quarta-feira, novembro 07, 2018
Obra-prima
do Teatro do Absurdo de Samuel Beckett, “Esperando Godot” sempre esteve
à espera de uma adaptação cinematográfica. A qual Beckett resistia por
temer que o espírito de dissonância original da peça fosse perdido na
linguagem fílmica. Mas o projeto “Beckett in Film” do diretor irlandês
Michael Lindsay-Hogg certamente superou esses temores de Beckett. Em
“Esperando Godot” (2001), a peça em dois atos em que nada acontece ganha
novos tons, principalmente gnósticos: por que dois mendigos à espera do
misterioso Godot que nunca aparece, simplesmente não viram as costas e
vão embora? O que temem? O absurdo e surrealismo de "Esperando Godot" é
apenas a superfície de um horror metafísico de Beckett que parece
remeter ao trauma do Holocausto: como foi possível uma barbárie jamais
vista na Segunda Guerra Mundial? Que cosmos é esse em que vivemos que
cria condições para acontecer horrores que jamais deveriam acontecer?
Desde a
estreia da obra-prima do chamado “Teatro do Absurdo” de Samuel Beckett,
“Esperando Godot”, em 1953, a peça tem sido objeto de muitos debates e
interpretações. Mas, sem dúvida, estava à espera de uma adaptação do
palco para a tela do cinema.
Quando
vivo, Beckett recusou um projeto do grande diretor sueco Ingmar Bergman
de fazer uma adaptação fílmica: Beckett temia que a mão pesada de um
diretor de filmes “de arte” prejudicasse a dissonância do absurdo de
“Esperando Godot”.
Mas em
2001, o diretor irlandês (pátria de Beckett) Michael Lindsay-Hogg criou
para uma TV irlandesa o projeto “Beckett in Film”: filmar todas as peças
do dramaturgo). E “Esperando Godot” foi o filme de estreia. Diferente
de outras versões anteriores para TV que, muitas vezes, acabavam
transformando a peça num musical, com trilha e uso excessivo de
close-ups.
Ao contrário, Esperando Godotde
Lindsay-Hogg é minimalista: câmera discreta, e cenografia básica:
apenas uma árvore seca que decora a curva de uma estrada de terra
cercada de pedras e poeira, com pequenas colinas formadas por entulhos
para quebrar a monotonia da paisagem. Um filme respeitoso e reverente a
Beckett.
Nada acontece
A rigor,
“Esperando Godot” é uma peça em dois atos em que nada acontece: dois
falantes mendigos em uma paisagem desolada que esperam a chegada de um
misterioso Godot que cada vez mais torna-se improvável sua chegada.
Outros três personagens surgem em sequências semelhantes para cada ato,
criando no espectador uma sensação de circularidade, eterno retorno,
marcado por longos diálogos cujo dilema em essência é o seguinte: “Não
posso continuar esperando, mas eu tenho que continuar esperando...”.
Muitos
atribuem o sentido da peça ao contexto do trauma pós-Segunda Guerra
Mundial: como seguir a vida em frente após o trauma do Holocausto,
mortes e destruição em escala jamais vista? Dois protagonistas num drama
existencial de confinamento à espera de um misterioso Godot que quebre
aquele círculo vicioso e faça o tempo (ou a História?) andar para
frente.
Mas o
surrealismo existencial da peça sugere algo mais além e metafísico sobre
as grandes questões da humanidade: o seu propósito nesse cosmos, a
possível presença de um poder superior e a sua resistência desafiadora a
qualquer explicação ou interpretação simples.
Por
exemplo, Theodor Adorno via em Beckett o mesmo princípio da cosmogonia
gnóstica: o mundo criado para nós é radicalmente mal. E diante dele não
há reconciliação possível.
O Filme
Vladimir
(Barry McGovern) o tempo inteiro tenta ser racional, procura algum
sentido ou propósito da situação. Procura pistas sobre quem é Godot: sua
aparência, onde vive, o que faz. Mas o máximo que descobre é que Godot
tem barbas brancas.
