chão a bicicleta e parou diante de Bento:
-
Quer que eu te dê uma carona até em casa rapidinho? Depois eu volto! - ofereceu João.
- Que
carona, o quê!! - respondeu
rispidamente Bento que seguiu rumo trocando as pernas.
“Êêêêêê...
Manguaça desgraçada!” pensou João. Observou por mais alguns segundos o caminhar sinuoso daquele
senhor envelhecido pela bebida. E era início de tarde, ainda! A barriga de
chopp já saltava a blusa daquele velho oficial. O cabelo outrora irretocável
confundia-se com uma barba igualmente grisalha e mal aparada. “Deixa minha
mãe ver isso!? A casa vai cair!”, pensou alto o rapaz enquanto retomava
impulso para continuar a pedalada.
E seguiu.
No
distrito da Fazendinha, na cidade ao lado, João não viu a tarde passar. Fez
criteriosamente o que sua tia determinou e ainda pechinchou pra cartelinha do
fiado. Sabia como era a tia, e passar a tarde lá não era lá de todo ruim.
Exercitava um pouco sua capacidade de se comunicar. Não tinha consciência disso
é óbvio, mas matava uma espécie de sede íntima. Interagir com outros de igual
para igual não era uma constante em sua cidade. Por isso aproveitava o quanto
podia. Até porque volta e meia reconhecia nos olhares que sua história vinha a
tona em alguns comentários à boca miúda. “Não dá muito pra arriscar um
desconto”, pensava jocosamente o moleque quando percebia um tipo de olhar
“familiar”.
Voltou
pra estrada um pouco antes de escurecer com dois pares de sacolas cheias de
mercadorias e presas com dois cabos de madeira. Colocou-as sobre os ombros, um
par em cada.
À
noitinha despontou na estrada que dava em sua casa e ouviu o barulho dos grilos
anunciando sua chegada. Faltando metros pra o bar fechado viu um pequeno
amontoado de gente a sua porta. Saltou da bicicleta e viu o grupo se dissipar.
Entrou e deu de cara com Mirtes na porta dos fundos.
-
Cadê as compras? Olha vai falar com sua mãe, Bento e ela estão se pegando lá em
cima... - disse
Mirtes olhando para as sacolas em suas mãos..
-
Ahhh! Sei o que foi, quando tava saindo vi o pai bêbado chegando...
resignado disse João, entregando uma sacola de cada vez.
- Não
é só isso, não. Eles estão se pegando feio. Você saiu sem avisar a sua mãe!
Margarete já tentou mas não conseguiu nem entrar no quarto. Todo mundo que
passa, pára e pergunta o que é que tá acontecendo...
Só
depois disso que prestando mais atenção passou a ouvir os gritos. Olhou para o
segundo andar, na parte dos quartos da antiga pensão, viu apenas a luz acesa
ensaiando apagar. Lembrou de um detalhe:
- Ué,
mais eu avisei! Quer dizer, a tia Margarete avisou! - elevou a voz João.
Mirtes
deu de ombros e entrou na cozinha carregando o peso. “A mãe também não dá
trégua...” pensou alto João dando a volta pelo quintal para pegar a
escadaria e subir até os quartos do segundo andar.
Após os
passos longos, na parte sem iluminação do quintal pisou o primeiro degrau e
reconheceu a irmã Celeste de cabeça baixa. Olhou novamente e reconheceu-a com
mais nitidez. A irmã levantou a cabeça.
A luz da lua, brilhante no céu limpo iluminou seu rosto. Ela havia
chorado, saberia reconhecer até no escuro quando sua irmã chorava. Olhando pra
ele, ela disse:
- O
pai me bateu...
João fez
um muxoxo. Passou a mão cascuda no rosto da irmã e não viu machucado. Perguntou
pra menina:
- O
que você fez, Cel?
