Em 2011
este “Cinegnose” teve uma sombria antevisão: “o retrofascimo brasileiro
só está à espera de uma tradução política para conquistar, mais uma vez,
o Estado”, afirmava este humilde blogueiro. E este momento chegou! Só
que dessa vez como farsa, diferente da tragédia do fascismo clássico do
século XX. Conceito criado pelo pesquisador em Cultura e Tecnologia,
Arthur Kroker, “retrofascismo” representa o mix dos motivos que fizeram
surgiu o fascismo histórico com a hipertecnologia do século XXI. É
necessário entender as nuances entre o fascismo do passado e o atual,
como mais um lance no xadrez geopolítico da Guerra Híbrida brasileira:
assim como no passado, o retrofascismo utiliza a matéria-prima psíquica
da personalidade autoritária, mas dessa vez como estratégia de dissuasão
midiática (e, por isso, como farsa) – criação da agenda da polarização
em torna das questões identitárias, culturais e de costumes para
esconder um programa de governo ruim de voto. Porém, produziu três
efeitos residuais: o efeito “Uma Noite de Crime”; o efeito “A Ficha
Caiu!”; e o efeito “Apertem os Cintos, a Grande Mídia sumiu!”.
Em 2011 este Cinegnose concluía o artigo “Retrofascismo e a Bomba Tecnológica” (clique aqui)
com um sombrio prognóstico: “Pior que as práticas isoladas de
intolerância e preconceito é a preocupação de que o retrofascismo está à
espera de uma tradução política para conquistar, mais uma vez, o
Estado”... E sete anos depois esse momento chegou!
Naquela
oportunidade, ocorriam pelo País, aqui e ali, episódios de racismo e
intolerância: após as últimas eleições presidenciais em 2010 com a
vitória de Dilma Roussef, redes sociais eram invadidas por mensagens
incitando ódio aos nordestinos; vinte ciclistas tinham sido atropelados
intencionalmente numa mobilização do grupo Massa Crítica em Porto
Alegre; o grupo começou a receber ameaças anônimas elogiando o motorista
e incentivavam novos ataques a ciclistas; começavam a se tornar
recorrentes agressões a homossexuais na região da Avenida Paulista, São
Paulo; crescimentos dos casos de bullying digital nas escolas com a criação de perfis falsos nas redes sociais para difamar pessoas.
Na
oportunidade este humilde blogueiro apontava para um ponto em comum em
todos esses casos: o novo fenômeno do Retrofascismo – o fascismo, que
supostamente jamais voltaria a acontecer, retornaria como farsa, como
forma latente de personalidade autoritária.
Fascismo histórico e Retrofascismo
“Retrofascismo”
é um conceito cunhado pelo pesquisador canadense em cultura e
tecnologia Arthur Kroker. Uma mistura entre os motivos que fizeram
surgir o fascismo histórico (depressão econômica e senso do
enfraquecimento do nacionalismo) com hiper-tecnologia atual que
virtualiza o outro e a si mesmo nas tecnologias de convergência.
A questão é
que o retrofascismo é o fascismo histórico que retorna como farsa. Nos
anos 1990, Kroker relacionava o fascismo com a ascensão das tecnologias
que virtualizam o organismo sócio-biológico-linguístico humano
(clonagem, virtualização do eu nas redes etc.). O fascismo atual como
formação reativa ao senso de desaparecimento do eu por meio da
personalidade autoritária: limpeza sexual, limpeza étnica, limpeza
intelectual, limpeza racial, limpeza do Estado (moralismo anticorrupção)
– limpeza como paradigma universal.
Arthur Kroker e o Retrofascismo: fascismo + hipertecnologia |
No caso de
um país periférico no século XXI como o Brasil essa natureza farsesca
ressurge quando colocamos a campanha e vitória do candidato de
extrema-direita Jair Bolsonaro dentro do contexto da Guerra Híbrida
iniciada em 2013 – quando o País foi colocado no radar das “primaveras”
que pipocaram em todo o planeta dirigido pelo Departamento de Estado
norte-americano.
A
matéria-prima psíquica continua a mesma – a chamada “personalidade
autoritária” como definiu Theodor Adorno nas suas célebres pesquisas
empíricas realizadas nos EUA nos anos 1940 – sobre isso clique aqui.
Tanto lá atrás no nazi-fascismo como agora com o crescimento da
extrema-direita (e toda agenda de intolerância e racismo) no mundo, esse
substrato psíquico é agenciado por líderes, movimentos ou partidos que
tentam conquistar o Estado.
Porém,
dessa vez como farsa: a personalidade autoritária (e seu agenciamento
político, o fascismo) torna-se álibi ou pretexto para um objetivo
estratégico dentro do xadrez global da guerra híbrida – submeter um país
geopoliticamente importante como o Brasil à banca financeira
internacional e aos piratas do petróleo, impacientes em por as mãos no
Pré-Sal.
