O discurso de Mano Brown foi muito mal interpretado, principalmente pelos setores médios do progressismo. Mas o intelectual orgânico, forjado nas ruas do Capão Redondo, estava apenas alertando para como a barbárie havia se instaurado nas relações e no cotidiano das periferias e o quanto a falta de presença e de construção coletiva estava cegando a nossa defesa por princípios democráticos.
Por Juliana Borges.
“Nós representamos forças poderosas de
mudança que estão determinadas a impedir as culturas moribundas do
racismo e do hetero-patriarcado de levantar-se novamente. Nós
reconhecemos que somos agentes coletivos da história e que a história
não pode ser apagada como páginas da Internet. Sabemos que esta tarde
nos reunimos em terras indígenas e seguimos a liderança dos povos
originários que, apesar da massiva violência genocida, nunca renunciaram
a luta pela terra, pela água, pela cultura e pelo seu povo.”
Angela Davis, em discurso histórico na Marcha das Mulheres contra Trump, jan. 2017.
Leia a tradução completa aqui.
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Passado o processo eleitoral, é natural
que sejam realizadas muitas reflexões e análises acerca dos resultados, e
que surjam muitas propostas organizativas. Mas já inicio este texto
sendo escura: confesso que não pretendo apresentar análises fechadas ou
finais, cheias de verdades. Eu prefiro apresentar este primeiro texto
com as reflexões iniciais que tenho feito e trazendo algumas provocações
ao debate que, espero, continuemos na próxima coluna.
Enquanto
alguns, infelizmente, já vociferam contra pobres que votaram no
autoritarismo, alguns outros buscam culpados como se caçam bruxas.
Outros tantos falam do “identitarismo” e buscam refundar uma perdida
proposta universalista. Se há algo que os primeiros dados apresentam é
que estas eleições apresentam profundamente a divisão de classes e as
hierarquias raciais em nosso país.
Segundo levantamento realizado pelo jornal Valor Econômico, já após o resultado do 1o
turno, o presidente eleito não teve bons resultados em regiões de
extrema violência. Os dados foram cruzados entre a votação e o Mapa da
Violência. Quanto menos violento o município, maior o resultado obtido
por Jair Bolsonaro. Dados levantados após o final do 2o turno pelo El País,
cruzados com dados do IBGE, apontam que o presidente eleito obteve
resultados mais expressivos nas cidades mais ricas e mais brancas do
país, alcançando 75% dos votos em municípios com renda média ou alta e
não alcançando nem 25% em muitas localidades pobres. Além disso, venceu
nas 10 cidades mais ricas do país. Mas o levantamento não apresenta um
cruzamento de dados apenas econômico. Quando o cruzamento contempla
raça, essa diferença também fica evidente. Jair Bolsonaro venceu em 85%
dos municípios de maioria branca, enquanto Fernando Haddad venceu em 75%
dos municípios de maioria não branca. Mesmo em municípios nos quais a
renda era relativamente equilibrada entre brancos e não brancos, o
candidato do PT obteve vantagem entre pessoas de cor e o presidente
eleito obteve melhor resultado entre brancos. Ainda segundo o
levantamento, mesmo quando observamos os dados cruzados em regiões como
Sudeste e Centro-Oeste, nas quais o presidente eleito obteve maioria dos
votos, o apoio também crescia conforme a renda e a predominâmcia da cor
branca nos municípios. Ainda que o tempo seja recente, apresento
algumas reflexões sobre esses dados.
Em relação às cidades mais violentas,
fica evidente que o discurso de mais armas e enfrentamento violento,
mantendo o formato de guerra contra um inimigo interno, proferido pelo
presidente eleito não encontrou eco nessas localidades. É certo que as
pessoas que vivem cotidianamente os efeitos da violência e da guerra
contra “as drogas” já compreendem que as fórmulas de intensificação do
enfrentamento violento e, podemos já dizer, bélico não têm garantido a
reversão do estado de violência em que vivem. Mas é justamente nas
cidades em que os números apontam queda dos homicídios, as cidades mais
ricas e brancas, que esse discurso de violência para conter violência
mais teve ressonância.
O Brasil tem a violência como elemento estruturante da sociedade. Vivemos sob mitos de pacificação e harmonia social e racial.
O discurso do medo, sempre alimentado pelo Estado, encontra na
sociedade apoio e incentivo para se intensificar a repressão e a
contenção por qualquer meio necessário (historicamente, no Brasil,
através da violência, do encarceramento e do extermínio). Neste sentido,
o medo do desemprego, o medo das mudanças, o medo da diversidade, o
medo de que essa violência, ainda vista como algo de “lá” e “de longe”
alimenta uma postura de preservação. Em um Estado em que a precariedade é
sistêmica, essa autopreservação se constitui e se ancora na barbárie.
Se o pensamento abriga a concepção de que os outros são bárbaros, então a
barbárie é o que deverá contê-los. E, assim, discursos extremistas e
autoritários ganham força.