A garota
ficou indignada. Levantou-se. Sobre os degraus ficou a altura dos olhos do
irmão. Ensaiou um choro novamente, descrente do que havia ouvido, e vociferou
para ele:
- O
que eu fiz, João??? Não fiz nada!!!!!!!!!
Passou
feroz trombando-lhe e correu para a portinhola da rua. Já iluminada pela luz da
entrada da casa olhou para trás e viu João parado taciturno. A garota gritou:
- Ele
bateu na mãe, também!!!
Saiu
pela rua e sumiu. João balançou a cabeça negativamente e retomou a escada.
Subiu alguns degraus e parou. Ouviu a mãe gritar. Era uma discussão feia. O
padrasto também falava alto. Pensou... Retornou. Desceu a escadaria e entrou
pela cozinha onde Mirtes ainda guardava as compras, ouviu da tia:
- Foi
ver sua mãe?
João
meio desatento com a informação da irmã respondeu baixo: “Não...”. Bento
e Mariana brigavam constantemente, e várias vezes sob efeito da bebida o pai se
exaltava. Nunca vira o pai bater na mãe. Mas tinha consciência de que isso
acontecia. O pai sempre foi muito duro com as mulheres da casa. Perguntou:
- Ele
bateu na mãe, tia? -
perguntou ainda meio descrente.
Antes de
ouvir a resposta, entra Margarete. Pisando forte como se marchasse abriu a
despensa atrás de alguma coisa. João interpelou-a:
-
Você não avisou pra mãe, tia? Eles estão brigando por causa disso? Não
acredito.
- Não
sei, garoto! Achei que tivesse avisado!! Eles começaram a brigar porque seu pai
te deixou ir sozinho. Depois porque ele tá bêbado. Depois não sei mais o quê...
E tá assim pra mais de uma hora.. Desisti de fazer eles pararem...
Nesse
instante ouviu o choro alto de sua mãe. Ela gritara coisas que não entendeu
bem. Não conseguiu decifrar. As agressões se intensificaram. O garoto respirou
fundo. As meninas Celina e Paixão entraram na cozinha, quietas permaneceram,
sentaram-se à mesa. Não sorriram. João percebeu o clima ainda mais pesado da
casa. Levantou. Ficou inquieto. O pranto de sua mãe estava o incomodando.
Perguntou novamente a tia:
- Ele
bateu na mãe tia?
A tia
respondeu sem piedade:
-
Sim. Na frente de todas nós. Sobrou até pra Celeste.
- O
que a Celeste fez? -
perguntou com os olhos arregalados, João.
Dessa
vez a resposta veio de Margarete:
- Não
fez nada, João. Apenas olhou pra ele quando ele esmurrou sua mãe. Olhou com
aquela cara que a Celeste faz quando não
gosta de alguma coisa. Tomou um tapa na cara de estalar.
João olhou para todas
as mulheres. As únicas que retornaram o olhar eram as irmãs. Celina e Paixão
olhavam com um ar de expectativa incomum. João andou de um lado para o outro.
As tias mexiam nas compras. João se sentou. O garoto ainda tentou tergiversar:
-
Vocês vão ver... Vai passar, eles sempre se resolvem depois... - e trançou os dedos sobre a mesa.
Um grito
de horror tomou conta da cozinha. Era Mariana que chorava desesperadamente. Aos
gritos ela pedia que Bento parasse. Um silêncio sepulcral se pôs a mesa logo
depois. Cada um fazendo alguma coisa. Celina apoiou o queixo na madeira em tristeza.
Paixão olhou com os olhos grandes para João. Ele se perdeu nos olhos negros da
irmã. Seu olhar já não era o mesmo. A menina aos poucos teve seus lindos olhos
ressumados.
Sua tia
sem olhar para ninguém, atenta aos legumes na pia, disparou com a frieza de um
caçador:
-
Essas horas é que faz falta um homem na casa...
Sentiu o
golpe da tia profundamente.