É
necessário entender as nuances entre o fascismo clássico e o atual para
compreender a verdadeira revolução midiática que a campanha eleitoral
vitoriosa de Bolsonaro, que emulou, em muitos aspectos, a estratégia de
convergência tecnológica de Trump – vitórias eleitorais que simplesmente
ignoraram a grande mídia de massas, concentrando-se nas mídias e
plataformas de convergência tecnológica.
Ao invés de
técnicas hipodérmicas de propaganda política (massificação por meio de
repetição, reforço e condicionamento), de agora em diante teremos
viralizações meméticas.
Estratégia de dissuasão
Lá no
passado, o nazi-fascismo surgiu como reação à condição de depressão
econômica generalizada na Europa combinada com o senso de humilhação
nacional.
Hoje, pelo
menos no caso brasileiro, fez parte de uma elaborada estratégia de
dissuasão: confundir a opinião pública com a polarização política que
impediu qualquer debate racional – que se materializou na ausência de
debates no segundo turno, enquanto o candidato líder das pesquisas
eleitorais alimentava facetas da personalidade autoritária das maiorias
silenciosas (o anti-comunismo e anti-petismo histérico, “caneladas” para
criar dissonância cognitiva, conservadorismo sexual etc.) nas redes
sociais, principalmente WhatsApp.
Apesar do
sucesso das diversas primaveras pelo mundo usando redes sociais para
criar Revoluções Populares Híbridas (RPH – sobre esse conceito, clique aqui),
no Brasil havia um problema: historicamente, sempre a direita foi ruim
de voto. Com a sua agenda política alinhada aos EUA e programas
econômicos baseados no liberalismo selvagem que qualifica políticas
sociais como “populistas”, a direita apenas conseguiu chegar ao Estado
sempre por meio do golpe militar ou político.
Como criar
uma RPH se a legitimação final dessa “revolução” através do voto seria
improvável, a partir do momento que fosse colocada a plataforma
neoliberal em debate? Privatizações e extinção de estatais estratégicas,
entrega das riquezas nacionais e enxugamento das finanças às expensas
das políticas públicas e seguridade social não é exatamente um conjunto
de medidas fácil para ser colocado de forma franca em uma mesa de
debates.
Para
problemas complexos, soluções simples: então, porque não suspender
qualquer tipo de debate, e no lugar incitar a verdadeira síndrome
psíquica autoritária brasileira para tornar a atmosfera política densa?
Os dados sócio-psicológicos já estavam dados. Por exemplo, na overdose
de farmácias e igrejas neopentecostais no Brasil (nas periferias urbanas
praticamente ambas em cada quarteirão) são evidentes indícios da doença
física e psíquica que acomete o cotidiano brasileiro.
Two-Step Flow e Agenda Setting
Em postagem
anterior analisávamos que as estratégias de guerra híbrida se baseiam
nos estudos do cientista Político Gene Sharp (táticas de “Ação Direta”),
de Paul Lazarsfeld nos anos 1940 (Efeitos Limitados da Mídia e a Teoria
“Two-Step Flow”) e da dupla Donald Shaw/Max McCombs (Teoria da “Agenda
Setting”),
A Guerra
Híbrida se fundamenta no tripé Grande Mídia/Líderes de
Opinião/Mobilização Não Violenta com os seguintes passos: (a) criação de
um “Frame”(agendamento ou pauta) pela grande mídia, (b) dentro do qual
os líderes de opinião em grupos e comunidades pensarão os temas e
influenciarão seus grupos e comunidades, (c) que serão mobilizados ou de
forma direta em manifestações nas ruas ou virtualmente através do
compartilhamento de fake news e pós-verdade nas redes sociais.
Desde o ano
passado a grande mídia colocou o noticiário dentro do “frame” dos
movimentos identitários e culturais (gênero, étnico-racial, geracional
etc.). E foi no interior dessa agenda é que foi colocada toda a campanha
eleitoral: porte de armas, aborto, feminismo, intolerância a minorias,
racismo etc. foram temas transversais dos discursos dos candidatos.
O propósito
foi evidente, encaminhando para um óbvio segundo turno entre Bolsonaro X
Haddad: a polarização da opinião pública que gerou a campanha eleitoral
mais despolitizada da história brasileira – não se debateu projetos,
políticas econômicas micro ou macro. Quando muito, algumas generalidades
como “jogar pesado” contra o déficit público ou o tema guarda-chuva
“Reforma da Previdência”.
A ausência
de debates no segundo turno foi o desfecho natural, ficando no seu lugar
o reforço da personalidade autoritária da maioria silenciosa brasileira
através do disparo em massa de milhões de notícias falsas com apoio
empresarial (o “ZapGate”), cujo principal efeito foi a “pós-verdade” – o
reforço das predisposições autoritárias (ódio e intolerância) cujo
critério verdade/mentira é o que menos importa.
Criado o
“frame” para todos os lados discutirem dentro da lógica binária dessa
moldura midiática, a Guerra Híbrida atingiu em cheio o objetivo
principal: esconder da opinião pública o lado mais impopular e ruim de
voto de um candidato de extrema-direita – o neoliberalismo selvagem
destruidor do Estado de Direito e de garantias sociais.
