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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

JOÃO NÃO TEM MEDO (CONTO - PARTE V), POR ALEXANDRE MEIRA


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Sentado no chão João jogava pedras por baixo das pernas de uma mão para a outra, divertidamente, a espera do fim da  entusiasmada discussão entre os primos:
- Você sempre desiste, cagão! A gente volta antes da mãe e do Tio Bento chegarem!. A tia também tá dormindo! Não tem erro! - disse Jacó olhando para o quarto onde dormiam sua tia e sua prima recém-nascida.
Esaú encostado à porta chuta o chinelo pra longe diante da provocação. Sorri e consente:
- Cagão nada... Só se for antes de anoitecer, e João tem que ir com a gente, pra ninguém perceber!
João ergueu os olhos e olhou brilhantemente pra Esaú. Era raro conseguir a atenção dos primos. Mais novo que era, embora muito interessado, fora sempre excluído das armações dos filhos de Mirtes. Os gêmeos de 10 anos eram o azougue e enchiam a pensão de Yolanda com a vivacidade dos irrequietos, e João desde pequenino aprendera a gostar dos primos mesmo sendo frequentemente sua principal vítima. Olhou magicamente agora para Jacó, mas fechou o semblante quando percebeu que faria algo à margem dos cuidados de seus familiares.
- Joãozinho você vai com a gente pro Tio Bento não desconfiar! Não precisa ficar com medo! - persuadiu Jacó aos risos, deitando-se no sofá velho.
O menino não sabia. Não tinha idade pra saber que seus primos planejavam ir até a pedra do gavião. Mal saía de casa, e quando o fazia, o incomodava muito os olhares de alguns vizinhos, recheados de mussitos. Com quase ninguém trocava palavras. O que não seria  impensável já que se tratava de uma criança e sua graciosidade. Quando  havia uma maior aproximação, era sua mãe que se enervava ao extremo. Aprendera, então, desde cedo sobre os limites do mundo, e ultrapassá-los, mesmo que ocultamente, causava-lhe uma angustia que ainda não sabia explicar.
João ensaiou um choramingo, mas engoliu. Não agüentaria a gozação dos primos. No alto de seu ainda suave orgulho sabia deveria ser como eles. Jacó emendou para o irmão:
      Vamos chamar mais alguém?
      Não! Só a gente! Mais gente pra quê? Os moleques? Ahhhh... Tá com medo!!!!!
      Eu não! - Disse Jacó empinado, logo provocando – Você que não agüenta ir até o topo, só até o rio... Rááá duvido passar o Rio.
      Tio Bento já passou o Rio? 
      Já deve ter ido... Sozinho acho que ninguém foi lá na pedra. É alto. O povo tem medo da Mãe Naná.
      Vamos riscar a pedra. Tem que deixar o nome lá... - sugeriu empolgado Esaú deitando-se no chão ao lado do menino.
      Foi lá que o Joãozinho nasceu!! Vamos lá João? Quer ver a mamãe lá?!? 
Jacó repetiu apenas o que a vizinhança costumava falar a respeito do menino João. Seu nascimento naquelas condições e o fato de viver escondido em casa alimentavam os boatos de que ele não era filho de Mariana. Era a corporificação de um castigo. Que só sobreviveu, inclusive, porque sua alma fora prometida pra Naná na hora do parto, para que sua mãe pudesse assim pagar pelos pecados. João era, pois, um estorvo. O menino passava por duas situações frequentemente: ora rejeitado por aqueles que tinham sobretudo medo, pelos que achavam que sua família estava amaldiçoada, e pelos que repetiam que um filho de mãe Naná era na verdade um agouro vivo; ora era atormentado por perguntas capciosas, ironias, ora com pedidos estranhos daqueles que deixavam oferendas à porta da pensão, quase sempre estranhos. Ambas as situações faziam com que Mariana, sua mãe, reagisse rispidamente e fosse cada dia mais procurando evitar o encontro do menino João com o mundo, com sua própria história.
João baixou os olhos negros. Esqueceu por uns momentos das pedrinhas que o divertiam e lançou-se no seu próprio universo, logo interrompido por Esaú:
      Vai que Joãozinho quer ficar lá. Tia Mariana mata a gente!! Pode ficar lá não tá, João!!
      Se a gente se perder João pode pedir ajuda pra mãe Naná! Pode né?! - Jacó zombava ao mesmo tempo que acariciava os cabelos crespos de João. 
 Fato era que a molecada que vivia no entorno da pensão a cada dia mais vazia, tinha na ida até a mata do morro do gavião um grande desafio. Sempre impedida pelos pais zelosos e quase sempre devotos das superstições da região, ela rondava a montanha entre idas e vindas furtivas, quase sempre só até o rio de leito baixo, ainda no início da trilha. Uma caminhada simples com pouca vegetação e caminho aberto à facão até o pequeno riacho,  cujas águas vinham da cachoeira da Anastácia, quase no alto do morro. Acima dela somente um descampado com uma pedra gigantesca em formato que se assemelhava ao bico de um gavião, vista por toda a cidadezinha lá embaixo. Entre o riacho e a Pedra, algumas horas de caminhada pesada sob vegetação muito densa, terreno acidentado, e histórias assaz estarrecedoras. Pouco para impedir a curiosidade arrebatadora desses molecotes.
Antes que pudesse pensar, João foi arrastado pelos dois primos, pelos braços, para a rua. Procurariam um caminho alternativo que fosse, para sumir das vistas de qualquer vizinho. O menino de seis anos ainda olhou pra dentro de casa e lembrou-se da mãe, de sua irmãzinha e de Bento a quem chamava de pai. Revisitava inesperada e inconscientemente o cimério caminho de sua vida. Seguiu os dois, sem opção, e com muito medo.


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