João
levantou-se, após. Girou em silêncio em direção ao corredor interno da casa e
subiu as escadas para chegar ao segundo andar. Bem devagar João andou em
direção aos gritos. Eles ficaram insustentáveis aos seus ouvidos. Pensava em
entrar no quarto e pedir que se acalmassem e pronto: Sair. Sabia que nunca
gozara de crédito, muito menos de autoridade frente aos pais, mas aquilo não
podia continuar daquele jeito. Parou diante do quarto girou a tramela que
segurava a porta e esperou alguns segundos para entrar. A luz escassa ameaçava
apagar. Alguns instantes de silêncio o esperavam no quarto. João entrou.
Preferiu
mais tarde nunca ter entrado naquele quarto.
Sua mãe
estava de joelhos com o rosto coberto de sangue. Era segura pelos cabelos por
Bento que completamente desfigurado de raiva cerrava o outro punho a ponto de
tremê-lo. Com os olhos de ódio Bento fitou João atrás da porta entreaberta e
antes que ele pudesse falar qualquer coisa, atacou:
- Sai
daqui agora e fecha porta!
João com
o coração disparado olhou para a mãe totalmente indefesa e a viu ainda balançar
seu rosto fremente corroborando o intuito do pai. Ele nunca havia visto a mãe
daquele jeito. Suas mãos estavam inquietas. Olhou novamente o padrasto e saiu,
fechando a porta lentamente. Virou as costas e foi andando devagar pela sacada
do segundo andar. Do corredor olhou para baixo e no portão entreaberto lembrou
da irmã e do que ela disse. Pois bem. Ele precisava acalmar Bento. O padrasto
talvez estivesse precisando mais dele naquela hora do que em qualquer outro
momento. Era necessário agir até para que pudesse mostrar que era útil e que
Bento poderia contar com ele. Lembrou de si mesmo perdido na floresta envolto
de corpos destrinchados e como o abraço do padrasto o acalmou. Confiava
plenamente nele. Precisava mostra-lo que era confiável também. Isso seria útil
até para que a mãe não o zelasse tanto, e para isso exigisse igualmente de
Bento.
O garoto
parou e deu a volta. Retomou o rumo dos gritos. Dessa vez, sem pensar muito,
entrou e fechou a porta por trás de si.
Bento
segurava a mãe pelo pescoço parecendo sufocá-la contra a parede. O cheiro de
álcool no quarto era absurdamente forte. Ela o viu entrar, o marido não. Quando
viu que os olhos da mulher se viraram para a porta. Bento gritou:
- Já
falei pra sair, desgraçado!!
João
novamente com as mãos trêmulas argumentou:
-
Pai, fica calmo. A mãe vai se acalmar também. As meninas estão assustadas lá
embaixo.
Bento
arremessou a mulher em direção a cama. Ela cai de mau jeito e continuou um
choro sem fazer barulho. Bento ajeitou as calças e com a camisa aberta olhou
fulminante para o garoto.
João
pôde ver que um grande corte na testa de sua mãe vazava. As mãos de Bento
tinham sangue também. João continuou:
-
Pai, vamos descer, eu estou bem... A mãe precisa descansar também. Vamos
descer.
Não foi
o suficiente.
Um tapa
desproporcional explodiu no rosto de João fazendo-o levar a mão rapidamente em
direção ao rosto. O garoto apoiou a outra mão na maçaneta da porta atrás de si.
Bento berrou:
-
Macaco fedido!! Quando eu mandei você sair era pra você sair!!!
João
olhou pra mãe. Nunca seu pai havia lhe encostado a mão. A predileção por João
era algo que nunca fora questionada por ele, mesmo intimamente. Aquela mão que
acertou-lhe o rosto com violência era a mesma que segurava a sua na rua quando
ainda era muito pequeno. Era a mesma que o defendia do mundo fora daquela casa.
Junto ao pai nunca sentiu vergonha dos olhares venenosos.
Sua mãe
conteve o choro por alguns momentos e suplicou antecipando-se:
-
Filho, pode sair! Vai ficar tudo bem!