Portanto,
essa é a natureza farsesca que faz do fascismo brasileiro um
retrofascismo: o discurso de ódio e intolerância de Bolsonaro serviu de
reforço do frame criado pela grande mídia, turbinou a polarização, catalisou a personalidade autoritária da maioria silenciosa (que momentaneamente se
converteu a Bolsonaro) que, ao final, cumpriu a tática de dissuasão
tornando, pela primeira vez, um candidato de extrema-direita bom de voto
– porque escondeu seus projetos e políticas para um futuro governo por
trás do debate polarizado das questões identitárias, de costumes e
culturais.
Em outras
palavras: a personalidade autoritária das maiorias silenciosas foi
agenciada pelo discurso fascista de Bolsonaro como farsa (ao contrário
do fascismo histórico, nacionalista, este é entreguista e só fala de
“pátria” e “nação” para catalisar a doença psíquica brasileira) para
esconder da opinião pública o programa de governo ruim de voto do
candidato de extrema-direita.
Efeitos colaterais
Esse retrofascismo já está produzindo alguns efeitos colaterais:
(a) Efeito “Uma Noite de Crime”: certamente o leitor deve ter assistido ou ouvido falar do filme The Purge (Uma Noite de Crime),
num EUA distópico no qual anualmente, por um período de 12 horas, toda
forma de crime é permitida para liberar os instintos assassinos e manter
a estabilidade social.
A vitória
de Bolsonaro com o discurso retrofascista está criando um efeito de
“liberou geral”: juízes eleitorais que decidem ações policiais em
universidades sob “suspeitas de ações irregular de campanha política”; o
estudante de Direito da faculdade Mackenzie (SP) que grava vídeo
comemorando que é “hora de matar a negraiada” porque o “capitão” ganhou a
eleição; um travesti esfaqueado no Centro de São Paulo enquanto os
agressores gritavam “Bolsonaro!”; vídeo circula nas redes sociais com
homofóbicos no metrô de São Paulo cantando “Ô bicharada, toma cuidado, o
Bolsonaro vai matar viado!”.
Depois que o
discurso retrofascista foi útil, como farsa, para a tática de dissuasão
eleitoral, resta saber o quê fazer com a horda de mortos vivos que
agora não conseguem mais sair do personagem. Teme-se o que será dos
grandes centros urbanos na noite de primeiro de janeiro de 2019 – festa
da posse do capitão Jair Bolsonaro.
(b) Efeito “A Ficha Caiu”–
depois de um processo eleitoral despolitizado, polarizado, cujo frame
midiático impediu qualquer debate sobre programas de governo, agora
parece cair a ficha de jornalistas e agentes do campo
econômico-financeiro: “no programa de Bolsonaro só aparece uma vez a
palavra “meio ambiente”!”, exclama um comentarista na Globo News;
“Bolsonaro não termina o mandato com esse programa para conter a dívida
pública”, diz Zeina Latif da XP Investimentos no canal "Painel WW" do
ex-global William Waack, no YouTube; “a fusão dos ministérios da
Agricultura com Meio Ambiente poderá fechar o mercado europeu para o
agronegócio brasileiro”, comenta estupefata a jornalista Natuza Nery da
Globo.
Terminado o
bate-bumbo midiático das causas identitárias para gerar polarização,
todos caem na real: “Bolsonaro, como fica o nosso bolso?...”.
(c) Efeito “Apertem os cintos, a grade mídia sumiu”: é
exagero afirmar que Bolsonaro levou as eleições apenas com as redes
sociais. Foi necessário num primeiro momento a grande mídia de massas
criar o frame que emoldurou e conteve os debates político-eleitorais. Só
então, dentro desse agendamento midiático, é que Steve Bannon,
Cambridge Analytics, puderam nadar de braçadas criando polarizações que
colocaram Trump e depois Bolsonaro no poder.
Mas o que
ficou para os vitoriosos foi a ideia de “bala mágica” que representou as
viralizações de vídeos, memes e fake news em redes sociais. A
transformação de Bolsonaro em candidato-avatar que se elegeu à base de
“pitacos”, “mitagens” e “lacrações”. Para ele, Twitter é o seu porta voz
e o WhatsApp sua opinião pública.
Enquanto
isso, do lado de fora do luxuoso condomínio da Barra da Tijuca onde mora
Bolsonaro, na rua, ficam os repórteres da Globo informando apenas a
partir de vídeos e twittes que o presidente eleito posta na rede.
Com
evidente má vontade, Bolsonaro concede entrevistas coletivas para
jornalistas da grande mídia. Com exceção da TV Record que promete ser a
nova Fox News brasileira. Afinal, a emissora pertence ao bispo Edir
Macedo. Um pastor preocupado em cultivar a doença psíquica que assola os
grandes centros urbanos com uma igreja da Universal em cada
quarteirão.
A doença psíquica que turbinou o retrofascismo brasileiro como farsa.
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