Os dados de classe e raça, a meu ver,
corroboram o que mulheres negras têm formulado e dito há anos: a
interseccionalidade é conceito e método fundamental se de fato queremos
enfrentar os desafios históricos e atuais das desigualdades. A que serve
para a esquerda seguir tentando apagar diversidade, negar que as
desigualdades em um país de passado escravocrata e colonialista, passam
sim pelas hierarquias raciais? Contudo, se mesmo entre parcelas desse
eleitorado de cor, o discurso extremo teve eco, é preciso analisar as
precariedades às quais essa população é submetida.
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu,
a precariedade, sob as mudanças sistêmicas do capitalismo, se expande
para todas as partes. Seu livro Contrafogos 1: táticas para enfrentar a invasão neoliberal
traz um capítulo exatamente com o título “A precariedade está por toda
parte”. Nele, o autor conceitua a precariedade como algo que
desestrutura a existência e degrada toda a relação dos indivíduos com o
mundo “e, como consequência, com o tempo e o espaço”. Ou seja, um
cenário que mais do que gerar exércitos de reserva, aprofunda o
extermínio, cada vez mais racionalizado, de corpos, em que menores
qualificações são aprofundadas e expandidas, em que a alienação – se
quisermos usar conceitos marxistas – se hiperpotencializa, em que se
fortalece a ideia de trabalho como privilégio e que, portanto, esse
sujeito está constantemente ameaçado. E esse cenário aponta um
inconsciente coletivo articulado à hiperindividualização neoliberal,
trazendo como consequência a perda de sentido comunitário, coletivo e a
dissolução dos laços de solidariedade. Daí, então, novamente,
apresenta-se a barbárie se não houver qualquer ação e trabalho
contra-hegemônicos que alcancem fundamentalmente esses setores.
Não citei Mano Brown à toa no título
desta coluna. Tampouco, na epígrafe, o discurso histórico de Angela
Davis na Marcha das Mulheres contra Trump, em janeiro de 2017, quando da
posse do presidente estadunidense.
O discurso de Mano Brown no ato em defesa
da Democracia e dos Direitos, que se personificava na figura do então
candidato Fernando Haddad foi muito mal interpretado, principalmente
pelos setores médios do progressismo. Mas o intelectual orgânico,
forjado nas ruas do Capão Redondo, estava apenas alertando para como a
barbárie havia se instaurado nas relações e cotidiano das periferias e o
quanto a falta de presença e de construção coletiva (portanto não
enxergando indivíduos periféricos apenas como objetos de estudo ou que
deveriam receber “a consciência” das universidades) estava cegando a
nossa defesa por princípios democráticos. Apesar de recente pesquisa
dizendo que a maioria dos brasileiros defende a democracia como modelo
político, não foi possível saber na mesma pesquisa o que cada um destes
brasileiros entende por democracia – um conceito, afinal, tão elástico e
que passou por tantas mudanças na história.
Já o discurso de Angela Davis (a tradução completa está aqui), a meu ver, aponta que mais do que ficarmos numa falsa discussão acusatória entre “identitários” versus
“universais”, é preciso compreender que conviver e defender a
diversidade não é uma escolha, mas algo que está posto. As conquistas
até aqui e as percepções das populações negras, indígenas e pobres sobre
si não podem mais ser negligenciadas. É preciso construir com esses
atores e atrizes sociais que já estão em movimentação em muitas favelas,
comunidades, bairros, periferias e quebradas do país. Sem qualquer
pretensão de levar algum ensinamento, mas com a abertura de que é
possível ensinar e, principalmente, aprender com povos e populações que
vêm resistindo historicamente, com diversas estratégias de
sobrevivência, a um Estado que sempre se apresentou autoritário e
violento em seus territórios e vidas.
Se estes dados cruzados apontam algo é
que, a meu ver, é preciso muito mais periferias em nossas reflexões. É
preciso muito mais as realidades e construções de coletivos e ativistas –
ameaçados de extermínio pelo presidente eleito, diga-se de passagem –
tanto em nossas formulações, mas também em nosso modo de fazer político.
Nas eleições das fake news das redes sociais, o alerta de Angela Davis cai como luva: Nós reconhecemos que somos agentes coletivos da história e que a história não pode ser apagada como páginas da Internet. E, ao meu ver, para isso precisamos desbrancalizar nossa atuação. Precisamos de mais Mano Brown.
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Boitempo nas eleições //
Na nossa cobertura das eleições 2018 realizamos uma série de ações que
buscam contribuir com a reflexão coletiva durante o período, entre as
quais a publicação de textos inédito no Blog da Boitempo, vídeos na TV
Boitempo e um serviço gratuito de indicações de leituras pelo WhatsApp,
com curadoria da equipe editorial. Reflexões de Luis Felipe Miguel,
Boaventura de Sousa Santos, Vladimir Safatle, Flávia Biroli, Esther
Solano, Ricardo Antunes, Mauro Iasi, Christian Dunker, Rosane Borges,
Mouzar Benedito, Dênis de Moraes, Flávio Aguiar, Felipe Brito, entre
outros. Clique aqui para conferir.
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Juliana Borges
é escritora, estuda Sociologia e Política e pesquisa em Antropologia. É
autora de “O que é encarceramento em massa?”, da coleção Feminismos
Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro (Justificando/Letramento).
Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quintas.
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