João
ajoelhou-se com uma das pernas. Não conseguia crer no que aconteceu. Um aperto
no peito roubou-lhe algumas lágrimas. Precisava ser forte. E ser forte naquele
momento para ele era insistir no bom senso do pai. Com o queixo estremecido
João pediu calmamente sem levantar os olhos para o padrasto:
-
Pai, por favor, desculpa eu estar aqui. Mas a tia me pediu pra vir aqui pra
vocês pararem de brigar. - e continuou com a voz embargada - As meninas estão com muito medo, e
já tem gente juntando na rua pra ver, vocês estão brigando há muito tempo.
Bento,
tomado de ira, gargalhou inexplicavelmente. Gritou pra Mariana:
- Tá
vendo Mariana, o que você fez com esse bosta. Até pra agir feito homem ele se
borra todo!!! Quem tinha que tá levando essa surra Mariana é esse merda aqui!
Pra aprender a ser homem!
João
parou de tremer. Os olhos marejados secaram.
Um
arrepio infernal correu toda a sua nuca quando a luz do quarto piscou duas
vezes.
Mariana
se desesperou e gritou:
- Sai
daqui João!!! Por favor!!! Não escuta o Bento, ele tá bêbado!
O garoto
inerte pareceu desligado por alguns segundos.
Bento
virou-se para a cama e tirou o cinto. Dobrou em forma de chicote e foi em
direção a mulher. “Você não respeita nem o que eu já fiz por você, sua vadia!!!”
foi o que ele disse antes de erguer o braço para desferir uma chicotada na
altura do rosto da mulher.
Ele não
conseguiu.
Seguro
pelo punho por uma força descomunal, Bento olhou para trás e viu seu enteado
como uma sombra de olhos fechados e semblante duro. Mariana reiniciou o choro e
tentou a despeito de suas dores, sobre a cama, esticar o braço para tocar no
filho. Não conseguiu.
Numa
atitude de defesa Bento tentou soltar-se de João, inocentemente. O garoto ainda de olhos fechados trouxe o
corpo de Bento para perto de si. Centímetros separavam o rosto dos dois. “Me
larga, João!”. O grito do pai não surtiu efeito. Ele insistiu:
-
Olha pra mim, João! Estou mandando você me largar! - disse Bento sem o tom imperativo
de antes.
João
permaneceu segurando o punho de Bento junto ao peito e de olhos fechados a
frente dele. O garoto parecia um touro
ofegante. Mariana apenas chorava. Bento recuperando a sanidade falou:
-
João, meu filho, olha pra mim... - disse Bento com insegurança.
E João
abriu os olhos.
O que
Bento viu foi um ser irreconhecível a sua frente com os olhos totalmente
esbranquiçados. Não teve tempo sequer de gritar.
Com o
outro braço João segurou o pescoço de Bento e arremessou seu corpo como um
boneco velho em direção a parede. Os gritos de Mariana só serviram para
amedrontar Bento que mesmo com o choque se levantou ainda tonto e tentou
proteger o rosto. João desferiu impiedosamente um chute na altura do queixo do
padrasto que o fez cair sem vestígio algum de dentes na boca. O sangue de Bento
passou a se misturar com as manchas de sangue de Mariana no local. Com o velho
padrasto caído, João iniciou uma seqüência de chutes letais na altura das costelas. O homem passou
a urrar como um porco a beira do abate. Sem forças algumas para se levantar
passou apenas a defender o rosto dos chutes e clamar por piedade.
João não
ouvia nada.
Os
gritos alarmantes de Mariana chamaram a atenção do resto da família que subiu
rapidamente a escadaria em direção ao quarto. Quando estavam a iminência de
abrir a porta João puxou uma das camas e travou a entrada. O espetáculo
dantesco agora dependia apenas de João para acabar. Bento nesses poucos
segundos ameaçou se arrastar para longe do enteado, mas foi impedido quando
João o ergueu pelos cabelos. O olhar do velho era de pânico.
