Em um ensaio clássico, o sociólogo britânico T. H. Marshall argumentou que a cidadania experimentou, nos países desenvolvidos, durante os séculos XVIII, XIX e XX, um desenvolvimento progressista, que foi abarcando, respectivamente, em cada um desses três grandes períodos históricos, os direitos civis, políticos e sociais. No primeiro momento, a constitucionalismo liberal foi fundamental para a limitação do poder do Estado, até então absoluto, e a garantia dos direitos fundamentais. A democratização (extensão do sufrágio e liberdade de organização), processo no qual os trabalhadores desempenharam um papel estrutural, teve importância chave na conquista dos dois últimos grupos de direito mencionados.
O pensador político Norberto Bobbio italiano qualificou essa evolução da cidadania como circunscrevendo “a era dos direitos”, que teriam primazia em relação aos deveres para com o Estado. Deixando de lado a avaliação do quanto os direitos foram universalizados e efetivados, no Norte e alhures, o tempo histórico de “capitalismo da austeridade” pressiona para mudar o discurso e as decisões públicas no sentido da primazia dos deveres, configurando um processo político de desconstrução simultânea da cidadania e da democracia.
Exagerando na dose da tendência internacional de consolidação fiscal, o Brasil está precocemente renunciando ao pacto social da Constituição de 1988. Em nome do reequilíbrio fiscal e da redução do que se considera ser uma elevada carga tributária, considerada incompatível com a competitividade dos produtos e serviços, a emenda constitucional do teto de gastos (EC 95), aprovada em 2016 por uma ampla coalizão reunindo forças governistas e o grande capital e orientada ideologicamente pela perspectiva ultraliberal do Estado mínimo, já está comprometendo, em um processo de alcance estrutural, os recursos orçamentários de dois pilares fundamentais do Estado de bem-estar social desenhado na aurora do regime democrático, ora submetido à desdemocratização: a educação e a saúde públicas. Veja-se, por exemplo, o estudo de Pedro Rossi e Esther Dweck (bit.ly/2tO4ShZ).
A reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), em vigor desde o dia 11 do mês corrente, é rejeitada por 81% dos trabalhadores, segundo pesquisa CUT-Vox Populi. Ela alterou 100 itens da CLT, praticamente revogando-a. Seu ponto central já denuncia seu caráter: a negociação (através das convenções e acordos coletivos) prevalecerá sobre a legislação, em temas como parcelamento de férias em até três vezes e duração de horário de almoço, que não poderá ser menor que 30 minutos. Embora os direitos trabalhistas garantidos constitucionalmente não foram suprimidos (como salário mínimo, férias e 13º), o objetivo da reforma é dificultar o acesso a esses e outros direitos e esvaziá-los. A relação de força tende a ser desfavorável ao trabalho em suas lutas contra o capital.
Tais mudanças têm provocado muita reação contrária entre os juízes trabalhistas e, de certo modo, no Ministério Público do Trabalho, apontando para divergências e disputas jurídicas entre as partes envolvidas (Justiça, trabalhadores e empregadores). Uma das polêmicas e motivo de greves já em curso diz respeito ao que passa a ser considerado como hora extra e ao pagamento dela. Estudo do CESIT-Unicamp indica que a reforma induz à precarização (insegurança, perda de garantias) das condições de trabalho, conforme se deu em outros países (Espanha, Reino Unido, Alemanha, Chile e México).
Outra ofensiva de grande porte é a reforma da previdência. Após os aliados do presidente Temer terem logrado impedir, por duas vezes, o processo do chefão no STF, o líder no Executivo da deposição da presidenta Dilma, ao lado do ex-deputado e ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (preso pela Lava Jato), está lançando uma grande ofensiva política para aprovar uma versão sintética da reforma da previdência ainda esse ano, ou seja, a toque de caixa. A ofensiva inclui uma reforma ministerial, negociações com Rodrigo Maia e com a bancada do centrão e uma campanha publicitária de R$ 20 milhões, dirigida à população. Mote: acabar com os privilégios. Sim, das pessoas idosas e pobres, pois se pretende definir, como critério de acesso ao benefício, uma idade mínima única de 62 anos para as mulheres e 65 para os homens. Considerando a dimensão continental do país e as imensas desigualdades, inclusive regionalmente agravadas, como é o caso da expectativa de vida, essa idade mínima fixa e elevada não condiz com a realidade nacional. Enfim, a matéria é constitucional, por isso depende de maioria qualificada (três quintos do total de cadeiras, com duas votações em cada casa do Congresso).
Na verdade, a austeridade em relação aos gastos sociais e às modalidades de contratação trabalhista tem um grande beneficiário: os ricos, os capitalistas. Os prejudicados são os trabalhadores e os pobres. Os muito ricos querem nada mais, nada menos que pagar pouco imposto e poucos salários e demais custos trabalhistas. Note-se que a estrutura tributária brasileira já está entre as mais injustas do mundo. Tributamos muito os bens e serviços, mas tributamos pouquíssimo a renda e a riqueza, além de premiarmos a sonegação com programas politicamente desenhados para favorecer os poderosos, como o Refis. Os muito ricos querem também mais duas coisas importantes: garantir que o orçamento público seja administrado de modo a que os títulos da dívida pública sejam emitidos e contratados com boa remuneração e sejam devidamente honrados; e investir em áreas ocupadas pelas políticas sociais: educação, saúde e previdência pública.
Esse destrutivo projeto de ofensiva do capital contra a cidadania, contra o Estado social e contra o trabalho precisa subordinar um grande obstáculo político: o processo democrático. Enfim, a anticidadania requer a desdemocratização. A deposição da presidenta Dilma abriu a porteira da direita para a boiada neoliberal.
* Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do INCT-PPED, realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia
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