Ao
contrário, Estragon (Johnny Murphy) é mais “pé no chão” e realista – ele
sempre está com fome e sente suas botas apertadas e preocupa-se com
seus pés machucados. Tudo que quer é apenas dormir para ver se o tempo
passa mais rápido.
“O tempo
parece que passa mais rápido quando a gente de diverte”, afirma Estragon
a certa altura, em seus jogos de palavras e diálogos infindáveis com
seu amigo de desgraças.
O Tempo é a
questão importante que perpassa os dois atos: os personagens perdem a
noção de tempo – suas únicas referências são o por do Sol, o crepúsculo e
a Lua cenográfica que sobe no fundo da paisagem desolada. No segundo
ato, surgem pequenas folhas verdes na árvore aparentemente morta. Como
nos antigos, o Tempo é regido pelas estações do ano, o Sol e a Lua. Em
síntese, um tempo cíclico que poderia ser rompido com a chegada de
Godot.
Vladimir e
Estragon vivem uma situação análoga a prisioneiros em um campo de
concentração? Sabemos que uma das técnicas para quebrar o moral de
prisioneiros é fazê-los perder a noção cronológica do tempo.
No meio dos
atos surge na curva daquela estrada de terra Pozzo (Alan Stanford), um
pomposo aristocrata que trata seu criado Lucky (Stephen Brannan) como
uma besta de carga, amarrado por uma corda no pescoço, arqueado,
carregando uma mala, um banquinho e uma cesta. Pozzo parece rude, cruel e
violento. Mas tudo o que quer é ser amado pela dupla de mendigos –
busca a aprovação de seus interlocutores após longos discursos.
E sempre no
final de cada ato surge o mensageiro de Godot: um menino (Sam McGovern)
que sempre traz o aviso da impossibilidade de Godot vir ao encontro,
mas que no dia seguinte virá. “O que devo dizer ao Sr. Godot?”, sempre
pergunta ao final o menino a Vladimir. Que sempre responde triste e
conformado: “diga a ele que me viu...”.
Tempo e esquecimento
O tempo
recorrente dos dois atos levam ao esquecimento, cegueira e surdez:
inexplicavelmente Pozzo retorna cego, e Lucky surdo. No segundo ato, o
menino não se recorda da mensagem do dia anterior.
Ao lado dos
relatos de violência sofrida por Estragon (no segundo ato diz a
Vladimir ter sido inexplicavelmente agredido por dez homens na noite
anterior) e o temor de Vladimir de ser em punidos por Godot caso
desistam de espera-lo, a peça de Beckett parece remeter ao trauma dos
prisioneiros dos campos de concentração nazistas.
O absurdo e surrealismo de Esperando Godot é
apenas a superfície de um horror metafísico de Beckett: como foi
possível uma barbárie jamais vista na Segunda Guerra Mundial? Que cosmos
é esse em que vivemos que cria condições para acontecer horrores que
jamais deveriam acontecer?
“Para
Beckett, assim como para os gnósticos, o mundo criado é radicalmente
mal, e sua negação é a chance de um novo mundo que ainda não é. Enquanto
o mundo é como é, todas as imagens de reconciliação, paz e sossego
assemelham-se a imagem da morte”, escrevia Adorno na sua “Dialética
Negativa”. Se no pós-guerra Sartre partiu para o vazio existencial na
Filosofia ou na Literatura “O Senhor das Moscas” de William Golding
partiu para o niilismo, Beckett preferiu sublinhar o tragicômico de um
cosmos que parece girar sobre si mesmo sem ter algum propósito, sentido
ou finalidade.
O
aristocrata poderoso Pozzo, assim como o misterioso Godot, são como
demiurgos que necessitam da crença de Vladimir e Estragon. Pozzo e Godot
precisam se manter “críveis”: Assim como Pozzo deve manter seu lacaio
nas rédeas, também Godot precisa manter a esperança nos pobres coitados
protagonistas. Mas, como Adorno defendia, imagens de esperança, são
imagens da morte.
Beckett
questiona: por que aqueles dois mendigos simplesmente não viram as
costas e vão embora? Essa é a questão gnóstica fundamental que a
humanidade precisa responder.
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