João já
conhecia e se alimentava vorazmente do cheiro do medo.
O rosto
de Bento foi arremessado três vezes pela nuca contra a quina da penteadeira
velha, que remontava a época da infância de Yolanda naquela casa. O rosto da
vítima já tomava formas irregulares cercando apenas um par de olhos encharcados
de desespero. Os murros na porta dados por suas tias apenas geravam um trilha
sonora horrenda para o estava acontecendo. João jogou o corpo do padrasto, após
os golpes, no chão. A luz do quarto tremelicava e ameaçava apagar. Sentado com
a cabeça para trás, apoiada na cama, Bento espumava e emitia sons guturais
erguendo os braços insustentáveis. As feições humanas de ambos se desfaziam, por
motivos diferentes, eu diria opostos. João pisou o peito do velho e com os
dedos grossos da mão segurou a base da cabeça da vítima em posição para
arrancá-la. Os dedos forçavam a entrada na garganta de Bento. Os olhos do
oficial ameaçavam saltar. Vendo o que estava acontecendo, Mariana, começou a
gritar pelo nome de João, e se arrastou na cama até tocar seu braço rígido, sob
os gritos mortais de Bento.
-
Filho... Olha pra mim. Por favor não estraga a sua vida. Não se transforma
nisso por favor...
João
olhou para a mãe, e disse com uma voz bestial:
- Eu
não disse que ele era meu...
A luz se
apagou.
Na rua a
casa já era cercada por pessoas instadas pelos vizinhos a praticamente
invadi-la. Os gritos de horror de Bento jamais foram ouvidos naquelas bandas.
Mulheres chorando imaginavam que o pior
estivesse acontecendo naquela casa marcada pelo sofrimento, mas talvez não
esperassem por isso. Homens já forçavam a porta do quarto onde os gritos de
Bento provinham, contudo há alguns minutos um silêncio desalinhou os ânimos.
-
Vamos ter que arrombar!! - gritou para alguns homens o velho Sebastião amigo da família, observado
pelas mulheres da casa.
Apenas
nessas situações que a pensão fechada ou o bar estiveram tão cheios. Uma ironia
triste. Os arroubos intermitentes na porta de madeira logo a fizeram cair
desvelando a realidade mais triste que aquela casa já havia presenciado.
Um verme
bravio eclodiu o seu hospedeiro e deixara para trás uma carcaça velha e fedida.
A janela aberta, escancarada sendo cuidada por uma mulher em estado de choque
sobre a cama. Nenhum homem teve coragem de entrar, e logo as crianças foram
encaminhadas para o andar de baixo da casa.
As primas de Mariana tampouco a ofereceram colo, uma vez que o que
estava dentro do aposento, além de assustador, transformou a história de todas
elas.
Alguns
restos mortais estavam espalhados por todo o quarto, como que dispostos em uma
oferenda. O oficial Bento estava morto e irreconhecível, em pedaços, espalhados
pelo quarto. As paredes sem tintas dos quartos estavam assinaladas fortemente
com sangue e surdas permaneceram diante da barbárie. Mariana olha
hipnoticamente para a janela aberta por onde viu seu filho sair. A mesma janela
que quase dezoito anos antes ela rompera grávida para tentar fugir de sua sina.
Neste dia a sina de João fugiu ao controle de Mariana.
O
barranco logo depois, e a trilha pelo mato em direção a rua, agora tinham as
pegadas monstruosas de um menino.
O
cenário em muito lembrava o da pedra do Gavião, no episódio da morte dos gêmeos
Esaú e Jacó. Onde alguns homens que lá estavam acompanhando Bento, hoje estão
diante de seus restos. Manifestações de indignação, se misturaram com o medo e
nada mais assegurava a vida em paz dentro daquela casa. O que era precário, se
desfez totalmente.
Ainda
perto dali um gigante na noite corria, mas de medo.
***
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